“A covid-19 é, sem sombra de dúvidas, a doença mais preocupante do século no impacto e prejuízo das funções neuropsicológicas”, diz a neuropsicóloga Lívia Valentin, professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP).
Ela liderou um estudo sobre o tema no Instituto do Coração (Incor), que identificou problemas de memória de curto prazo em 63% dos pacientes com covid-19 e dificuldades de atenção em 72% deles.
Essa pesquisa se soma a mais de 200 outros estudos ao redor do mundo que tratam do impacto neurológico direto ou indireto da covid-19, os possíveis caminhos que o vírus percorre no corpo humano até chegar ao cérebro e os sintomas que podem afetar as pessoas por meses após a infecção.
Leia mais:Entre eles, dor de cabeça, perda de olfato, tontura, problemas de memória, dificuldade de atenção, dores musculares, ansiedade e depressão.
E não está claro se alguns deles serão permanentes.
Essa dúvida preocupa a bancária Evelize Vasconcelos, de 40 anos, que foi internada em unidade de terapia intensiva (UTI) em Salvador após contrair coronavírus e tem “sensação de estar sempre balançando” desde que recebeu alta. “É como se eu estivesse em alto mar.”
Seu relato à BBC News Brasil é feito de forma pausada por dois motivos: ainda falta ar aos pulmões em recuperação e as palavras somem com frequência enquanto seu raciocínio vai e vem. Ela não sabe quanto tempo vai levar até recuperar a agilidade de antes, já que agora mal consegue fazer contas simples de matemática.
Os exames ainda não conseguiram explicar o que está acontecendo, e a forma exata com que o coronavírus afetou as funções neurológicas dela está ligada a uma das quatro grandes linhas de pesquisa dessa área desde o início da pandemia, quando ficou claro que a covid-19 não era uma simples doença respiratória.
Afinal, como o vírus invade o sistema neurológico, como esse ataque está ligado aos sintomas, quais são os possíveis tratamentos e quantas pessoas são afetadas de forma temporária ou permanente?
Em linhas gerais, esses sintomas estão ligados a três partes importantes do corpo humano:
- Sistema nervoso central, responsável por receber informações dos sentidos e distribuir ações: dores de cabeça, tontura, confusão, doença cerebrovascular aguda, ataxia (que afeta coordenação, fala e equilíbrio) e convulsões;
- Sistema nervoso periférico, responsável por conectar o sistema nervoso central a outras partes do corpo: comprometimento de olfato e paladar, problemas de visão, audição e tato);
- Sistema musculoesquelético, responsável pela estabilidade e movimentação do esqueleto: dores (mialgias) e lesões musculares.
Para grande parte dos pacientes, os danos cerebrais se tornam sequelas da chamada covid-19 longa, condição de saúde na qual o impacto da doença persiste por semanas ou meses.
“A etiologia (origens e causas) dos sintomas neuropsiquiátricos em pacientes de covid-19 é complexa e multifatorial. Pode estar ligada ao efeito direto da infecção, a doenças cerebrovasculares (incluindo hipercoagulação), a um comprometimento fisiológico (hipoxia), a efeitos colaterais de medicamentos e a aspectos sociais de ter uma doença potencialmente fatal”, afirmam pesquisadores de universidades dos EUA, do México e da Suécia que analisaram dezenas de estudos, envolvendo 48 mil pacientes.
Os sintomas mais relatados por pacientes são dor de cabeça (44%), dificuldade de atenção (27%), anosmia (perda do olfato, em 21%), além de outros dois menos comuns, porém mais incapacitantes, como neuropatias e confusão mental (“brain fog”, em inglês, ou “névoa cerebral”, em tradução literal).
Ainda não há dados precisos sobre o perfil dos pacientes mais afetados, mas em geral os estudos apontam que a maioria é formada por pessoas acima de 40 anos.
Como o coronavírus invade o sistema nervoso central?
Pesquisadores da cidade chinesa de Wuhan, considerada o primeiro epicentro da pandemia, analisaram 214 pacientes infectados entre janeiro e fevereiro de 2020. Do total, 37% apresentavam impactos neurológicos da doença e 59% deles eram mulheres.
