Correio de Carajás

Açúcar no café, sal na ferida e Raimundo só

Na beira do Rio Tocantins, na Velha Praça São Félix, tem um banco de concreto que já ouviu mais confissões do que muito confessionário de igreja. É lá que, quase todo fim de tarde, Seu Raimundo Padeiro esticava as pernas, cruzava os braços atrás da cabeça e esperava. Esperava o sol abaixar a crista, os pássaros cruzarem o céu em bando e conversar com os amigos/clientes que conquistava.

Raimundo era padeiro de bicicleta, desses que rodavam as ruas da Velha Marabá com uma caixa de madeira em uma cargueira e vendendo pão de porta em porta. E, como todo bom padeiro de bairro, conhecia mais gente que político em época de eleição. O pão dele era quente, mas o coração, mais ainda. Sempre dava fiado, esticava o troco pra quem precisava e ouvia desabafos entre uma parada e outra.

No início do garimpo de Serra Pelada, em 1981, rumou para aquelas bandas e tentou bamburrar. O dinheiro que pegou, mal deu para abrir uma padaria humilde na vila do velho garimpo. Dia desses fui por lá e conversei longamente com ele no balcão da padaria. Disse que gosta mesmo de receber amigos e bodejar.

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“É que amizade boa a gente faz no cheiro do café coado”, dizia, enquanto desenrolava os pães ainda fumegantes para um cliente.

Nos tempos áureos da Panificadora Esperança, a casa vivia cheia. Gente de todo canto vinha bater papo, contar vantagem, puxar conversa fiada e, principalmente, pedir favor. “Raimundinho, segura a conta aí pra mim esse mês?” ou “me arranja um dinheiro pra ir em Parauapebas numa consulta?”. E ele, bobo feito santo popular, dizia sim mais por hábito do que por vontade.

Só que o tempo é um padeiro impiedoso: sova, estica, molda, mas uma hora joga no forno. Veio a concorrência, a pandemia, os funcionários que foram embora… e a Panificadora Esperança fechou as portas numa manhã cinzenta de terça-feira do ano passado. Nem aviso na porta ele colocou. Só trancou a grade, passou a chave e respirou fundo — como quem entrega, enfim, o último pão da madrugada.

Desde então, a clientela sumiu. Os amigos, também.

Restaram dois ou três. Um aparece com frequência para jogar dominó na porta de sua casa, outro manda mensagem perguntando pela saúde da filha, que foi pra Belém estudar enfermagem. Mas os demais… Bem, os demais seguem vivendo como se o padeiro nunca tivesse feito parte da história da comunidade.

“É assim”, ele me disse, certa vez, enquanto me oferecia um café preto feito num coador de pano que parecia ter mais história do que eu. “Quando a gente tá na crista da onda, os amigos aparecem com sílabas de açúcar. Mas é só a maré baixar, que viram amigo do alheio: levam até a lembrança de que um dia estiveram contigo”.

Fiquei com aquilo na cabeça. Porque é verdade. Em Serra Pelada, Marabá — como em qualquer canto onde há gente com suas fragilidades — a amizade tem fases, como a lua sobre o Tocantins: cheia quando há fartura, minguante quando a sorte some. Só que há uma diferença entre os amigos da abundância e os da escassez: os primeiros gostam do que você tem; os segundos, do que você é.

Tem amigo que entra na tua vida feito cliente de padaria: quer o melhor, reclama do preço, exige atendimento rápido e ainda por cima espera brinde. E tem aqueles que ficam depois que o forno esfria, que aceitam café sem açúcar e silêncio no lugar da conversa.

Seu Raimundo, hoje, diz que está mais leve. Carrega menos nomes na lista de contatos, mas mais paz nas manhãs. Vez ou outra, recebe visita de antigos fregueses que lembram com carinho do pão doce recheado de banana ou da broa de milho da sexta-feira. Ele sorri, oferece uma cadeira, escuta. Mas já não empresta fiado, nem esperança.

“Amizade de verdade é aquela que, no engenho e na arte, tudo se reparte”, me disse, citando um poema que nem lembrava o autor. “Mas tem muita amizade por aí que é só negócio — e, desses, eu já fechei a conta faz tempo”.

A conversa terminou com ele olhando o lago que se formou no lugar do velho garimpo e dizendo:

“Hoje em dia, prefiro o silêncio. Ele nunca mente, nem pede nada em troca”.

E, com isso, aprendi que os verdadeiros amigos não aparecem só quando o pão sai do forno. Eles ficam mesmo quando só restou a farinha na prateleira e uma chaleira chiando no fogareiro.

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.