Correio de Carajás

Dois Luiz, duas histórias, dois destinos na Folha 33

Na Folha 33, os milagres e as tragédias costumam pegar o mesmo ônibus.

Por: Dois Luiz, duas histórias, dois destinos na Folha 33
✏️ Atualizado em 02/12/2025 16h39

No último domingo, bati na porta de uma casa simples, muro baixo, chão batido, um vaso de planta tentando ser árvore na frente. Lá dentro morava um menino chamado Luiz Gabriel, 11 anos, sorriso largo, olhar que parece acender a sala. Ele tinha acabado de descobrir que sua voz atravessou o asfalto esburacado da Nova Marabá e foi parar sabe-se lá em quantas telas pelo Brasil. “Oh, happy day”, cantou, e de repente o dia feliz não era só dele: era da mãe, do pai, dos irmãos, da vizinhança inteira que se apertou no vídeo como se coubesse todo mundo dentro de um refrão.

A família, crente e grata, me recebeu como se eu fosse um parente distante, até irem se acostumando. Falavam de Deus o tempo todo, como quem pega a palavra fé e usa de corrimão para subir uma escada difícil. Entre uma pergunta e outra, o Luiz ajeitava o corpo na cadeira, ainda meio sem entender o tamanho do que estava acontecendo. Um menino de 11 anos, com o uniforme da Escola Silvino Santis, de repente virando notícia nacional. Folha 33 no mapa, não pelos buracos, não pela violência, mas por um garoto preto, franzino, cantando um hino de alegria em inglês.

Anotei tudo no caderno: o brilho nos olhos da mãe, o orgulho engasgado do pai, os irmãos rindo no fundo. Pensei: às vezes a vida acerta o alvo.

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Dois dias depois, voltei à Folha 33 e era outra rua, outra casa, outro silêncio.

Quadra 19. O portão entreaberto, o som de choro lá dentro. Fui recebido por dona Irá, a avó. Os olhos vermelhos, a voz quebrada em pedaços pequenos. Ela me contou, devagar, sobre o outro menino chamado Luís. Só que esse era o Miguel. Sete anos. Segundo ano do fundamental. O mesmo uniforme da Silvino Santis. A mesma Folha 33. A mesma cidade que aplaudia um Luiz no domingo e enterrava o outro na segunda.

Na sexta-feira, ele chegou da escola e, como qualquer criança saudável, não se contentou com o mundo de dentro. Queria rua, bola, risada, vento no rosto. A avó avisou que ali era perigoso. Ele argumentou com a lógica infantil de quem ainda acredita que basta atravessar para o lado menos movimentado e pronto, o perigo acaba na esquina.

Foram brincar na rua ao lado.

Ali, onde “quase não passa carro”, passou um caminhão pesado guiado por um homem comprovadamente bêbado. Um motorista que decidiu misturar volante e álcool, como se o corpo das pessoas fosse guardanapo de buteco, coisa que se amassa e joga fora. O impacto foi mais que físico. Atingiu dona Irá, a mãe convalescendo de uma cirurgia na perna e de um parto recente, atingiu a escola, a vizinhança, a cidade inteira que parece ter se acostumado com as estatísticas, mas nunca está pronta para o nome que aparece no boletim de ocorrência.

Na Silvino Santis, a diretora Kiria Moraes me recebeu com um olhar que misturava exaustão e incredulidade. Ela falou de Luiz Miguel como não se fala de número: um excelente aluno, curioso, desses que enchem de perguntas a professora. Na manhã de segunda-feira, depois do velório e do enterro, a escola tentou ser escola.

Pátio, fila, mãos no peito. Hino Nacional, Hino do Pará, Hino de Marabá. As vozes saíam falhadas, arranhando a garganta. Tinha um vazio novo entre uma palavra e outra, um espaço do tamanho de um menino de sete anos.

Foi então que apareceu a borboleta.

Branca, pequena, voando entre as cabeças, se enfiando entre as fileiras de alunos e professores. As educadoras juram que nunca tinham visto borboleta ali, muito menos branca. E olha que tem gente com mais de vinte anos de escola, acostumada com todo tipo de barulho e surpresa. Mas não com aquilo: um ponto de leveza atravessando um pátio pesado, como se alguém, de algum lugar que a gente não sabe apontar no mapa, quisesse avisar que nem tudo é concreto e asfalto.

A cena correu pelos corredores. “Você viu?” “Eu vi.” “Foi ele se despedindo.” Cada um deu sua explicação, porque a dor pede sentido, mesmo que seja emprestado. Enquanto isso, nas redes sociais, o outro Luiz seguia viralizando, ganhando elogios de desconhecidos, convites, promessas, orações.

Dois Luiz, duas histórias, dois destinos na Folha 33.

Os dois apareceram no Correio de Carajás na mesma semana. Um na editoria de Polícia, outro em Cultura. Um menino cantando “Oh, happy day” e fazendo o Brasil sorrir diante do celular. O outro atravessando a avenida dentro de um carro funerário, obrigando a cidade a desviar os olhos do feed e encarar a própria calçada.

Os dois tinham três irmãos em casa. Os dois usavam o mesmo fardamento. Os dois sonhavam com um amanhã que ainda cabia em sete ou onze anos de idade. Só que agora só um deles está vivo para continuar sonhando.

Quando eu volto para casa, com o caderno cheio de anotações que pesam mais do que qualquer mochila, fico pensando que Marabá é essa cidade que coloca um menino num palco e o outro numa estatística, no intervalo de poucos dias e poucas ruas. A mesma Folha 33 que empurra Luiz Gabriel para o mundo, aplaudido por desconhecidos, engole Luís Miguel num cruzamento descuidado, num gole de bebida a mais, num freio que não veio.

Talvez a grande injustiça não seja Deus escolher um e levar o outro. Talvez a injustiça maior seja a nossa, que seguimos aceitando motorista bêbado como se fosse detalhe, rua sem sinalização como se fosse paisagem.

No fim das contas, eu fico com a imagem da borboleta branca cortando o pátio da Escola Silvino Santis, enquanto uma multidão de crianças canta o Hino Nacional com a voz embargada. Penso que, de algum jeito torto, a vida é isso: um bicho frágil insistindo em voar por cima de um chão que vive querendo esmagar tudo.

Dois Luiz, duas histórias, dois destinos na Folha 33.

No fundo, a pergunta que fica não é por que Deus permitiu que um ficasse e o outro partisse.

A pergunta que dói mesmo é: o que nós, adultos sóbrios (ou nem tanto), vamos fazer com o fato de que as crianças estão pagando com a própria vida pelos acidentes que não são acidentes, mas escolhas? E se a borboleta branca era um recado, talvez fosse este: alguns sonhos a morte leva, mas outros ela deixa no nosso colo, como cobrança silenciosa, até que a gente crie coragem de mudar o destino da próxima criança que pedir, de chinelo no pé e mochila nas costas, para brincar na rua ao lado.

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras. Hoje, excepcionalmente, para falar de dois Luiz

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.