Esse estudo jogou luz sobre o fato de que pacientes com infecções graves do novo coronavírus apresentavam lesões neurológicas frequentes. Não se sabia naquele momento se essas manifestações ocorriam por ação direta ou indireta do vírus Sars-Cov-2, e até hoje isso não está claro.
Dois meses depois, outro grupo de pesquisadores da China sugeriram duas hipóteses para a invasão do sistema nervoso pelo vírus: por vasos sanguíneos após passagem pelos pulmões ou pelo nariz, via mucosa olfatória, que é ligada ao sistema nervoso central.
Daniel Martins-de-Souza, professor do departamento de bioquímica da Universidade de Campinas (Unicamp), explica em entrevista à BBC News Brasil que mais de um ano depois a pergunta como o coronavírus chega no cérebro “foi respondida parcialmente”.
Os estudos têm mostrado que o fato de o vírus não chegar ao cérebro de todos os infectados aponta que o caminho mais provável é aquele que passa pelo nervo olfatório, que conduz impulsos elétricos associados ao sentido do olfato.
Segundo estudo liderado por pesquisadores de universidades de Berlim (Alemanha), amostras de 33 pessoas que morreram de covid grave apontam que o vírus pode entrar na mucosa olfatória, cruzar a interface neural-mucosa e entrar no sistema nervoso. A mucosa olfatória reveste algumas regiões das cavidades nasais e tem em sua composição células sensoriais que derivam do sistema neurológico central.
No estudo, publicado em novembro de 2020, eles dizem ter encontrado nessa região partículas intactas de coronavírus. Segundo os pesquisadores, a invasão de células nervosas da mucosa olfatória pelo vírus poderia explicar sintomas neurológicos mais diretos em pacientes com covid-19, como a perda de olfato e de paladar. Além disso, a presença do coronavírus em áreas do cérebro com funções vitais pode ter outro impacto mais grave: agravar a dificuldade de respiração.
O que o coronavírus faz no cérebro?
Ao chegar ao cérebro, o vírus mira dois pilares do sistema nervoso: os neurônios e os astrócitos. Em resumo, os primeiros são responsáveis por transmitir impulsos nervosos e os segundos, por abastecê-los de energia.
Não está claro o que leva o coronavírus ao cérebro, mas pesquisadores têm avançado no entendimento dos possíveis mecanismos do que acontece quando ele está ali.
Martins-de-Souza, da Unicamp, explica que o corpo humano conta com uma barreira hematoencefálica, que é uma espécie de guardiã que permite que elementos presentes no sangue cheguem ao cérebro, mas evita a passagem de patógenos como vírus e bactérias.
Só que alguns invasores conseguem ultrapassar essa barreira. Uma das portas de entrada seria a proteína ACE2 (ou ECA2, em português), que funciona como uma espécie de “fechadura” de células humanas abertas pela “chave” do coronavírus (a tal proteína spike, aqueles “espinhos” presentes em torno do vírus que formam uma “coroa” e dão nome ao coronavírus).
Mas, em um estudo produzido em outubro de 2020, Martins-de-Souza e outros 79 colegas analisaram tecidos cerebrais de pacientes que morreram de covid-19 e em células cultivadas em laboratório e identificaram a presença do coronavírus nos astrócitos, que não contam com a ACE2.
Então, por onde o Sars-Cov-2 entrou? Aparentemente, a porta de entrada aqui é a neuropilina (NRP1), uma proteína numerosa também em vasos sanguíneos e neurônios.
“O NRP1 é expresso até mesmo em neurônios olfatórios, dando à Sars-CoV-2 um caminho direto para entrar nessas células e interromper o olfato”, explicam seis pesquisadores de hospitais da Flórida (EUA) em outro estudo sobre esse ponto. Segundo eles, essa invasão pode aumentar a capacidade do coronavírus de se espalhar e infectar.
“Quando o vírus está dentro dos astrócitos, ele muda a maneira com a qual os astrócitos produzem energia. Células vivem para produzir energia, para poder desempenhar as funções dela. Então o vírus, de alguma forma, muda a maneira com a qual o astrócito produz energia, porque ele precisa de energia também para se replicar”, explica Martins-de-Souza.
