Eu ainda sinto o chão vibrando quando fecho os olhos e lembro das noites no Yara Clube. Era sábado, era domingo, era qualquer desculpa que coubesse no bolso: minha galera da Folha 17 atravessava a cidade com a fome do ingresso e o coração pedindo pista. A regra era economizar a merenda a semana inteira e transformar moedas em luzes, som e suor. No portão, bastava ouvir o primeiro grave para saber que a cidade, por algumas horas, seria outra. Marabá ficava maior quando a gente empurrava a porta do Yara.
A casa de show era da Maria da Paz Ferreira, esposa do empresário e vereador Antônio Ferreira, o “Antônio Cabeludo”. E que ninguém duvide: ela entendia de gente e de negócio. Tinha faro. Sabia o que os adolescentes queriam antes mesmo de a gente descobrir. Sem ar-condicionado, sem paredes acústicas, sem aquela engenharia de saídas que hoje a burocracia impõe — e ainda bem que impõe —, o Yara dava conta do recado do único jeito possível naquela década de improvisos: entregando o som do momento. E como entregava.
A concorrência existia. O Canarinho, lá pela Folha 31, e o Panorama, no Novo Horizonte, disputavam público e suspiros. Mas nenhum deles tinha o brilho ligeiro do Yara, na Folha 26, vizinho do que hoje é o Amazon Center. Era como se as lâmpadas dali saltassem mais, como se a fumaça fizesse desenhos melhores, como se os passos ganhassem audácia só por encostarem naquele piso.
Leia mais:A MTV esparramava o mundo pelas nossas retinas. Michael Jackson reinava com Thriller, Bad, Smooth Criminal. Madonna, Prince, Whitney Houston, Cyndi Lauper acendiam cores no nosso fôlego. A gente não ia apenas dançar: ia provar que sabia. O dance break era a religião dos sábados. No silêncio de um compasso, a música “quebrava” e quem tinha nervo ficava no centro. Nilton, do nosso grupo, era o craque: moonwalk liso, giro rápido, pose final na ponta dos pés que arrancava gritos até de quem torcia contra. Teve noite em que ele levou o prêmio de melhor interpretação e a gente voltou para casa sentindo que havia, sim, um lugar no mundo para os que ousam.
E ali estava Maria da Paz, discreta de longe, atenta de perto. Enquanto a cidade ainda aprendia a medir palco e plateia, ela media o desejo do público com fita de costureira: comprava os discos certos, guiava o DJ, calibrava os concursos, animava os patrocinadores, punha ordem quando o entusiasmo ameaçava virar confusão. Muita gente acha que empreendedorismo é planilha; no Yara, eu aprendi que é escuta. Da Paz ouvia a rua. Ouvia os meninos sem merenda, as meninas com brilho nos olhos, os casais que queriam luz baixa para esquecer o resto. Ouvia a cidade que nascia e, de algum modo, carregava essa cidade para dentro do salão. Meu primo Joram foi o último DJ do Yara Clube entre os anos de 1989 a 1992. Me contou que até hoje ela guarda os discos daquele tempo. Fiquei com uma vontade de fazer uma reportagem sobre essa relíquia. Mas creio que não seja o momento.
Nada no velho Yara Clube era perfeito, e talvez por isso fosse tão vivo. O calor colava na pele, a caixa gritava além da conta, e a segurança era uma mistura de reza com sorte. Mas havia pertencimento. A gente se reconhecia no espelho de quem dançava ao lado. E, por trás do balcão, Maria da Paz contava ingressos, sim, mas antes disso contava histórias. Contava que Marabá podia ter um clube que competia com qualquer noite grande de cidade grande. Contava que uma mulher, no coração de um tempo tão masculino, podia abrir caminho à força de intuição e coragem. Contava que, quando o desejo coletivo encontra um teto, nasce um negócio — e, com ele, um símbolo.
O Yara foi escola sem sala. Aprendi ali que trabalho bem-feito tem cheiro — mistura de perfume barato, cabos aquecidos, laquê e esperança. Aprendi que curadoria é escolher a música que alguém não sabe que está precisando ouvir. Aprendi que empreendedor não é quem manda; é quem antecipa e sustenta. E nesse capítulo, é justo dizer: Maria da Paz foi pioneira. Num tempo sem algoritmos, ela hackeou o algoritmo da cidade.
Os anos passaram, a MTV virou museu de si, o moonwalk virou lembrança que dói no joelho, e a gente se espalhou. Mas toda vez que cruzo a Folha 26, eu ainda enxergo, por segundos, o bailado de sombras na parede, a mão de Nilton riscando o ar, a plateia em coro pedindo “mais um” — e a silhueta de Da Paz, firme, como quem vela uma chama.
Hoje, no entanto, escrevo com um nó na garganta. Maria da Paz, que ajudou a erguer noites, foi condenada em júri popular, aos 73 anos, acusada de envolvimento no assassinato de um vendedor de joias em 2021. A notícia bateu como pancada seca na madeira do palco antigo. Eu, que tantas vezes celebrei seu tino para os negócios e sua aposta na juventude, me vejo tropeçando entre lembrança e espanto. Não tenho procuração para julgar, não tenho competência para absolver. Tenho, sim, a memória de um empreendedorismo que fez diferença e o desconcerto de quem vê uma história se dobrar por um canto que não cabia no roteiro.
A cidade, que um dia coube inteira dentro do Yara, hoje tenta decifrar o que fazer com essa mistura de gratidão e tristeza. É possível reconhecer o valor do que se construiu e, ao mesmo tempo, lamentar profundamente o que se perdeu — sobretudo quando a perda se escreve com sangue e sentença. Fecho esta crônica como quem desliga as luzes depois do último encore: devagar, respeitando o silêncio. E, no escuro que fica, deixo meu lamento pela mulher que soube ouvir a rua e erguer um negócio do tamanho dos nossos sonhos — e pela ré condenada que, aos 73, vê o aplauso virar eco e a noite terminar em cadeia.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras