Correio de Carajás

Camila de frente com a goiabeira no quintal

Maria do Socorro morava com a filha, Camila, num conjunto do Minha Casa Minha Vida no Bairro São Félix, em Marabá. A casa era simples, de paredes finas e chão de cerâmica gasta, mas para Maria era um palácio: depois de tantos anos em barracos de tábua, receber as chaves da casa própria fora um milagre. O quintal, de terra batida, abrigava uma goiabeira que dava sombra e um pouco de cor à paisagem cinzenta.

Maria tinha uma cicatriz profunda no rosto, que cruzava da sobrancelha ao queixo, lembrança de um acidente com gás de cozinha quando Camila era ainda bebê. O lado esquerdo da face ficou paralisado, o olho semicerrado, a boca caída — um rosto que assustava as crianças do bairro, que a chamavam de “cara-torta”. Maria, no entanto, nunca se importou. Bastava olhar para Camila e lembrar que a filha havia sobrevivido ao incêndio.

Camila, no começo, era só afeto. Pequena, beijava a mãe sem distinção de lado, agarrava-se a ela como se o mundo fosse feito só das duas. Na escola, porém, começaram os olhares, as risadinhas. “Camila, filha da cara-torta!” sussurravam as colegas. Camila passou a sair mais cedo, a dobrar esquinas para não andar com a mãe. Maria, que entendia tudo, apenas sorria de canto e oferecia o prato quente no jantar.

Leia mais:

O tempo passou. Camila virou uma moça bonita, olhos vivos, cabelos lisos que herdara do pai ausente. Arrumou emprego numa loja do shopping e, com ele, um namorado: Vinícius, estudante de engenharia, nascido e criado em Marabá Pioneira. Aos poucos, os jantares em casa rarearam. Quando vinha, era apressada, sem fome. Maria percebia, mas calava.

Uma noite, Camila chegou determinada. — Mãe, preciso conversar. Vinícius me convidou para morar com ele, lá no núcleo Cidade Nova. E… seria complicado a senhora ir, entende? O prédio é pequeno, ele recebe amigos, e… a senhora ficaria melhor aqui. Eu ajudo com dinheiro, claro.

Maria segurou o prato que lavava. As mãos enrugadas pararam no ar. Olhou para a filha, o lado bom do rosto tentando sorrir, o lado paralisado, imóvel. — Entendo, minha filha. Só quero que seja feliz.

Camila respirou aliviada, beijou-lhe a mão e saiu. Maria passou a noite acordada, sentada no sofá, a televisão ligada no volume baixo. O som abafado era companhia para as lágrimas que não vinham. Na manhã seguinte, lavou as roupas da filha, separou as blusas favoritas e deixou-as na cama, bem dobradas.

Semanas se passaram. Camila pouco aparecia. Vinícius achava o bairro perigoso, “longe de tudo”. Maria, sozinha, começava a conversar com a goiabeira no quintal, como quem busca eco no silêncio.

Numa tarde de domingo, quando o calor parecia espremer o ar, Camila chegou às pressas com Vinícius. — Mãe, precisamos falar. Vamos casar. E… bem… eu queria que não viesse na cerimônia. É no clube, um lugar chique, sabe? Mas a gente grava tudo, vai te mostrar…

Maria sentiu um peso no peito. — Não se preocupe, filha. Eu entendo.

Vinícius sorriu, satisfeito. Camila hesitou, mas não voltou atrás. Saíram rapidamente, deixando atrás um rastro de perfume caro e um nó apertado no peito de Maria.

Na noite do casamento, Maria sentou-se na rede da varanda, vestindo o único vestido bonito que tinha, azul-claro, guardado para ocasiões especiais. O som da festa chegava apenas como um sussurro distante na noite abafada de Marabá. Maria fechou os olhos e, pela primeira vez em muitos anos, tocou a cicatriz no rosto sem ressentimento. Sussurrou para si mesma: — Eu te perdoo, filha.

Algumas semanas depois, Camila recebeu uma carta simples, dobrada com cuidado. Dentro, apenas uma frase, escrita com a caligrafia torta de Maria: “Os olhos que você rejeita foram os que velaram seu sono.”

Camila chorou pela primeira vez em muito tempo. Correu pela Cidade Nova, cruzou a ponte, atravessou as ruas de terra do São Félix e chegou à casa, ofegante. Encontrou a goiabeira balançando ao vento, a rede vazia na varanda. E soube, antes de ouvir qualquer palavra, que não haveria mais tempo para desculpas.

 

 

 

* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.