Isso pode levar à morte do neurônio por “falta da energia” que recebia dos astrócitos ou por causa do ambiente tóxico que surge no cérebro quando os astrócitos passam a produzir uma substância prejudicial aos neurônios.
O cenário descrito pode ser o responsável, segundo os cientistas, pelas alterações neuropatológicas e pelos sintomas neuropsiquiátricos observados em pacientes com covid-19.
Quais são os principais sintomas neurológicos?
Há diversos sintomas neurológicos que vêm sendo associados à covid-19 desde o início da pandemia, como dor de cabeça, perda de memória, confusão mental e dificuldade de concentração. Além disso, há outras condições mais raras, como acidente vascular cerebral, comprometimento da consciência, psicose, delírio, convulsões e encefalopatia.
Alguns desses sintomas podem ser sinais de que o sistema imunológico está combatendo a doença, mas a grande maioria não.
“Acho que não estava na conta de ninguém imaginar que pessoas que não foram internadas, que seriam quadros ‘leves’, pudessem ficar com uma gama de alterações neurológicas incapacitantes, como observamos não só aqui mas no mundo inteiro”, explicou Clarissa Lin Yasuda, médica e professora do departamento de neurologia da Unicamp, em entrevista recente à BBC News Brasil.
Ela é uma das coautoras do estudo do qual Martins-de-Souza participou, que identificou sinais de danos cerebrais em 25% das pessoas que morreram de covid-19.
“É muita coisa que a gente não sabe, muita coisa para ser estudada: o quanto desses quadros neurológicos tem um componente inflamatório, o quanto é autoimune, o quanto é um ataque direto do vírus. Ninguém tem uma resposta, mas acho que é uma combinação disso tudo.”
Segundo o grupo de pesquisadores de universidades dos EUA, do México e da Suécia que analisou dezenas de estudos sobre o tema, pacientes adultos que tiveram covid-19 têm o dobro de chance de desenvolver transtornos psiquiátricos, como ansiedade, insônia e demência. Isso pode estar ligado também ao impacto negativo da doença na qualidade do sono dos pacientes.
Mas crianças e adolescentes também correm sérios riscos. Quarenta e oito médicos e pesquisadores dos EUA produziram um estudo, publicado no começo do mês no periódico Jama Neurology, que aponta que 22% dos pacientes com menos de 21 anos tiveram sintomas neurológicos e 12% com distúrbios neurológicos potencialmente fatais, como encefalopatia grave, acidente vascular encefálico (AVC), infecção do sistema nervoso central e síndrome de Guillain-Barré (uma fraqueza muscular causada pelo sistema imune que pode ser fatal).
Impacto na memória
Os mecanismos da associação direta entre a covid-19 e os problemas de memória de curto e longo prazo ainda não estão muito claros. Mas há algumas pistas em estudo.
Natalie Tronson, professora da Universidade de Michigan (EUA) e especialista em formação da memória, afirma que mudanças duradouras no cérebro após problemas graves de saúde, como infarto e covid-19, são associadas ao aumento do risco de declínio cognitivo com o avanço da idade e também de doenças como Parkinson.
Essas transformações no cérebro podem afetar a memória tanto por danificar a conexão entre os neurônios quanto por mudanças no funcionamento neuronal, como dito anteriormente em relação aos problemas da “transmissão de energia” dos astrócitos para os neurônios.
Outro ponto problemático envolve as micróglias, que são um tipo de célula imunológica do cérebro.
“Durante doenças e inflamações, as células imunológicas especializadas no cérebro se tornam ativas, disparando uma enorme quantidade de sinais inflamatórios e modificando como eles se comunicam com os neurônios. Para um tipo de célula, a micróglia, isso significa mudar sua forma, abandonando braços finos e se tornando células móveis e inchadas que envelopam possíveis patógenos e detritos celulares em seu caminho. Ao fazerem isso, elas também destroem e devoram conexões neuronais que são muito importantes para o armazenamento da memória.”
Outra mudança estrutural do cérebro chamou a atenção dos cientistas. Martins-de-Souza, da Unicamp, explica que a morte neuronal provocada pelos astrócitos pode levar a uma mudança na espessura do córtex cerebral, região responsável pela fala, memória, compreensão da linguagem, entre outras tarefas.
