- Enganoso
- Textos publicados em sites e divulgados no Facebook vinculam erroneamente um projeto apresentado pela bancada do PT no Senado que homenageia o comediante Paulo Gustavo, uma das vítimas da covid-19, à Lei Rouanet. O projeto, na verdade, versa sobre o Fundo Nacional de Cultura (FNC), cujos recursos não têm ligação com o sistema de incentivos fiscais para empresas privadas pelo qual a lei se tornou conhecida.
- Conteúdo verificado: Texto publicado em sites na internet afirma que partidos de esquerda estão usando o nome do ator Paulo Gustavo, morto em maio deste ano vítima da covid-19, para tentar aprovar a Lei Complementar 73/2021 no Senado e “liberar bilhões da Lei Rouanet”.
São enganosos os textos segundo os quais a “esquerda usa o nome de Paulo Gustavo para tentar liberar bilhões da Lei Rouanet”. Os textos em questão se referem a um projeto de lei que, de fato, existe, e foi apresentado pela bancada do PT, um partido de esquerda, e que homenageia o ator Paulo Gustavo, morto no início de maio vítima de complicações da covid-19. A verba à qual o projeto se refere, no entanto, não tem relação com recursos da Lei Rouanet, legislação de incentivo à cultura rotineiramente alvo de conteúdos falsos e enganosos.
Leia mais:O projeto dos senadores petistas (PLP 73/2021) versa, na realidade, sobre o Fundo Nacional de Cultura (FNC), que foi criado em 1986, antes da Lei Rouanet, e apenas ratificado por ela, em 1991. Ao contrário da Lei Rouanet, que concede incentivos fiscais para empresas que patrocinam eventos culturais, o FNC prevê o repasse de recursos do orçamento diretamente a projetos culturais específicos, por meio de editais. O objetivo do projeto é evitar que os recursos previstos no FNC e não utilizados sejam usados para outros fins.
Como verificamos?
O Comprova iniciou a verificação buscando as últimas notícias sobre a chamada Lei Paulo Gustavo e sua possível relação com a Lei Rouanet. Depois, foi ao site do Senado para ler a íntegra do PLP 73/2021 e entender do que se trata o projeto de lei complementar.
A equipe chegou ao texto verificado por meio de um compartilhamento feito no Facebook que teve milhares de interações. Conversamos com o usuário da rede social que fez o compartilhamento do texto, publicado no blog Por Dentro da Política. Em seu perfil no Facebook, ele se identifica como editor-chefe do site Por Dentro da Política. No contato com o Comprova, o homem afirmou que replicou a publicação por se tratar de um texto de autoria de um site de sua confiança, e citou o “Jornal da Cidade Online”.
Na sequência, encontramos no Jornal da Cidade Online um artigo com o mesmo título usado pelo Por Dentro da Política. Os textos são muito parecidos. Entramos, então, em contato com o Jornal da Cidade Online, que não nos deu retorno até a publicação desta reportagem.
Também conversamos com a assessoria de imprensa do senador Paulo Rocha (PT-PA), um dos autores do projeto de lei. Solicitamos o contato do especialista que desenvolveu o relatório do projeto e nos encaminharam o telefone de Marcos Souza, assessor da Liderança do PT no Senado, com quem conversamos por telefone.
A Secretaria Especial de Cultura foi procurada por e-mail, mas não retornou conforme prometido.
Verificação
Recursos são da Lei Rouanet?
Os conteúdos verificados aqui argumentam, entre outras coisas, que um projeto de lei que tramita no Senado seria uma estratégia para a esquerda “mamar nas tetas do governo pela conhecida lei Rouanet” e consistiria em um “novo golpe para tentar arrecadar bilhões” com o apoio “da classe artista que adora uma boquinha (sic)” . Para isso, a esquerda estaria, afirmam, usando o nome do ator Paulo Gustavo para tentar liberar R$ 4,3 bilhões para o setor cultural. Essas informações são, no entanto, enganosas.
De fato, o projeto em questão existe e é capitaneado por parlamentares de esquerda. Trata-se do Projeto de Lei Complementar (PLP) 73/2021. Ele tem as assinaturas dos senadores Paulo Rocha (PT-PA), Paulo Paim (PT-RS), Jean Paul Prates (PT-RN), Rogério Carvalho (PT-SE), Humberto Costa (PT-PE) e Zenaide Maia (PROS-RN).
A ligação do projeto com a Lei Rouanet é, entretanto, apenas marginal. Aprovada em 1991, no governo de Fernando Collor, a Lei Rouanet é alvo de conteúdos falsos e enganosos há anos, uma situação que persiste até hoje. Essa legislação é a principal ferramenta de fomento à cultura no país e funciona por meio de incentivos fiscais: a Secretaria de Cultura do governo federal autoriza que determinados projetos recebam recursos de empresas para patrocinar eventos culturais e essas empresas podem abater o valor do patrocínio do Imposto de Renda. Não há, portanto, repasses diretos de recursos do orçamento para os responsáveis pelos eventos culturais.
O PLP 73/2021, que tramita no Senado, tem relação com o Fundo Nacional de Cultura, o FNC. Este fundo foi criado em 1986 e apenas ratificado pela Lei Rouanet, que buscava justamente reorganizar o financiamento da cultura no Brasil. Os recursos aos quais se refere o projeto dos senadores petistas, portanto, não são provenientes da Lei Rouanet, ao contrário do que afirma a publicação em questão.
Objetivos da Lei Paulo Gustavo
Os valores sobre os quais o projeto da Lei Paulo Gustavo versa são oriundos do FNC e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) – R$ 3,8 bilhões do superávit financeiro obtido pelo fundo e R$ 342 milhões da reserva de contingência do orçamento de 2021.
No caso dos orçamentos desses fundos, quando não havia a execução dos recursos até o final do ano, o montante costumava ser devolvido ao Tesouro Nacional, mas com um carimbo de vínculo –, ou seja, continuava pertencendo ao fundo e sendo cumulativo ao longo dos anos. Isso mudou com a aprovação da PEC Emergencial, em março deste ano, e agora o Poder Executivo pode usar, até o fim de 2023, o superávit financeiro de alguns fundos públicos, incluindo o FNC e o FSA, para pagar a dívida pública.
Os valores que constam no PLP foram calculados até 31 de dezembro do ano passado, conforme consta na tabela 6-A da Portaria Nº 772 da Secretaria do Tesouro Oficial, publicada em 29 de março de 2021 e que contém o balanço patrimonial das fontes de recurso público.
O objetivo do projeto é fazer a redistribuição desses recursos em ações emergenciais voltadas ao setor cultural, a exemplo do que fez a Lei Aldir Blanc de apoio à cultura ao longo de 2020. Para tanto, o projeto altera dois artigos da Lei Rouanet (4º e 5º) que versam sobre o FNC, removendo a obrigatoriedade de que créditos programados no fundo sejam objeto da limitação de empenho de recursos e incluindo mais fontes de recursos a ele.
Na época da aprovação da PEC, em março passado, o PT argumentou que a aprovação do artigo sobre os fundos públicos foi irregular e, ao lado da Rede, levou o caso ao STF. Uma semana após a aprovação da PEC, a Secretaria do Tesouro Nacional publicou a Portaria Nº 759/2021, que disciplina os procedimentos para centralização e posterior liberação das fontes de recursos oriundos do superávit financeiro dos fundos públicos.
O fato, segundo Marcos Souza, assessor parlamentar do PT e um dos responsáveis pela confecção do PLP 73/2021, acionou o alerta da bancada petista. “Fomos correr buscando uma forma de salvar esses recursos para serem direcionados à cultura, porque foram, eram e são da cultura, eles estão carimbados. É muito injusto usar isso para abater dívida, ainda mais em um momento em que a pandemia não acabou e os efeitos dela sobre o setor cultural são gravíssimos”, afirmou ao Comprova.
O projeto da Lei Paulo Gustavo foi alvo de críticas do Secretário Especial da Cultura, Mario Frias, e do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro. No Twitter, os dois pediram aos seguidores que votassem contra o projeto na consulta pública em andamento no site do Senado. A Secretaria Especial de Cultura foi procurada pelo Comprova via assessoria de comunicação, por e-mail, para comentar o assunto, mas não retornou até a publicação dessa verificação.
Lei Rouanet
A Lei Rouanet, citada na publicação verificada, é hoje a principal ferramenta de fomento à cultura no país, conforme define a própria Secretaria Especial da Cultura do governo federal. Sendo uma lei de incentivo fiscal, não há repasses diretos de recursos do orçamento da Secretaria de Cultura – antes Ministério da Cultura e hoje rebaixada a uma secretaria ligada ao Ministério do Turismo – para os responsáveis pelos projetos. Cabe à Secretaria apenas autorizar a captação por parte dos idealizadores dos projetos junto às empresas.
Por meio da lei, empresas e pessoas físicas podem patrocinar espetáculos – exposições, shows, livros, museus, galerias e várias outras formas de expressão cultural – e abater do Imposto de Renda o valor total ou parcial do aporte destinado ao patrocínio.
Os projetos patrocinados necessitam oferecer uma contrapartida social, como a distribuição de parte dos ingressos gratuitamente, além de promover ações de formação e capacitação junto às comunidades.
Quem analisa as propostas de projetos é a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), formada por membros da sociedade civil e do poder público, com representantes de todas as regiões brasileiras e das principais áreas culturais e artísticas. Depois que colocados para análise, os projetos são avaliados pela CNIC, que emite parecer favorável ou contrário para a aprovação, que embasam a decisão final da Secretaria de Cultura.
Atualmente, a secretaria é alvo de ação civil pública movida pela Ordem dos Advogados do Brasil, que aponta estar ocorrendo uma “operação tartaruga” na aprovação de projetos submetidos à Lei Rouanet. A ação foi protocolada no dia 11 de maio à 1ª Vara Federal Cível da Justiça Federal do Distrito Federal.
O documento questiona, entre outras coisas, a meta estabelecida pela secretaria, para 2021, de análise mensal de 120 propostas na Lei Rouanet, acusando-a de ser uma “operação tartaruga” no setor, apontando redução de um terço do número de projetos aprovados em relação a 2020.
Por que investigamos?
Em sua 4ª fase, o Comprova checa conteúdos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia ou políticas públicas do governo federal que tenham alcançado alto grau de viralização, como o caso do post verificado.
A publicação do blog Por Dentro da Política somou, no grupo Conservadores, do Facebook, 3.844 interações até o dia 1º de junho, sendo 2,2 mil reações, 1 mil comentários e 644 compartilhamentos. Na página do Jornal da Cidade Online na mesma plataforma a publicação teve 4.236 interações, sendo 2,3 mil reações, 936 comentários e 1 mil compartilhamentos.
A Lei Rouanet há anos é alvo de conteúdos falsos ou enganosos nas redes sociais, e já foi assunto de verificações feitas pelo Comprova em 2019 e 2020.
Ao longo de 2020, a Lei Aldir Blanc, que dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural durante a pandemia de coronavírus, passou a ser vítima de postagens semelhantes.
As informações falsas ou enganosas em torno das leis de incentivo à cultura confundem o cidadão acerca do real objetivo delas e também sobre a origem e aplicação de recursos públicos.
Enganoso, para o Comprova, é conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 28 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.