Correio de Carajás

Como não se apaixonar pelo poder da air fryer

Aqui em casa, a gente não vive mais sem elas. É da sala de estar, com o olho de vidro da televisão-computador, à bancada da cozinha, com a air fryer, a fritadeira elétrica que está na moda e se tornou o objeto de desejo de muitas mulheres.

Você cruza os braços, ela frita, assa, cozinha – tudo isso sem uma gota de óleo sequer. Quando está pronto, avisa. Fica para você o trabalho humano de salivar, mastigar, engolir e arrotar – nem tudo é perfeito. Bem ao lado, fica a panela de pressão elétrica, outra invenção inteligente que nos conquistou lá em casa. Olha, o suco de laranja natural é na máquina que fica ali perto.

Nesse mundo disruptivo das máquinas conectadas ainda não entrou casa adentro o cérebro positrônico do Data, da série Star Trek. Um dia chegamos lá. Por ora, temos à mão a última novidade do mercado, a topo de gama da inteligência artificial que atende, inclusive, por nome que parece de gente: Alexa, Siri ou Cortana. Estas assistentes virtuais sem corpos proliferam hoje nas prateleiras das lojas e na mão da gente. Invadiram nossos celulares e tomam, aos poucos, conta da nossa vida.

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São como cavalos de Tróia, só que em miniatura. Na forma de objetos design, decoram nossa sala de estar e prometem facilitar nossa vida, mas de inocentes não têm nada. Em troca de mundos e fundos, guardam-se dados da vida privada na grande nuvem, no céu conectado da indústria mundial. Pense nisso quando ver a sabichona piscando luzinhas para você.

Para puxar assunto com uma delas, no Iphone, por exemplo, é só dizer “e aí Siri?”. E o tapete do mundo se desdobra aos seus pés. No emaranhado da gigantesca rede neural, o dispositivo cruza dados e fabrica respostas, seja a pergunta mais banal ou a mais complexa. Quer saber uma receita de tucunaré para o almoço de domingo? A assistente tem, até mesmo indica tutorial no Youtube. Quer saber a distância da Terra à Marte. A assistente sabe. Tá com preguiça de acender ou apagar a luz? A assistente faz.

É assim a boa vida de quem adota os bichinhos virtuais de estimação. Tamaotchis modernos que simulam o funcionamento de cérebro humano e fingem amizades novas. Dizem, a “menina” tem senso de humor, momentos de impaciência e sabe dar corte em conversas inconvenientes como ninguém. Parece até gente. Só que não.

No filme Her, de Spike Jonze, o solitário Theodore apaixona-se por Samantha, uma assistente virtual ultra avançada. Pois são muitas as armadilhas do que parece, mas não é. Dia destes, vi-me, inclusive, a defender os direitos de ir e vir de um robô doméstico. Uma advogada aqui de Marabá, contou-me, dias atrás, que sua Joanete (apelido que deram em sua casa) uma máquina redonda que circula pelos cômodos, no trabalho de aspirar o pó e salvar a família toda das crises de alergia, é mais inteligente do que ela supunha. Contra a porta fechada do quarto, ele batia a testa, insistentemente. Aquele surdo bum-bum-bum foi, pancada a pancada, quebrando o seu coração.

Cheia de culpa, pediu da cozinha se alguém podia abrir a porta, por favor, que Joanete estava preso e pedia para sair. O marido dela olhou surpreso. E a advogada deu conta de quão complexa é nossa relação com as novas tecnologias. O robô foi liberado. Devolvido o domínio de cada recanto do lar doce lar.

Para o olho de vidro da smart tevê, que me segue do sofá, um adesivo tapa-bisbilhotice. Pronto, fim do reconhecimento facial. E nem senti remorso. Mas, ultimamente ando pensando se a televisão conectada também não tem ouvidos. Porque, às vezes, tenho a impressão de receber sugestões publicitárias que coincidem estranhamente com planos de viagens ou conversas sobre mudanças de algo na casa. Será?

Olho ressabiado para a tela plana, para meu telefone celular, para o tablete. E, no silêncio do painel azul, ele me responde com as horas. Botões de ferro no comando. Mas, aos cérebros eletrônicos, eu digo o mesmo que a Marisa Monte: “só eu posso chorar quando estou triste”.

 

 

* O autor é jornalista há 25 anos e escreve crônica às quintas-feiras