Correio de Carajás

A comilança sem fim no velório de três dias

A grunhidela seguiu-se de um berro horrendo e infindo. Assaltou os cômodos e vazou pela rua, despertando quem ainda não tinha acordado com os galos. Um bairro de muitos galos. Em toda casa havia um ou dois. Cantantes, madrugadores. Uns afinados, outros irritantes.

Arrepiaram-se com o gemido. O avô de Genildo não havia amanhecido vivo e a velha não parava de se esgoelar. Gritava porque era mouca. Militar da reserva, Gilberto definhara nos últimos três anos. Coronárias, acidentes vasculares cerebrais e um retorno repentino e oscilante entre a infância e adolescência – mostrando que a mente já padecia de viagens para o mundo do passado.

Um velho bondoso, afável. Talvez por isso o motivo da velha abrir o berreiro e quase secar as lágrimas. Passou mal, desidratou e teve de ser acudida na veia. Entorpecida, atolada nos calmantes voltou a se derramar pelos olhos. Acabou sendo levada para o Hospital Municipal, como se não fosse viver no dia seguinte.

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Em casa, escolheram o fardão de galões e assearam o melhor cômodo do casarão para o velório de seu Gilberto. No andar de cima, no próprio quarto onde o casal fez quatro varões e três fêmeas. Elas, todas tias, coroas conhecidas na Nova Marabá. Um filho apenas foi ser militar no Quartel do Oito, mas não passara de praça.

Os outros, dois desbandelados. O mais novo diziam ter virado gente, fez curso superior, casou-se com uma fresca e era considerado o esnobe da família. Nem era, apenas não se dava com o fuxico e o entra-e-sai de gente pobre na casa.

O velório do velho foi motivo de patuscada. Veio a família quase toda, magotes de todas as folhas da Nova Marabá e alguns militares desativados. Gente que passava pelo defunto e descia pra se abancar na mesa grande de comer. Um café, bolachinhas, fofocas, galanteios e conversas bestas.

As tias, preocupadas com as falações, providenciaram merenda das nove. Depois resolveram sangrar um carneiro que engordava há seis meses no quintal. Ele e um barrão. Não deram vencimento. Mataram, também, as galinhas pé-duro e as de granja – poedeiras de ovos de duas gemas.

Eu mesmo fui lá, não pelo velho, mas pelo neto dele, que fora meu colega de Pequeno Príncipe e sempre aparecia com a galera para um vôlei de final de semana no Clube da Vale, na Folha 17. E, também, comi, não vou mentir. Quanto mais distante do defunto, mais parece que a gente come e conversa em velório. Ainda mais se somos adolescentes.

Os adultos atravessaram a noite, e os que chegavam nem mais subiam pra olhar o morto. Assentavam-se e engordavam na comilança que parecia não acabar nunca. Na manhã seguinte, com os galos, serviram-se de café, leite e carne-de-lata comprada na bodega. Novamente outra boquinha. Sardinha. Fizeram burburinho pra saber o que ofereceriam no almoço novo.

Foi mão-de-vaca. Gorda. Não deu pra todo mundo. Compraram feijoada de lata. O que restava no mercadinho. Uma alma, menos sanguessuga, trouxe uma manta de toucinho e farinha. Torresmo pra quem não estava de resguardo. Mastigavam, conversavam, zoavam, bebiam, palitavam e chupavam os dentes. Soltavam bufas.

O velório não acabava nunca porque aguardavam uma irmã do defunto que vinha de Goiânia a bordo de um Transbrasiliana que catava mamona e parava em toda esquina.

E comida nos convidados.

No fim de três dias, uma rabada. Empanturraram-se todos. Empanzinados, abarrotados, enfartados. Empapuçados. Tomaram chá de erva-cidreira. Muito. Enquanto o velho se desmanchava no andar de cima.

* O autor é jornalista há 27 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.