Enquanto cruzava a ponte rodoferroviária na última semana, olhei para baixo, à esquerda, e contemplei a pequena comunidade que cresceu em torno da Rampa do Zero, uma localidade onde a balsa atracava para ligar o Bairro São Félix à Nova Marabá, atravessando o largo Rio Tocantins.
Naquele momento, uma lembrança da infância, dos anos 80, entrou no vão dos meus silêncios, talvez porque estava a ouvir a rádio CORREIO FM com músicas de antigamente. Aí, do nada, a história do velho Toim Pescador me fisgou para o passado.
Ao volante do carro, recordava de uma família desprivilegiada que vivia ali, próximo à Rampa do Zero. Uma ocupação de pessoas sem grandes posses, que beirava o rio e dele vivia, fosse para vender chope para quem passava para lá ou para cá, ou ainda para ficar mais perto do rio que os alimentava.
Leia mais:Por ironia, aquela comunidade outrora de gente trabalhadora, se tornou uma favela, hoje, territorializada pelas facções criminosas.
E é por lá que existiu um pescador que nunca conheceu, enquanto viveu, um desses “privilégios” experimentados pelos que escrevem a história do poder oficial. Imaginar seu Toim? Nunca recebeu um salário, fosse de servidor público, fosse de CLT.
Seu Toim era pescador de nascença e precisão. Não recebia vale transporte, não tinha a garantia do FGTS, muito menos do INSS para o quase futuro.
Diferente dos homens de contracheque, daqueles que construíram a primeira ponte, por exemplo, Seu Toim só tinha algum dinheiro se o rio lhe oferecesse peixes.
Seu Toim, um desprivilegiado da laia debaixo, parecia não ser ninguém quando estava longe do rio, na Folha 5, 10, 17, com um cambo de peixe, só lembrado quando gritava com eles nas ruas: olha peixe, pacu, curimatá e pescada.
Viveu sem a esposa da metade de sua vida pra frente, quando a moça resolveu amar outro homem que não fosse do rio.
A tristeza pode até ter devastado os interiores dele, o desamor repentino! Mas continuou a amar o rio. Ou aturá-lo, pois dali era a existência dele e de quatro filhos que decidiram terminar de ser criados pelo pescador.
Um apanhador de peixes, negro e pobre, provavelmente com ancestrais escravizados, e que o inexplicável destino o pôs na beira do rio. Por algum acaso ou dimensão desconhecida, o Universo o fez ser parido ali.
É quase impossível essa sociedade dos abastados – dos desembargadores, dos juízes, dos promotores, dos procuradores, dos conselheiros, dos governadores, dos prefeitos, dos vereadores, dos deputados, de delegados, de oficiais militares, de empresários… – largar mão dos privilégios da vantagem criado pelo invasor luso-católico. Pelo europeu.
Foram 388 anos de escravização no Pará e no restante do País! Muito tempo, quase quatro séculos de uma elite vivendo do tráfico humano, da tortura e do assassinato de quem foi exaurido no trabalho escravizado.
Há uma perpetuação do privilégio no corpo de quem tem “poder” ou dos que chegam no andar de cima, mesmo vindo do canelau. E o discurso não muda nada.
A casa desprovida de seu Toim, toda ela, fedia a peixe. Pra ele cheirava ao rio. O chão era cheio de espinhas e ossos de peixes miúdos e graúdos. Milhões de vidas!
As paredes impregnadas de escamas, do fartum das raiadas de sangue das vísceras e das guelras das curimatás ovadas, das barbatanas dos fidalgos e dos surubins que foram rareando com a privatização do entorno do rio, pescarias predatórias e o lixo que se espalhou pelas margens…
O Velho Toim desapareceu nos anos seguintes, quando eu saí da cidade para estudar. Não sei se algum de seus quatro filhos quis manter a profissão do pai e herdar o fedor de peixe.
Pescar, agora, está deixando de ser uma profissão e se transformando em um hobby, porque viver da pescaria de rio é uma profissão em extinção. Os peixes saíram dos rios e se mudaram para os lagos artificiais, onde começam como alevinos e viraram rapidamente um número dentro de criatório, com ração a vontade e uma rede que vai aparecer no dia que o patrão quiser.
E ninguém por lá fica com cheiro de Toim.
* O autor é jornalista há 28 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.