Correio de Carajás

As narrativas silenciosas escritas em nosso corpo

A pele dos outros vira páginas. Às vezes, livros inteiros. É que cada vez mais as tatuagens cobrem braços, pernas, costas, peitos, mãos e deslizam quase até os pescoços. Tem gente que tatua o crânio, o lóbulo da orelha e a face. Por isso, ver uma tatuagem é ver uma história. Talvez, minha professora de Linguística, Eliane Soares, diria que se trata de um enunciado performativo, olhando pelo lado da semiologia.

Antes vista como signo de pertença social, no caso dos marinheiros, militares e prisioneiros, por exemplo, a tatuagem é hoje manifestação da nossa interioridade, da nossa individualidade. É o nosso corpo como meio de expressão, como tela, como matéria.

Tatuagens falam tanto de nossa época como das pessoas que exibem estes desenhos. Para os linguistas, talvez, os corpos tatuados exibem a memória de um evento pessoal que ficará marcado “para sempre”.

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Dessa mais recente memória que guardamos todos, por exemplo, resultaram tantas tatuagens que desafiam a imaginação. Foi de uma reportagem nos Estados Unidos, aliás, que me veio a inspiração da crônica. Ao invés das ramagens de flores, corações transpassados, desenhos abstratos, borboletas estilizadas, pássaros em voos e outros animais cujas características se casam com as do dono do corpo, foram tatuagens do vírus, em suas diferentes versões.

Reproduzido tal e qual nos acostumamos a ver a na televisão, mas também como se poderia ver numa história em quadrinho ou animação. “COVID-19: SURVIVOR”, conta-nos a pele de um homem que passou maus bocados. Na preferência também desenhos de frascos do salvador álcool gel. Podem ser igualmente rostos e suas máscaras cirúrgicas. E, inclusive, o código de barras do passe sanitário. Nem adianta balançar a cabeça, em reprovação. Há gostos para tudo e para todos. Eu, pessoalmente, gostei de um deles: em tradução livre, “o que não nos mata, faz-nos estranhos”.

Soube, são filas de espera e agendas cheias também no Brasil. Sem falar no preço, uma agulhada na conta bancária. “Felicitância”, escreveu no braço uma amiga. “Tudo passa”, escreveu um amigo no lado esquerdo das costas, o lado do coração. Do meu lado, sou página em branco. Não dei o passo decisivo porque resisto às coisas assim tão definitivas.

Não sei se tatuaria uma frase predileta de Gabriel García Márquez ou se outra de Oscar Wilde, a qual recito quase todos os dias só para mim mesmo.

Minha amiga e jornalista favorita, Luciana Marschall, já foi à fila do Beirão (tatuador famoso de Marabá) algumas vezes para desenhos inusitados. E ela parece não parar com a coleção que tem e já projeta novas figuras na pele.

Você tem uma, quer mostrar. Você faz uma, quer a segunda. Fabricação de si mesmo. Diferentes dos sinais de nascença, dos roxos de pancadas, das cicatrizes e outras marcas da passagem do tempo, nas tatuagens e piercings é você quem escolhe onde, como e quando.

Mas também, soube de muitos casos de arrependimentos. Feitos durante paixão avassaladora. Acabou-se o amor, ficou o nome da pessoa gravado para sempre. Agora vai se casar de novo, não quer levar para a nova relação a memória desse outro. Sempre lá, falando ao novo marido: “ainda estou aqui, colado à pele dela noite e dia”.

Ainda bem, os tatuadores hoje em dia têm saídas para tais constrangimentos. Em cima do nome do “ex”, gravam-se novos desenhos coloridos, aproveitando-se e incluindo-se restos de linhas, pedaços de letras, nuances de tintas. Não se apaga, mas transforma-se. E o vestidinho de alças sai de novo do armário. A felicidade nova há de escrever em cima de velhas memórias subcutâneas?

Nesse novo e pessoal espaço de criação artística, escrevemos o signo dos nossos desejos. “Tudo passa”, anuncia a tatuagem do meu amigo. E eu, sem agulhas e tintas, tatuo na pele da esperança, para não esquecer. “Passa, sim. Passa, sim”.

* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira