Na data em que se comemora o “Dia do Orgulho”, 28 de junho, o Correio de Carajás conversou com quem se olha no espelho e enxerga no reflexo que as marcas do tempo avançam pela face. A dualidade de emoções que surge a partir de então: o reconhecimento de que a juventude foi-se há muito tempo e a gratidão por ter chegado com vida até esse momento.
Para muitos, o envelhecimento é um fardo, para alguns, uma dádiva. Para quem chega até os 60 anos, ele é uma certeza. Para quem morre jovem, foi uma esperança. Para Dom Condeixa de Araújo, professor doutor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), o envelhecimento é um desafio.
Aos 59 anos, Dom viveu a infância, juventude e parte da idade adulta como uma mulher lésbica. Na meia idade, aos 50 anos, quando o processo de envelhecer fica pesado, ele se descobre como pessoa trans (identidade de gênero diferente do sexo atribuído ao nascer) masculina.
Leia mais:“Eu acho que o desafio de envelhecer, para todos e para mim, tá sendo olhar no espelho e ver as marcas disso. Sempre é um susto, e dei muita sorte porque quando eu me descubro pessoa trans, já estava na casa dos 50 anos. Desde então, tive que construir uma nova corporeidade e acho que isso me dá uma certa juventude”, reflete.
Em cerca de um ano, Dom vai atingir a terceira idade, poderá ter acesso às filas preferenciais e, talvez, comece a pensar na aposentadoria. Mas, ainda que o número 60 assuste quem se aproxima dele, para o professor esse horizonte é um presente. Ele ainda não tem certeza se durante o seu processo de transição vai optar por fazer cirurgia de redesignação de sexo, mas já toma hormônios. O impacto dessas decisões ainda é nebuloso, mas será consequência das escolhas que Dom tem o poder de fazer.
“Eu tive um percurso muito longo e já vivi muitas coisas. Por isso, hoje posso escolher e pensar no que quero para o meu caminho daqui pra frente. Porque, quando a vida já te mostrou tanto e você ganha de presente a chance de se repensar, passa a fazer escolhas que antes não podia. Talvez porque, com o tempo (supostamente), a gente aprende a escolher”.
Sendo LGBT+, principalmente uma pessoa trans masculina, Dom faz parte de uma parcela marginalizada da população. Por outro lado, é uma pessoa branca, concursada em uma instituição federal e pertencente à camada média, características que lhe dão privilégios que são negados a muitos brasileiros.
“O “muquezinho” que eu tenho hoje, eu não tinha. Eu tô mexendo no meu corpo, acompanhado de médicos fora do sudeste do Pará. Mas isso está atrelado também ao lugar social que eu ocupo, eu acho que é sempre mais fácil envelhecer quando você tem dinheiro do que quando você não tem”, admite.
Envelhecer enquanto pessoa trans masculina traz uma experiência diferente do envelhecimento feminino. Dom evidencia que, embora seu corpo ainda não tenha passado por muitas transformações físicas, a percepção social sobre homens e mulheres mais velhos lhe atinge. “Determinado público acha bonito homens com cabelo grisalho (como ele), mas não acontece o mesmo com as mulheres, que são muito rejeitadas pela sociedade ao envelhecer”. Essa diferença mostra que os padrões de gênero que influenciam o olhar social sobre o envelhecimento, atinge de maneira semelhante pessoas cis (cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi atribuído ao nascer) e trans.
Envelhecer carrega desafios universais, mas para quem é LGBT+ esses obstáculos ganham contornos particulares. Na geração de Dom, poucos têm filhos, com isso, a ilusão antiga de que os filhos serão os cuidadores na velhice se esvai.
“Antes, essa expectativa pesava muito, especialmente para nós. Agora, quem está envelhecendo sendo LGBT tem que ter grana pra ter cuidador, cuidar da saúde, tomar as vitaminas para ter mais sobrevida. Acho que isso tira um pouco o peso do envelhecer LGBT. Isso me tirou o peso do envelhecer, eu vou pagar por isso, estou cuidando da minha saúde para envelhecer bem”.
“A gente não pode fazer um ranking de quem sofre mais, se é a geração mais velha ou a mais nova”
“Não acho que hoje seja mais tranquilo ser LGBT do que era nos anos 80”, medita Dom Condeixa. A violência, especialmente contra a população trans, tem ceifado vidas ano a ano e nos últimos 14, o Brasil assume a posição de país em que mais se mata LGBTs no mundo.
Ainda que o número assustador reflita uma realidade recente, não dá para medir a dor em escala, não dá para dizer quem padeceu mais, se quem é mais velho ou quem ainda é novo. “A gente não pode fazer um ranking de quem sofre mais”, afirma com firmeza.
E, apesar do mundo parecer mais aberto, mais visível, não há conforto nessa ideia. Mas há um avanço sutil, ainda que desigual, talvez hoje seja mais fácil se culpar menos, se sentir menos sozinho. Ainda assim, a luta permanece nas entrelinhas, naqueles que por medo, calaram sua voz e sua identidade.
“Tem uma galera para quem a pessoa olha e se identifica com artistas, pessoas em cargos de relevância. Mas tem aqueles que não falam em seus espaços públicos, porque têm medo ou não querem assumir.” E não há uma obrigação imposta, porque resistir também pode ser escolher o silêncio como abrigo.
