Josafá completou setenta e cinco anos na última semana. Não houve bolo, vela nem parabéns desafinados de vizinhos curiosos. Ninguém lembrou dele. Ninguém telefonou, ninguém mandou mensagem. O portão, que já rangeu para receber tantos, hoje só range com o vento. Até o carteiro esqueceu o caminho. É como se o mundo tivesse combinado de deixá-lo em silêncio, pagando, aos poucos, o preço de tantos gritos que ele mesmo calou.
A maldição de seus últimos dias é a solidão. É um castigo que veio sem juiz, sem sentença, mas com precisão de bala. E o mais cruel é que nem o Alzheimer teve a gentileza de bater à sua porta. Josafá se lembra de tudo: dos rostos, dos olhos arregalados, do cheiro de pólvora e medo que marcava as madrugadas. Dorme pouco. Quando fecha os olhos, ouve tiros. Quando acorda, escuta o eco deles nos galhos do quintal.
Nos tempos de ouro da castanha e do gado, quando o chão de Marabá e de suas vizinhas Xinguara e Rio Maria era uma fronteira de sangue, Josafá era homem de confiança. Um nome sussurrado, nunca dito em voz alta. Trabalhou para gente graúda, coronéis de fazenda, donos de castanhais, homens de terno branco e alma sem cor. “Serviço é serviço”, dizia ele, limpando a espingarda de repetição no pano imundo. A lei do silêncio era sua religião.
Leia mais:Conviveu com Sebastião da Terezona, outro nome de quem a memória local prefere se proteger. Juntos, andaram em picadas, bebedeiras e becos de beira de rio. A morte, para eles, era uma ferramenta de trabalho, tão corriqueira quanto o facão de um mateiro. O sul do Pará foi, por muito tempo, um cemitério sem lápides, e Josafá ajudou a cavar parte dessas covas invisíveis.
Mas o tempo, que é o único pistoleiro que nunca erra, começou a mirar em Josafá. Primeiro, vieram as rugas e o reumatismo. Depois, a cadeia. Cumpriu pena, saiu velho e esquecido. Agora está solto, mas preso num mundo que não o reconhece. Nenhum fazendeiro o contrata, nenhum amigo o visita. O bar onde bebia fechou, o campo onde atirava virou loteamento. Os tempos mudaram. Os pistoleiros também.
Hoje, quando escuta o ronco de uma moto cruzando a rua, Josafá pensa: “É assim que matam agora”. Os de farda, com mira fria e fuga rápida. A diferença é que agora os pistoleiros têm uniforme, distintivo e escolta. O método mudou, a essência não. O sangue continua encontrando o chão.
O velho anda devagar pelas ruas de uma Marabá que já não o quer. O rosto, antes duro, é agora uma ruína de pele e lembrança. Carrega no olhar o espanto de quem sobreviveu a tudo, inclusive a si mesmo. E há algo de trágico nisso: enquanto os antigos companheiros descansam sob cruzes tortas, ele vagueia como zumbi, condenado a lembrar.
Às vezes, deseja morrer. Não por arrependimento – essa palavra nunca lhe serviu -, mas por cansaço. A morte seria descanso, talvez absolvição. Só que ela, irônica, também parece lhe evitar, como se dissesse: “Ainda não, é cedo pra esquecer o que você fez”.
E assim, Josafá segue vivo, tropeçando entre memórias e arrependimentos tardios. O relógio da parede marca o tempo que sobra e, no rádio, o locutor anuncia mais uma chacina: outro corpo encontrado às margens da Transamazônica. Ele sorri de canto, um riso amargo. “Nada muda”, murmura. “Só a roupa dos matadores.”
Lá fora, o sol derrete o asfalto e o vento levanta poeira e ninguém passa, ninguém chama. A casa de Josafá é um túmulo com telhado e, dentro dele, o último pistoleiro respira devagar, esperando o único tiro que ainda não veio: o que vai silenciar, de vez, a memória que insiste em castigá-lo.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.
