Quando Clara desceu do ônibus naquela manhã abafada de outubro, o coração pulsava forte no peito. Marabá ainda era a mesma cidade de ruas quentes e poeira fina que ela conhecia das poucas visitas com os pais durante viagens rápidas ou nas férias. Mas agora, tudo parecia diferente. Não era mais uma passagem breve; era o começo de uma nova etapa na sua vida.
Ela tinha vindo da zona rural, onde morava em uma casa humilde a 10 Km da Vila União, na Estrada do Rio Preto, e só saía de casa para ir à escola, no ônibus da prefeitura. Foi ali, pela primeira vez, que ela teve contato com livros paradidáticos, quando foi apresentada a eles pela professora de Português.
Os dias de Clara se dividiam entre ajudar a mãe na cozinha e alimentar as galinhas no terreiro, ou para ir apanhar milho com o pai na roça, tarefa que ela gostava muito.
Leia mais:Ao chegar à cidade, Clara sentia-se estranha diante dos prédios, do barulho e do movimento incessante da cidade. Mas não havia tempo para se perder em estranhamentos. A casa da prima Simone, no Novo Horizonte, era agora seu lar, e ali ela teria um papel importante: cuidar das sobrinhas enquanto a prima saía cedo para o trabalho.
As manhãs passaram a ser um turbilhão de fraldas, mamadeiras e histórias inventadas para acalmar as pequenas. Aos poucos, Clara aprendeu o ritmo da casa, organizando o dia entre banhos apressados e brinquedos espalhados pelo chão. Entre uma tarefa e outra, sempre encontrava um tempinho para o que mais gostava: ler. Guardava seus livros em uma caixa de papelão ao lado da cama e, nas raras pausas, pegava um deles, deixando-se levar para outros mundos.
À tarde, veste o uniforme da Escola Geraldo Veloso, vai a pé e chega ao portão com um sorriso tímido. Enquanto aguarda a aula começar, isola-se em uma cadeira no hall em frente à secretaria e mergulha, de novo e de novo, no livro da vez.
Foi ali que a vi várias vezes entre janeiro e fevereiro deste ano, até me intrometer em sua história para entender seu mudo, seu tempo de leitura e perguntar detalhes de sua vida. Tímida, revelou que veio para Marabá porque precisava estudar em uma escola melhor e também revelou seus sonhos de adolescente que ainda está indecisa sobre o futuro profissional.
Disse que costuma dedicar entre duas a três horas por dia para a leitura de livros variados, como ficção, romance e preferiu não citar mangá.
Para Clara, a sala de aula é um desafio: alunos barulhentos, professores exigentes e matérias que, às vezes, parecem escritas em outra língua. Mas Clara gosta de aprender. Gosta de decifrar as palavras dos livros didáticos, gosta da sensação de entender algo novo, como se abrisse mais uma porta para um mundo desconhecido.
À noite, quando a casa silenciava e as sobrinhas já estão dormindo, Clara se refugia em suas histórias. Os livros que pega na biblioteca da escola são seu passaporte para aventuras grandiosas. Viaja com cavalheiros de tempos antigos, voa sobre cidades distantes e desvenda mistérios ao lado de personagens inesquecíveis. Ama a literatura estrangeira, o fantástico, o improvável. Sente-se parte daquelas narrativas, como se, ao virar cada página, também escreva a sua própria história.
E assim os dias vão passando, misturando realidade e sonho. Clara sabe que sua vida está apenas começando e que muitas páginas ainda serão escritas. Mas, por enquanto, todos os dias, naquela cadeira da sala de espera da secretaria da escola, sentada com um livro aberto sobre o colo, sente exatamente onde deve estar: entre palavras e possibilidades infinitas.
* O autor é jornalista em Marabá há 28 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.