O palco é um bar, na verdade um antigo restaurante na periferia da Nova Marabá. Não! Nem bar nem restaurante, mas um local amplo que pela sua decadência deixou de servir somente comida para famílias do bairro e passou a fornecer bebidas e espetinho para escapar da falência.
É meu ambiente em pelo menos duas bocas de noite na semana, quando me aguardo o ensaio de minha sobrinha Ester terminar na Folha 21.
Tenho preferência pelas mesas que dão vista para a praça, assim vejo o palco da rua quando o tablado do bar-restaurante não se mostra interessante.
Leia mais:O velhinho chega invariavelmente pela rampa larga de cimento grosso, caminha com seu passinho curto de idoso, quase sem levantar os pés, como se se arrastasse num balé miudinho, quase tropeço-quase dança: vem com seu celular na mão esquerda, enrolado pelo fio longo do fone de ouvido. Senta-se à mesa de sempre (já o vi esperando atento uma boa meia hora um casal desocupar seu lugar cativo), por trás de uma coluna, de costas para a rua, e estabelece o já gasto ritual, afasta a cadeira para junto da mesa e começa a longa tarefa de desenrolar o emaranhado de fios do fone de ouvido do celular… não parece uma tarefa fácil, leva tempo, se atrapalha, dá vontade de ir lá ajudá-lo.
Depois chama o garçom e espera invariavelmente uma das duas garrafas marcadas com risco de caneta as doses já tomadas: dias de uísque, outros de Campari; porém já houve dia dos dois juntos, um do lado direito e o outro no meio, pois do lado esquerdo estará sempre o celular com seu fone atrapalhado. Nessas noites de duplas bebidas pede gelos separados, um no copo largo de uísque, outro na jarrinha – não macula nunca o uísque com o gelo do Campari; as rodelas de limão num pratinho.
Uma vez não concordou com a risca do marcador do uísque, levantou-se e foi rastejando ao balcão, onde explicou o local correto.
Às vezes se cansa da música e inicia um diálogo surdo consigo mesmo, gesticula assustando o garçom ou o vizinho de mesa, dá de cabeça e volta a sua mudez atenta no ritual da bebida, tantos cubos de gelo, uma dose precisa conferida com a unha do indicador.
O outro personagem é rápido e barulhento. Entra correndo e salta os degraus de dois em dois, três em três; quando os pais sentam na mesa do fundo ela já deu várias voltas e mexeu com os garçons. Os pais não ligam para suas traquinagens, como ele se fosse invisível ou achassem bem comum aquela eletricidade toda.
Quando vai para a mesa, ajeita com cuidado os brinquedos que os pais trouxeram. Volta a correr e parece circular num plano paralelo ao movimento do salão. Uma única vez parou à frente do velho e, também pela primeira vez, expiou atento; o senhorzinho, sempre fechado em seu mundo, sequer levantou a cabeça.
Não parecem fadado ao mesmo espaço físico, ao mesmo tempo; um existe apesar do outro (portanto, em planos espaciais e temporais diferentes, explica o diretor).
Apenas uma vez os dois se cruzaram.
Nessa noite a peça não arrancou aplauso da plateia; nem os garçons ficaram atentos aos movimentos dispersos. Pareciam dois bonecos de engonço manipulados por dois artistas diferentes (marionetes de dois mundos indiferentes).
Mas naquela noite, algo escorregou fora do script. O menino, no meio de uma de suas corridas elétricas, tropeçou justamente na perna da cadeira do velho. Um tropeço leve, sem estrago, mas o suficiente para fazê-lo cair sentado no chão. O velho, pela primeira vez em todas as noites, ergueu os olhos. Primeiro para a perna da cadeira, depois para o menino no chão. Não houve bronca, nem susto, nem sequer um gesto ríspido. Apenas um olhar fixo, quase espantado, como quem percebe de repente que a plateia existe. O menino também congelou, olhos enormes, as bochechas rubras de quem havia sido surpreendido em cena.
O silêncio durou apenas alguns segundos. O velho, com um movimento vagaroso e quase solene, estendeu a mão — não para ajudar o menino a levantar, mas para entregar-lhe o fone de ouvido, cujos fios finalmente haviam se desenrolado sozinhos no tombo. O menino segurou o objeto como se fosse um tesouro, olhou o senhor nos olhos e, com a sabedoria que só as crianças têm, disparou um sorriso rasgado, daqueles que iluminam até o canto mais escuro de um bar decadente. O velho, surpreso com a própria reação, permitiu-se um esboço de sorriso, um levantar tímido de canto de boca, antes de voltar os olhos para o copo meio cheio.
Na semana seguinte, o velho não apareceu. Nem na outra. O garçom comentou com alguém, meio por alto, que tinha ouvido dizer que ele tinha ido “visitar uns parentes no Sul” — embora ninguém nunca o tivesse visto com família. Já o menino seguiu suas correrias, mas agora, de vez em quando, fazia uma pausa breve junto à mesa vazia, como quem procura alguma coisa. E foi numa dessas noites que o garçom, limpando a mesa do velho, encontrou embaixo dela um bilhete dobrado, com uma única frase escrita à mão trêmula: “Obrigado pelo aplauso, maestro.”
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.