Minha mãe já foi mordida por uma cobra, sobreviveu a dois baleamentos, enfrentou 12 enchentes e passou por quatro maridos tóxicos. Nada disso a abalou.
Mas o “alemão” que a espera para levá-la embora – como se refere à doença de Alzheimer – esse tira Maria José do sério. E tudo piora quando alguém diz: “Imagina, você está ótima”. Nessas horas, ela gostaria que a pessoa pudesse ver seu cérebro minguando.
Hoje, se lava a cabeça ao tomar banho, esquece de tirar o xampu. Os sabores mudaram e o adorado picolé de coco saiu de cena para dar espaço ao açaí. Ela passou a ter medo de ventania, medo de coisas novas e um medo terrível da máquina de costura, foco de um dos muitos cursos feitos nas últimas décadas.
Leia mais:Ela não sabia nada sobre Alzheimer. Quando a médica lhe contou que era Alzheimer, pensou: ‘Vou dar conta de continuar morando sozinha’. Sempre deu conta de outras doenças, de tudo. ‘Eu vou dar conta.’
Não sabia a extensão, ainda por causa da ideia que quem tem Alzheimer esquece tudo. Só esquece. Não, o global do Alzheimer é bem pior do que esquecer. A frustração de não lembrar-se de coisas simples é o pior.
Embora tivesse 78 anos quando foi diagnosticada (agora tem 81), esquecer é mole. Mas e as partes que sabe que sabia e fica quebrando a cabeça? “Como é que eu não sei mais?”, questiona.
Uma das coisas mais difíceis é não sentir que está querendo fazer xixi. Não dá para ir para o banheiro porque não veio o aviso, o cérebro não registrou “eu vou fazer xixi”. De repente, ela estava na cozinha e o xixi saía. Isso era muito ruim.
O fato piorou ano passado, mais precisamente em novembro, quando sofreu um AVC isquêmico leve e precisou parar de fazer caminhada, sua principal atividade diária. Eram cerca de 15 quilômetros por dia, logo na primeira hora da manhã. Aquilo a mantinha ativa, se sentindo “jovem”, como dizia.
A partir dali, começou a usar fraldas. No início, a adaptação, foi terrível. Agora, depois, passou a brincar com a doença e com a necessidade da fralda e cantarola uma música no carro, enquanto dirijo entre a casa da minha irmã para a minha, onde ela vai passar o final de semana: “Estou indo embora, o alemão está lá fora, fica só me acenando. Viu minha música? O alemão é o Alzheimer”.
Dor invisível
Como mamãe mora com minha irmã mais velha na Folha 17, ela me enviava áudio quase todo dia, desejando bom trabalho e a proteção de Deus. Nos últimos dias, com o esquecimento mais forte ainda, quando não sabe mais o nome de um objeto, uso a palavra “coisa” e lança o verbo coisar. E: “Estou coisada, quando descoisar eu volto”. Inclusive hoje, com certeza, vou coisar mais tarde. À tarde vou coisar totalmente porque estou tendo uma manhã bem boa, mas ela me tira muita energia”.
Se vai pedir para comprar xampu, hidratante ou alguma outra coisa, passa áudio e durante um minuto e meio esquece o que ia pedir e chora, falando do tal alemão que a persegue.
No último sábado, ela passou o dia comigo e percebi que foi a ocasião em que a achei mais debilitada nos últimos meses. Estava aérea, não se lembrava de fatos que eu lhe dizia 5 minutos antes.
Já não reclama mais por nada, nem mesmo da porta de casa aberta, como costumava fazer a cada final de semana. Não se lembra que já comeu, e por isso vai à cozinha a cada meia hora, belisca uma coisa, mastiga outra e perdeu o controle do estilo de vida que ela tanto prezava antes de o alemão aparecer em sua vida.
Nessas horas, dá saudade de ter uma mãe detalhista, que se envolve em tudo, que organizava tudo meticulosamente em seu quarto, que nunca gostou de sujeira e até mesmo esfregava a roupa na minha cara quando achava que estava mal lavada.
Já percebi que existem dois tipos de Alzheimer: o veloz e furioso e o lento e inexorável, que é o caso de minha mãe. Mas, na realidade, nenhum Alzheimer é igual ao outro. Nenhum.
* O autor é jornalista há 28 anos e publica crônica às quintas-feiras