Tenho duas bibliotecas físicas. Uma em casa, onde meus livros se dividem com os de Ana Raquel, e outra no trabalho, onde muitos deles reinam absoluto em uma ampla prateleira, sem nenhum tipo de disputa.
Nesses tempos terríveis, onde a ignorância campeia e se mostra orgulhosamente vaidosa, quando a burrice se espraia pelas redes sociais e à boca miúda, como se dizia antigamente, e a depressão parece ser o porto mais provável (mesmo inevitável), só as boas leituras nos salvam. Pelo menos é isso que acredito.
Tenho espalhado livros e mais livros pelos diversos cantos da casa como se fossem caixas de remédios para todos os males, brota uma tristeza pego um volume de poesia (Ademir Braz, Airton Souza), mesmo que seja das mais fortes, que fatalmente me livrará de outros tantos comprimidos; uma contrariedade no trabalho, dois contos da prosa de Guimarães Rosa me jogam nas veredas da lucidez; notícias ruins como doenças de parentes e conhecidos, tasco quatro parágrafos de Machado de Assis e duas conversas com Gabriel García Márquez me recobram (pasmem!) a paz.
Leia mais:Mas mesmo com esses santos remédios encadernados e poeirentos, ainda em papel, tenho tido infinitos problemas, a ansiedade crescente me impele a pular de livro pra livros com uma rapidez estúpida, com uma incrível fúria para encontrar o antibiótico mais eficiente, numa insana busca que se torna por si mesmo mais importante que o resultado final; vou às cegas a busca do placebo ideal pra minha dor de cabeça imaginária, para tentar em vão estancar a fúria das águas que são todas (ou quase) do espírito: olho ao redor e se empilham volumes com marcadores a denunciar suas leituras fraturadas, interrompidas…
Na minha quixotesca tarefa de escapar do caos exterior criei, sem querer (ou inconscientemente desejando), um caos interior insolúvel: atravesso madrugadas tentando concluir leituras espaçadas, continuar ou terminar reportagens que vão ficando pela metade.
Junto pedaços de livros que se confundem, personagem de épocas e territórios diferentes que interagem na minha loucura. Lituma desce dos Andes e vem pleitear uma operação de urgência, ainda exige liminar: a inútil organização de tarefas se misturam com os tenebrosos noticiários das tragédias tão repetidas e reanunciadas que ecoam de tempos imemoriais.
Nesse Carnaval, entre uma leitura, tive de parar para escrever matérias de caos, de desastres, de mortes, de perdas, de dor. A pior foi a da jovem mãe, grávida de 2 meses, que se foi na noite do primeiro dia de março, num acidente lamentável.
O desastre dessa história se mistura com as enchentes de todos os anos, mas que neste tangeu mais de 7 mil famílias de suas casas. Folheio as reportagens de colegas, comentários sobre esse drama que nos parece tão comum e corriqueiro. A maioria dessas pessoas estão nas dezenas de abrigos espalhados de cidade.
Todos os anos, os rostos de políticos se misturam com os choros e caras de espanto das novas vítimas: o repórter conta a mesma história do ano anterior. E a guerra na Ucrânia, como digerimos?
A contabilidade material, física mesmo, dessas últimas tragédias, são difíceis de contabilizar, mas a enumeração de nossos males mentais decorrentes delas serão infinitamente mais impossíveis de se perceber, curar, sanar, remediar momentaneamente que sejam: e tome remédios, palavras, lágrimas, rezas e ódios… Então tento, com a poesia de um Pagão esquecido, curar tudo isso com inúteis livretes, que se amontoam inacabados, poeirentos, a entupir quase o quarto, a casa inteira, quase impedindo o fechamento de portas e janelas.
Como se fosse possível fugir de nós através dos outros: procuro na prateleira um vidro ainda fechado de Pílulas de Gabo… e outro, já bastante usado, do Emplastro Brás Cubas!
* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira