Há oito meses Ayrk Zamiske Alves Lira atende no setor de Psicologia de uma UTI privada de Parauapebas, onde há 10 leitos e 90% deles estão ocupados por pacientes com covid-19. Dentre as tarefas do profissional da saúde mental, a principal é garantir uma comunicação fluída entre os colegas, os pacientes e os familiares destes.
Ayrk Zamiske se formou há um ano e nove meses, quando nem sonhava em cair de paraquedas no atendimento às pessoas diretamente afetadas pela pandemia do novo coronavírus. Na verdade, naquele momento, a crise sanitária era inimaginável. A mudança do cenário em função da crise sanitária, entretanto, não foi a única. O psicólogo explica que dentro da própria conjuntura houve outra que neste momento deixa apreensivos os profissionais da saúde.
“Agora está muito pior. Antigamente (ano passado) a gente tinha um perfil específico de paciente. No início da pandemia a gente falava muito de grupo de risco, por exemplo, pegava pacientes que seguiam certo padrão, mas hoje não se tem mais isso. É cada vez mais frequente a aparição de pacientes com idades abaixo dos 40 ou até mesmo dos 30 anos de idade”, compartilha.
Leia mais:Conforme ele, estas pessoas chegam à UTI em situação cada vez mais grave, tanto em decorrência das variantes quanto por conta da falta de cuidados. “A população em si já não sente mais a consequência do medo que tinha no início. Demora a procurar ajuda e já chega em estado grave. O maior inimigo do vírus é o tempo”, lembra.
O psicólogo destaca que essa “sensação de caos” afeta os familiares. “Uma intubação, por exemplo, era o último recurso e agora é comum chegar paciente que no primeiro dia de UTI, tendo que se acostumar com toda a rotina da unidade, já precisa se acostumar também com a ideia de que vai ficar inconsciente porque chegou de forma tão grave que o pulmão não consegue respirar por ele mesmo”, explica, afirmando que na última semana, quando a entrevista foi realizada, a pessoa mais jovem internada tinha 34 anos.
Para o paciente, há o trauma de ser privado de toda autonomia após ingressar na unidade especializada. “Em relação à covid-19, eles (pacientes) precisam estar restritos ao leito, o que significa que vão depender da equipe para tudo, para comer e para higiene pessoal. Isso afeta a autonomia, afeta a privacidade dele”.
PESO DO PROFISSIONAL
Os profissionais, por sua vez, enfrentam rotinas cada vez mais pesadas – Parauapebas continua com os leitos de UTI lotados – e desanimadoras. “A equipe fala bastante sobre exaustão e tem nos procurado muito mais. As pessoas verbalizam que estão muito cansadas, que não aguentam mais. Tenho observado que estão cada vez mais num conflito semelhante ao início, porém, mais intenso porque há a sensação de que um ano de trabalho não deu nenhum resultado”, destaca.
Apesar disso, observa Ayrk Zamiske, os profissionais só abandonam os postos quando também adoecem. “De um lado há o sentimento de exaustão, mas do outro eles sabem que vidas precisam ser salvas com o trabalho de cada profissional. Que não podem ter um momento de repouso, de descanso, porque, senão, o paciente pode piorar. Isso desgasta bastante, afeta a autoestima, a forma como ele se vê como profissional, o valor que se dá…”.
E engana-se quem imagina que para o psicólogo, acostumado a lidar com as dores dos outros, é mais fácil encarar o dia a dia nessas circunstâncias. Ayrk Zamiske já foi infectado pela covid-19 ao menos uma vez e suspeita de ter sido uma segunda, cujos exames foram inconclusivos. Os sintomas foram leves e a primeira desconfiança foi de ter se contaminado no ambiente de trabalho, onde outros colegas também adoeceram por conta da exposição frequente ao vírus. “Só posso entrar com a máscara específica, com determinada roupa, mas mesmo assim, na correria, você nem sempre está vigilante. Com o passar do tempo, infelizmente, os profissionais acabaram também relaxando em relação aos cuidados. Isso reflete dentro de todo contexto de cansaço”.
Os médicos são os responsáveis pela comunicação dos óbitos aos familiares, o que frequentemente ocorre com acompanhamento dos psicólogos, que garantem suporte emocional e psicológico aos envolvidos. “A gente sempre precisa lembrar que não trata uma doença, tratamos de uma pessoa, e precisamos entender que é a dor de outra pessoa”, ressalva.
Questionado sobre como se sente neste contexto, afirma ser inevitável o “efeito manada”. “Está todo mundo ali, naquele ambiente, daquele mesmo jeito, acaba que você vai entrar no mesmo ritmo e todo mundo é afetado pelos mesmos fatores. Como eu tenho que facilitar a comunicação entre esse tripé, às vezes é como se estivesse no meio de um conflito. Tem que receber a demanda da família, do paciente, da equipe… no final do dia preciso lidar com estes estados emocionais e com o meu. Elaborar isso é complicado”, desabafa.
Ayrk Zamiske acha difícil os profissionais saírem dessa jornada sem terem a saúde comprometida. “Todo mundo está aguentando, mas de forma não saudável. A gente está lidando porque está tendo que lidar, mas de forma que não é saudável porque há sofrimento”. A vacina, diz, trouxe maior tranquilidade para os profissionais, mas com um lado obscuro, já que muitos tendem a relaxar dos cuidados por sentirem-se mais protegidos.
Por fim, o psicólogo afirma que os “remédios” que ameniza os sintomas destes profissionais acabam sendo as vitórias alcançadas pelos pacientes. “As altas têm demorado mais, porém quando o paciente sai de uma intubação e consegue sair bem, nos renova demais, renova muito, muito, muito, muito todo mundo. Quando ele sai é aquele momento em que a gente lembra por que estamos aqui e por que a gente continua, por mais que nos sintamos exaustos, de um jeito não saudável. A gente lembra que precisamos continuar fazendo a nossa parte”. (Luciana Marschall)