Correio de Carajás

O desafio de uma mãe negra: criar um filho num mundo racista

Entre medos e incertezas, Taiuane Nava carrega Eric nos braços projetando o futuro do filho

Em um mundo que em 2021 foi tomado por manifestações anti-racistas, arrastando protestos ao redor do mundo contra a sistemática violência contra corpos negros, a pauta racial entrou mais uma vez em discussão, e o racismo aparece como uma doença que se sabe a cura, mas que não é curada por desinteresse daqueles que sentam no topo da pirâmide hierárquica. Doença tal que é combatida dia após dia por quem mais sofre com ela, e ainda que esta luta não deveria ser responsabilidade de alguns, mas sim de todos.

Os problemas da sociedade atual, não tão diferentes dos problemas que enfrentados há centenas de anos pelo ser humano em sua convivência, se acumulam. Machismo, racismo, desigualdade social e mais situações que escancaram a falta de empatia no mundo se tornam desafios diários para mulheres negras como Taiuane Nava, empreendedora e mãe de Eric, de 4 anos, que compartilhou com o Portal Correio de Carajás como é criar um filho em meio ao caos que é a humanidade nos dias de hoje.

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Antes mesmo da entrevista começar, provocações necessárias são lançadas por Taiuane, dona de um bar no bairro Rio Verde, em Parauapebas: “Chegamos no mês em que lembram que os negros existem! Não tem um repórter negro pra fazer a pauta da Consciência Negra?” Perguntas que são tão simples que se tornam até mesmo retóricas, de tão evidentes que são as respostas, mas que ainda precisam ser perguntadas.

PASSADO, PRESENTE E FUTURO

Não é difícil imaginar que o medo de Taiuane, de 27 anos, é de que o filho passe pelas mesmas experiências traumáticas que ela passou enquanto crescia. “Desde criança eu sofri racismo, sempre foi muito pesado, eu lembro das coisas que eu passei na escola… Hoje em dia o racismo tem nome, tem voz, está prescrito na lei que é crime, e as pessoas estudam mais, é algo que está mais na mídia. Anos atrás, quem dera isso tinha acontecido, talvez eu não tivesse sofrido tanto, relembra.

Perguntada se acredita que movimentos como o Black Lives Matter, que tomaram as ruas dos Estados Unidos e outros grandes centros ao redor do mundo, lhe dão a esperança de que Eric crescerá num mundo melhor e menos preconceituoso, ela é receosa: “Acredito que trouxe um pouco de segurança, mas não o suficiente. Esses movimentos carregam um pouco de hipocrisia, são falados na hora, mas quando passam se para de falar de racismo”.

Entre os males que a sociedade sofre, também se destaca o bullying nas escolas, e no caso de Taiuane eles sempre eram levados para o lado racial. “Uma vez um professor me disse em sala de aula que eu era suja. No [Ensino] Fundamental, me elegiam a menina mais feia da turma. No Ensino Médio falavam que eu nunca teria ninguém, cantavam músicas super ofensivas. Acabei me tornando uma pessoa agressiva naquela época como auto-defesa”, lembra, temendo pelo que o filho poderá passar ao chegar no âmbito escolar.

Com o pessimismo que o mundo real oferece, Taiuane fica entre o medo de que o mesmo aconteça com o Eric, mas também lida com a criação dele de forma que ele saiba que o problema está na sociedade. “Eu tive problemas para aceitar quem eu sou , e eu quero que ele seja a pessoa que eu não tive a oportunidade de ser. Quero que ele aprenda a respeitar, mas quero que ele aprenda a lutar pelo lugar dele no mundo”, diz Taiuane.

“Que ele lute pela cor dele, que ele lute por quem ele é, que ele se ame e que ele se goste.  Porque o amor próprio pode abrir nossa mente para aceitar muitas outras coisas tranquilamente. Porque eu cresci odiando quem eu era, achando que eu não merecia coisas boas na vida por conta do que eu sofri. Quero que ele cresça sabendo que racismo existe e pessoas negras sofrem com ele todos os dias, mas que não deixe de se amar por isso e que ele tem voz contra isso e não abaixe a cabeça”.

