Correio de Carajás

Brasil tem condições de adotar uma política externa agressiva à la Trump?

O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, já deu indicações de que pretende seguir, na política externa, estilo semelhante ao do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Desde a campanha eleitoral, o plano de governo de Bolsonaro falava em deixar “de louvar ditaduras assassinas e desprezar ou mesmo atacar democracias importantes como EUA, Israel e Itália”. Um de seus primeiros e mais controversos anúncios depois da eleição, além disso, foi o de que pretendia transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, o que, na prática, representaria um reconhecimento da cidade como capital israelense.

Trump já fez isso. Em maio deste ano, transferiu a embaixada dos Estados Unidos em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém, a primeira de uma série de iniciativas que contrariavam a política externa tradicional americana, como a guerra comercial que o presidente americano iniciou com a China – cuja relação com o Brasil também foi criticada por Bolsonaro.

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A escolha de Bolsonaro de seu futuro ministro de Relações Exteriores reforça a ideia de que sua política externa seguirá os passos de Trump. Anunciado nesta semana para o cargo, o embaixador Ernesto Araújo é um admirador do presidente americano. Em um artigo publicado em um periódico diplomático, compara o presidente americano a Ronald Reagan e Winston Churchill, e diz que sua política externa é “romântica” porque recupera “os heróis e o sentido do destino”. Celebra o “pan-nacionalismo” de Trump, espécie de nacionalismo que afirmaria todo o Ocidente, e convida o Brasil a refletir se também quer fazer parte desse grupo.

“O povo brasileiro parece ser autêntica e profundamente nacionalista e, desse modo, o Brasil não teria por que sentir-se desconfortável diante de um projeto de recuperação da alma do Ocidente a partir do sentimento nacional.”

Mas será que o Brasil tem condições para bancar uma política externa ao estilo da adotada pelos Estados Unidos? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem acreditar que o Brasil teria mais a perder do que a ganhar, pois faltam ao país o peso diplomático e o poder de barganha internacional dos EUA. “Nós não temos como bancar isso. Os Estados Unidos ainda são uma potência política, econômica e militar, ao contrário do Brasil”, diz Elga Lessa, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal da Bahia.

O risco de retaliações

O que, de fato, difere na adoção de políticas consideradas mais agressivas pelos Estados Unidos e pelo Brasil?

A principal é que o Brasil pode sofrer retaliações – e perder com isso.

Segundo Elaini Cristina Gonzaga da Silva, professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, os países fazem uma espécie de cálculo para verificar o quanto perdem se cortarem ou deteriorarem relações com outro.

O cálculo leva em conta, principalmente, o poder comercial, que é o quanto um país depende da exportação para outro e qual é o impacto que o país sentirá se parar de importar daquele país, o chamado poder de barganha; e o poder financeiro, medido pela quantidade de dívidas públicas e privadas com determinado país. É preciso considerar, por exemplo, o volume de empréstimos concedidos por bancos locais para agentes no exterior e vice-versa.

Também considera o poderio militar – embora, como ela ressalta, não seja o principal elemento a ser levado em conta, já que hoje em dia “o uso da força para negociar” não é tão valorizado na diplomacia.

Presidente eleito Jair Bolsonaro em uma sessão no Congresso em Brasília
Depois que Bolsonaro anunciou a possibilidade de mudar a embaixada, Egito cancelou uma visita do ministro de Relações Exteriores brasileiro ao país/ REUTERS

“O Brasil não tem o poder de se projetar militar e economicamente. Só tem vontade – e isso tem suas limitações”, diz Peter Kingstone, professor do Departamento de Desenvolvimento Internacional do King’s College em Londres.

Perde-se muito menos rompendo com o Brasil, porque o país não tem poder político, econômico e militar tão imprescindíveis, do que rompendo com os Estados Unidos.

“Todos os países dependem de alguma maneira ou outra dos Estados Unidos”, diz o cientista político Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“O Brasil pagará um custo muito maior se de fato implementar uma política externa parecida com a dos Estados Unidos. Se um país avaliar que a atuação brasileira tem impacto negativo para seus interesses, o custo de se afastar do Brasil é muito menor do que se afastar dos Estados Unidos.”

Por isso, diz Silva, da PUC, “uma coisa é os Estados Unidos mudarem a embaixada de lugar, outra coisa é o Brasil”. “Os países que eventualmente vão reagir à mudança de embaixada do Brasil vão ter muito menos impacto econômico, político e militar com uma disputa com o Brasil do que teriam com os Estados Unidos.”

Moderação

Após críticas, Bolsonaro deu sinais de que as propostas apresentadas durante a campanha não estão tão definidas assim, indicando que pode haver certa moderação quando as medidas forem postas em prática.

Sobre a mudança de embaixada para Jerusalém, uma de suas promessas de campanha, disse na semana passada que “não está decidida ainda”. Sua declaração foi feita após o Egito cancelar um compromisso diplomático com o Brasil.

Bolsonaro também havia criticado os investimentos chineses no Brasil. Ele chegou a dizer que a China não estaria comprando do Brasil e sim comprando o Brasil. Na semana retrasada, no entanto, disse: “pode ter certeza que o nosso comércio pode ser até ampliado”. A China é o principal parceiro comercial do Brasil.

Segundo Kingstone, as medidas anunciadas por Bolsonaro “certamente indicam que ele quer promover grandes mudanças”, mas seus recuos não deixam claro o que ele vai fazer exatamente. “Minha preocupação é a seguinte: quem é errático durante a campanha normalmente também é errático durante a gestão.”

Para Elga Lessa, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, as medidas que o presidente eleito quer promover pode “encontrar resistência dentro do Itamaraty”.

Bandeiras brasileira e israelense na Embaixada do Brasil em Tel Aviv
Aproximação também é vista como aceno a eleitorado evangélico, que é pró-Israel/ AFP

O exemplo do efeito do discurso sobre a carne halal

Se não houve retaliação em relação à mudança da embaixada conduzida pelos Estados Unidos em Israel, o anúncio de uma ação espelhada do Brasil já trouxe reação.

“A reação do Egito à decisão de Trump foi muito diferente à reação ao anúncio brasileiro. Não há nenhum país do mundo que consiga articular sua política externa independentemente dos Estados Unidos”, afirma Stuenkel.

“Todos têm que falar com o Trump, mesmo se não quiserem”, diz Kingstone. “O Brasil pode pagar um preço mais alto.”

O que uma possível repreensão dos países árabes poderia causar? Pode gerar impacto, principalmente, em uma questão comercial: a exportação de carne brasileira.

Isso porque o Brasil é líder na exportação de carne halal no mundo. Muçulmanos comem carne preparadas a partir de uma técnica sagrada de abate, o “halal”, descrito no Alcorão.

Dados da Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes) mostram que as exportações de carne halal corresponderam a 29% do total das exportações brasileiras de carne bovina em janeiro a setembro de 2018, por exemplo.

A exportação a países árabes nesse período correspondeu a US$ 769 milhões. E de frango halal, ainda mais: segundo a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal), o valor com a exportação chegou a US$ 2 bilhões nesse período. Em 2017, um total de US$ 3,2 bilhões.

Bandeira de Israel em Jerusalém
Quase um terço das exportações de carne do Brasil é para países árabes, negócio que pode ser comprometido pelo alinhamento com Israel na questão sobre Jerusalém/ AFP

Buscar parcerias em blocos, e menos bilateralismo

Não poder se portar como os Estados Unidos, no entanto, não significa que o Brasil não tenha como se projetar no cenário internacional.

O país tem uma tradição de “não focar em rupturas”, diz Elga Lessa, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, e “depende muito do sistema multilateral”, segundo Stuenkel.

Significa que tem buscado, por meio de sua política externa, atuar em bloco com outros países, e não por meio de negociações bilaterais. “Individualmente, o Brasil tem menos força do que em conjunto – foi isso que levou à criação do Mercosul. Não uma aproximação ideológica, mas por uma tentativa de otimizar os esforços e usar o bloco como uma plataforma de negociação com outros atores”, diz Silva, da PUC.

Para entender o poder de negociação de cada país, a professora também diz que é preciso pensar nas diferentes categorias de países: os desenvolvidos, “que são o motor de desenvolvimento do sistema internacional”, e os em desenvolvimento, “que dependem e respondem às demandas dos desenvolvidos” ou potências e potências emergentes – nomenclaturas que surgiram nos anos 1990.

“Nem todos têm as mesmas possibilidades de influenciar o sistema”, afirma. O Brasil, “historicamente um país em desenvolvimento”, segundo ela, segue uma política externa condizente com sua posição nesse espectro. “O Brasil não é os Estados Unidos e o Brasil não é o Paraguai.”

O principal poder brasileiro, na opinião da professora da PUC, é o “soft power” – habilidade de um país de influenciar a política externa por meios culturais ou ideológicos.

Então, o que o Brasil pode fazer?

“A política externa do Brasil em seu melhor momento é quando o país trabalha em silêncio com outros países. Seu ‘espaço de manobra’ é o fato de que todo mundo gosta do Brasil”, afirma Kingstone.

Para ele, o Brasil já mostrou diversas vezes, sob os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, que exerce um certo poder regional, mas sem uma “mão pesada”.

Agora, em sua visão, o Brasil se sairia bem se liderasse um esforço regional – até, possivelmente, ao lado dos Estados Unidos – para ajudar a Venezuela em sua crise humanitária, pressionando o governo para uma saída democratizante.

Kingstone dá razão a Bolsonaro nas críticas que o presidente eleito faz ao PT: “A política externa do Brasil, nessa frente, foi hipócrita. Não dá para dizer que quer abraçar os direitos humanos e a democracia e depois dizer que é amigo da Venezuela, de Cuba, do Irã”.

E havia “conotação ideológica”, como critica Bolsonaro, na política externa conduzida pelo PT? “Toda política externa é ideológica”, responde Stuenkel. “A crítica de que política externa é ideológica existe em todos os governos.”

Kingstone lembra que a política externa é uma das áreas onde presidentes brasileiros têm maior poder de atuar sem se submeter a aprovação legislativa e, portanto, onde é possível fazer grandes mudanças.

A questão é entender para que lado o Brasil vai pender na política externa, já que Bolsonaro já recuou em declarações e também porque a política externa tende a refletir a política econômica – e Bolsonaro deu declarações tanto nacionalistas quanto no sentido contrário, falando em abertura econômica. (BBC)