Eu aprendi, ainda criança, que o Cabelo Seco é um bairro cercado de água por todos os lados e, ainda assim, quando a alma seca, é preciso alguém que conheça o mapa invisível das curas. Entre o Tocantins e o Itacaiunas, a correnteza traz e leva histórias; o que ficava era a voz de Dona Zefinha, 77 anos, benzedeira de mão firme e riso fácil, a mulher que punha folha sobre febre e palavra sobre ferida. Hoje, a maré baixou de um jeito esquisito: a última ligação entre o povo e o sagrado calou-se na manhã desta terça-feira.
A casa dela, em frente à Praça Francisco Coelho, era passagem obrigatória. Mãe com menino no colo, pescador com o ombro cansado, moça recém-assustada, idoso com dor de tempo e menino com arca caída. Todos sabiam o caminho da porta dela, como se a rua tivesse memória própria.
Mestre Zequinha, o sobrinho, vivia contando: mesmo idosa, mesmo doente, Zefinha não fechava a porta para quem vinha pedir reza. O bairro, com seus passos de quilombo, achava abrigo naquele quintal de ervas amazônicas — arruda, guiné, manjericão miúdo, um punhado de folhas que nas mãos dela viravam ponte entre a dor e o alívio.
Leia mais:Não havia máquina de cartão, nem tabela de preço. “Sem cobrar nenhum real”, repetiam as vizinhas, orgulhosas da sua mestra popular. Quando o desespero apertava, até hospital chamava por ela: “venha benzer o doente, venha rezar baixinho ao pé da cama”. E ela ia, levando o silêncio que cura e um rosário domado pelo costume. Tinha uma reza para quebranto, outra para assombro, uma terceira para medo antigo. Em cada uma, uma ladainha de pertencimento: “você não está só; sua dor é nossa; o corpo aprende de novo a esperar”.
Entre uma benzeção e outra, Zefinha fazia vigília pela memória do território. Não queria ver o bairro retalhado em placas de vende-se, a casa virando moeda depois da orla bonita erguida no encontro dos rios. “Botam dinheiro na gente, muito dinheiro, mas não tem preço que pague o pedaço de chão”, ela me disse, um dia, de dedo em riste e riso danado. E completou, como quem escreve aviso no portão do mundo: “já falei pra família: não vendam a minha casa. Se venderem, eu levanto do túmulo e puxo a orelha de cada um”. Gargalhava, mas eu vi firmeza na pontaria da promessa. A matriarca sabia que terra sem história vira cenário, e cenário não cria raiz.
O Cabelo Seco é quilombo antigo, gente que aprendeu a atravessar tempos ruins ancorada no banzeiro dos rios e na roda de vizinhos. Zefinha era esse fio de trança: puxava o passado, amarrava no presente e apontava caminho para as novas gerações. “Cada neto que ergue sua casa aqui, a gente segura mais um pedaço da nossa história”, ela dizia, convocando todo mundo pra dentro do terreno, como quem abre o tecido para crescer família e quintal. Não era só um conselho; era governo de afeto.
Soube que, na noite anterior, o corpo dela pediu socorro. Levaram-na ao Hospital Municipal, e, nas primeiras horas, o bairro recebeu a notícia que ninguém queria ouvir. O velório aconteceu na sala de sempre, com cheiro de café e arruda, e ontem, quarta, às 16h, o cortejo seguiu para o Cemitério São Miguel. A casa cheia de gente prova que caridade não é favor; é método de permanência. A cada vela acesa, uma lembrança se encosta na outra: o menino que sarou da febre, a moça que dormiu sem pesadelo, o velho que voltou a remar depois da reza.
Se você me perguntar quem foi Dona Zefinha, eu respondo sem tropeço: foi a senhora do tempo. O tempo do cuidado, do ouvir, do esperar o remédio fazer efeito, do sopro que diz “vai passar”. Foi também a mão de mãe do bairro, parideira de coragem. E, sobretudo, foi ponte: entre as folhas do quintal e a ciência do hospital, entre a reza antiga e o abalo do agora, entre a firmeza do “não vendam” e a pressa dos que confundem progresso com despejo.
Hoje, enquanto a água dos dois rios segue sua rotina de espelhos, eu penso no que nos cabe sem Zefinha. Porque o sagrado não é um milagre de longe; é tarefa de perto. É o modo como a gente segura a vizinha pela mão, distribui a última cuia de chá, defende a casa do assédio do dinheiro, chama o bairro pelo nome certo (Francisco Coelho, Cabelo Seco) e reconhece que aqui tem história, tem povo, tem santo que mora no hábito de acender uma vela e de dividir o pão.
Talvez a fé agora precise aprender novas roupas, sem abandonar a velha costura. Talvez alguém recolha no quintal as sementes de arruda e guiné, bata no pilão a lembrança das rezas, decore com o corpo a coreografia das benzeções. Não para imitar, mas para continuar: porque comunidade é verbo, não fotografia.
Eu me despeço da mestra com a impressão de que o bairro ficou mais comprido sem ela, como quando o rio seca e a gente vê o fundo do rio. Perdemos a última benzedeira, a última senha de um sagrado que falava nossa língua. Mas, se é verdade que certas promessas não dormem, eu ainda escuto, na esquina da praça, a risada de Dona Zefinha: “cuidem da casa, cuidem do povo, não vendam a memória”. E penso que, enquanto alguém obedecer a esse recado, a reza continua de pé — em nós.
* O autor é jornalista há 29 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.