MATERNIDADE

Taiuane compartilhou como tem sido a vida desde que Eric se tornou parte dela, quando ela tinha apenas 23 anos. Ela se diz afortunada por ter um círculo familiar de muito apoio, tanto da parte dela quanto do pai de Eric, de quem ela se separou quando o filho tinha apenas oito meses de vida. “Ele tem avôs, avós, bisavós, tios, além dos meus amigos que o amam como se fosse de sangue”, ela conta, gratificada pelo afeto recebido.

Ainda assim, como é de se esperar, o papel principal pousa em cima da mãe, numa função tão comum, tão essencial, mas que por mais gratificante que seja oferece dificuldades significativas. “Criar um filho sozinha é muito difícil. Eu tive sorte, por ele ter todo esse grupo familiar, mas a mãe sempre tem um papel principal”. Taiuane se pergunta como pode haver tanto amor “por um ser tão pequeno”, ainda sem entender completamente o amor materno que sente.

Como um sopro de alívio, Taiuane projeta que o seio familiar será de acolhimento ao que diz respeito à cor de Eric. “Quando eu estava grávida, a avó dele dizia ‘quero que esse menino seja preto, pretinho, com o cabelo igual da mãe dele’. O pai dele falava a mesma coisa, e aconteceu dele vir do jeito que a família queria”. Ela convive com a ansiedade de daqui a alguns meses, em 2022, colocar o filho na escolinha, temendo pelo que vai ser quando Eric tiver que lidar com outras pessoas.

“Eu tenho medo do que ele vai passar… Tenho medo do mundo, esse é meu desafio diário. A gente sempre quer os filhos debaixo da aba da gente, mas isso vai me ajudar porque preciso trabalhar, ele precisa crescer e se desenvolver. Fico nesse vai, não vai, mas no final vai ser assim. Preciso aceitar que ele tem que ir pro mundo”, disse a empresária, ressabiada com o futuro próximo.

O FILHO DOS OUTROS

Perguntada quanto ao papel dos pais na criação dos filhos em famílias brancas na luta contra o racismo, Taiuane diz acreditar que seja uma função mais importante na luta pela igualdade racial na sociedade. “Eles têm o dever de ensinar aos filhos que todos somos iguais. Infelizmente, meu papel é ensinar meu filho a se defender de pessoas brancas. Eles têm que ensinar que as diferenças são apenas físicas, e que existem privilégios”.

A empresária diz que é preciso pontuar que houve muito sofrimento por parte da população negra durante anos e anos, e de que esse sofrimento precisa acabar, sem negar a história, mas ensinando respeito e empatia. “Reforçar o quão grande é a força do negro para estar onde está hoje na sociedade – principalmente uma mãe, como eu, solteira, numa sociedade machista. Como é difícil!” ela diz, rindo, mas preocupada.

Projetando o futuro, Taiuane se diz pessimista, e diz não acreditar que grandes avanços terão acontecido na pauta racial quando Eric tiver sua idade. “Não é algo que a gente possa deitar a cabeça no travesseiro e dizer ‘nossa, o Brasil está melhorando em relação ao racismo’. Eu olho pro meu filho todo dia quando ele dorme, pensando no mundo que ele vai ter”.

Taiuane finaliza deixando claro ao filho, sentado em seu colo durante toda a entrevista, que a luta é árdua, mas que enquanto ela puder, estará com ele nela. “Não sei se estarei por muito tempo com meu filho, espero que sim, mas enquanto eu tiver fôlego, vida e voz, eu vou lutar por ele. Quando eu partir, quero deixar alguém preparado pra ensinar isso aos filhos, e que os filhos ensinem isso aos filhos”. (Juliano Corrêa)