O estudo do qual ele participou aponta que essa mudança estrutural ocorrida no córtex durante a covid-19 pode ter impacto na memória. “Os resultados apontam que um córtex mais fino está associado a um pior desempenho em tarefas de memória verbal. Em geral, nossos achados indicam alterações significativas na estrutura cortical associada a sintomas neuropsiquiátricos em pacientes com sintomas respiratórios leves ou mesmo sem sintomas respiratórios”, afirmam os pesquisadores.
É o caso da estudante Geovanna Bessa, 18, moradora de Paraíso do Tocantins (TO) que apresentou sintomas leves de covid-19 em janeiro de 2021, mas até hoje não se livrou da grande e constante perda de memória, da sensação de estar aérea e da dificuldade de se concentrar.
Ela chega a se esquecer do que está falando no meio de uma conversa. “A perda de memória é algo que parece inofensivo, mas que faz toda a diferença; às vezes me esqueço se tranquei a porta ou desliguei o fogo, o que é muito perigoso”, conta à BBC News Brasil.
Duração dos sintomas e possíveis tratamentos
“Ainda não sabemos se existe a possibilidade de reversão do quadro cognitivo prejudicado. Assim como algumas pessoas ainda não retornaram com seus paladares e olfatos, outras estão ainda apresentando falhas significativas na memória, função executiva e linguagem mesmo depois de terem se recuperado da covid-19 há 10 meses”, afirma Livia Valentin, da USP, à BBC News Brasil.
Segundo pesquisadores do Hospital Universitário de Oslo (Noruega), em estudo com 13 mil participantes, 12% dos infectados por coronavírus apresentavam problemas de memória oito meses após terem contraído o vírus. E esses pacientes continuam a ser acompanhados.
Estudos apontam também que o surgimento desses sintomas varia bastante de um paciente para outro. Pesquisadores da Northwest Medicine, um operador de saúde dos EUA, acompanharam 509 pacientes internados com covid-19. Do total, 42% tiveram sintomas neurológicos no início da infecção, 63% durante o período de internação e 82% ao longo do período inteiro. Os três principais sintomas eram dores musculares, dor de cabeça e encefalopatia (termo usado para doenças difusas cerebrais que alterem sua estrutura ou sua função).
Sem protocolo
Até o momento, não existe um protocolo de tratamento estabelecido para os sintomas neurológicos ligados à covid-19, uma doença nova, sistêmica e multifatorial.
Além das vacinas, há raríssimos medicamentos capazes de evitar casos graves e mortes por covid-19. Mas eles só são adotados por médicos na avaliação caso a caso, e não como prevenção ou tratamento em larga escala para a população. E a automedicação também pode agravar a doença.
É o caso da dexametasona, um corticoide que combate uma reação desproporcional do sistema imunológico de alguns pacientes (tempestade de citocinas) contra a covid que pode acabar tendo o efeito inverso e leva à morte. Essa reação imunológica desenfreada potencialmente fatal pode afetar diversos órgãos, e um deles é o cérebro.
Esse medicamento também pode ter efeitos positivos contra os sintomas neurológicos. Especialistas do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York (EUA), analisaram a fundo 18 pacientes com câncer que foram infectados pela covid-19 e que reforçaram a hipótese de uso de anti-inflamatórios para lidar com a chamada névoa cerebral.
Mas o que um paciente deve fazer caso desenvolva outros sintomas neurológicos, como confusão mental, perda de memória, tontura e dor de cabeça?
Segundo Valentin, da USP, “os tratamentos são muito variados, desde os medicamentosos, psicoterápicos, reabilitação neuropsicológica, fisioterápico”. Ela defende que o período pós-covid-19 “exige um olhar preocupante de saúde pública” e, por isso, deveria envolver diversos profissionais em equipes multidisciplinares tanto no problema quanto no tratamento.
“Caso contrário teremos uma população extremamente prejudicada em um futuro muito breve nas esferas laboral, social, acadêmica, familiar e pessoal das pessoas afetadas. Como falamos de milhares, quiçá milhões de pessoas afetadas, penso que a necessidade de um trabalho emergente e urgente já se faz tarde.”
(Fonte: BBC/Cristiane Martins)