No espaço que ocupa hoje, diante da sala de aula, a missão de Dom foi convertida em ser exemplo para a juventude LGBT+. “Passei a me expor para que os jovens vissem em mim alguém que deu certo, que eles também podem dar certo”.
“Quando você diz quem você é, você evita que o outro queira te expor”
Houve um tempo em que uma geração precisou aprender a lidar com a própria identidade quando não se falava abertamente sobre ser gay ou lésbica. Eram “entendidos”. Os companheiros e companheiras não tinham nomes, eram “casos”, palavras que já deixavam clara a necessidade de esconder a verdade para sobreviver.
“Quando você diz quem você é, você evita que o outro queira te expor”, garante Dom Condeixa. Para ele, não se esconder não foi um gesto de bravura, mas uma estratégia de autoproteção. Porque o silêncio, para a comunidade LGBT, por mais que parecesse seguro, também era um campo minado pelas ameaças de ser revelado por terceiros.
“Na minha época, a chantagem familiar vinha na forma de ameaças sutis: ligar para a mãe e contar sobre sua sexualidade”. A arma silenciosa mantinha muitos encarcerados numa prisão invisível, a de quem escondia sua própria identidade.
Dom nunca se escondeu para a família ou para o mundo e quando entrou na sala de aula, especialmente na periferia, entendeu que sua presença era necessária. “Eu era a pessoa mais certa, de maior sucesso que aqueles jovens podiam ver naquele contexto”. Professor, mestre, LGBT, uma combinação rara que oferecia um exemplo vivo de que era possível.
Assumir essa missão de exposição, portanto, não foi só um ato pessoal, mas uma escolha política e pedagógica. Mostrar quem é, dizer alto e claro, não para ostentar, mas para abrir caminho. “Essa é a melhor forma de dizer: eu sou isso. Uma pessoa trans que estudou, que se formou, que deu certo”.
“É muito difícil você se sentir estranho na infância e na juventude”
Em 1982, quando Dom Condeixa tinha 15 ou 16 anos, a homossexualidade era confinada ao gueto, não se falava em identidade, não se discutia respeito, apenas o silêncio ou o estigma. “Só a partir dos anos 1990 começou a discussão se isso era doença ou não, e só em 2000 o Conselho Federal de Psicologia afirmou que não é doença e não pode ser tratado.” A infância e a juventude daquela época foram vividas nesse contexto: uma existência à margem, mesmo que fosse uma vida.
Nessa marginalidade, Dom cresceu numa família que escolheu o silêncio, onde vivia o que era possível e aceitava o que se podia. “Minhas companheiras eram chamadas de amigas da família, então eu nunca deixei de viver nada, mas hoje, mais velho, eu penso que isso era uma violência”. Outros da mesma geração buscaram a vida dupla: casamentos heterossexuais, infelicidade, e para alguns, tragédias irreversíveis.
Indo na contramão de décadas passadas, hoje as novas gerações constroem um caminho diferente. “Tem jovens de 20 e poucos anos cuja família sabe, que está tudo certo, ou que não está certo, mas que vivem isso com mais tranquilidade, sem se penalizar, sem se culpar tanto. Eu tô aprendendo com meus alunos e a geração mais nova como é não ser uma coisa ou outra, não fazer uma escolha definida”.
“Acho que a política não está na cultura da juventude daqui”
É preciso fortalecer as trincheiras da luta LGBT+ no sudeste paraense, especialmente em Marabá. A análise que Dom faz da região revela que os movimentos sociais ligados ao campo, aos povos originários e às pessoas pretas têm maior destaque em comparação com o ativismo da comunidade queer. Embora esteja na região há cerca de três anos, vindo do Rio de Janeiro, o professor percebe que o sudeste paraense — impulsionado pela força do agronegócio e da mineração — é, em sua essência, um território conservador.
Esse posicionamento, que não é apenas político, mas religioso e doméstico, pode ser o prego no caminho para que a juventude LGBT+ articule atos em prol da própria causa.
“Acho que também é uma falta que perpassa pela questão escolar, mas que é cultural”, explica. A ausência da política na vida da juventude não é apenas um reflexo da estrutura educacional, mas do tecido social que envolve e limita. Existem indivíduos pontuais, vozes isoladas que se fazem ouvir, mas um movimento consistente, sólido, coletivo, parece distante. Essa fragmentação é agravada por “uma briga histórica”, entre pessoas e grupos que deveriam caminhar juntos, mas acabam se separando. Para Dom, que veio de uma realidade onde as divergências permanecem dentro do movimento, fortalecendo-o, essa divisão “incomoda muito” e corrói a luta.
“O problema do sudeste paraense é político, nessa dimensão de fazer um movimento para que isso mude, para que seja mais tranquilo.” Essa tranquilidade, entretanto, ainda parece um horizonte distante, uma conquista que demanda resistência, organização e, sobretudo, união.
Ser parte da geração dos anos 1960 é carregar o desafio de navegar um caminho sem tantas facilidades, mas também a responsabilidade de abrir portas para quem vem depois.
“Eu vou passar, outros virão”, diz Dom, com a certeza de que sua existência pode ser ponte e abrigo para muitos. O desejo é claro: construir um futuro onde o apoio familiar e da comunidade seja mais presente, onde o envelhecer seja menos solitário e mais acolhido. Porque, afinal, mesmo que o trajeto ainda seja difícil, para Dom “é mais fácil envelhecer agora do que era antes”.
(Luciana Araújo)