Correio de Carajás

Félix e Aldenora: histórias em comum na superação do álcool em Marabá

“Pra aqueles que querem fugir da realidade: Cuidado com aquilo que te faz voar”, é o papo que o DJ favorito da Geração Y e de alguns Millennials passa na canção Ilusão (Cracolândia). A composição faz alusão à trágica região de São Paulo que aprisiona usuários de drogas, podendo ser facilmente comparada com alguns pontos de Marabá.

Rue Bennett talvez tenha encontrado a ilusão que Alok descreve na música. A personagem viciada em drogas, vivida por Zendaya, na série Euphoria, diz ter encontrado a sensação que esteve buscando durante toda sua vida ao tomar valium – medicamento com efeito calmante.

Após isso, ela passa a fazer uso de entorpecentes com efeitos mais intensos para manter-se “segura em sua própria cabeça”, quando “o mundo de repente fica quieto”, conforme narra na série.

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Mas essa busca por sensações ilusórias teve um preço alto para Rue, resultando na ruína de sua vida. A história é semelhante à de Félix Evandro Ramos Mourão, figura muito conhecida na Marabá Pioneira, que “adormeceu” nas drogas dos 11 aos 38 anos de idade, conforme relata o próprio em entrevista ao CORREIO em referência à data de 20 de fevereiro, Dia Nacional de Combate às Drogas e Alcoolismo.

Ele se emociona ao lembrar da dor que causou a sua família pelo uso abusivo de entorpecentes

Sua primeira experiência foi com o álcool, em 1979. Ele queria se enturmar com a galera e foi indo das drogas lícitas para as ilícitas. Aos 12 anos, começou a fumar maconha e chegou a cometer pequenos furtos em casa para sustentar o vício.

Quando sua mãe ia tomar banho, ele corria na bolsa dela e apanhava a quantia que tivesse ali, sem autorização. “Minha mãe nunca contou pra ninguém que eu fazia isso. Ela me abraçava e chorava dizendo apenas que me amava e que queria que eu saísse daquela vida”, relembra Félix.

Aos 16 anos, decidiu abandonar os estudos e sair de casa. Foi morar nas ruas da Velha Marabá, pois sentia vergonha só de estar em casa. “Não me sentia mais parte da minha família. Queria viver pelas drogas”, relembra.

Nas ruas, ele se prostituiu para conseguir dinheiro, deitando-se com homens e mulheres, e “por sorte não peguei nenhuma DST (Doença Sexualmente Transmissível)”, conforme conta.

Nesse tempo, ele dormia na Praça São Félix, que era bem diferente de hoje. Durante a entrevista, Félix conta que os dias chuvosos deste mês, o fizeram se recordar de quando chovia naquela época, e como se sentia sozinho.

Ele foi tão longe, que chegou a sair de Marabá para trabalhar em garimpos na região do Xingu, ficando dois anos longe de sua cidade natal. A essa altura, a família e os amigos pensavam que estava morto.

Porém, com 18 anos Félix conseguiu regressar e retomar sua vida. Iniciou um curso de mecânica geral no SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e depois de concluir, conseguiu um emprego na Mineradora Vale, atuando em projeto de manganês, na região da Serra dos Carajás.

Tudo parecia bem, exceto a ânsia pelos entorpecentes, que resistia. Quando recebia pagamento, Félix voltava para Marabá e passava dias gastando seu salário com drogas. O resultado foi uma demissão por faltas.

Atualmente, ele ajuda seus colegas a se recuperarem, oferecendo trabalho em seu ateliê

Ele se casou com uma prima, aos 19 anos, com quem vive até hoje, tendo seis filhos biológicos e dois adotivos. O casamento não foi fácil no início. Félix se desfez de muitos objetos da casa onde morava com a esposa, tudo para trocar por drogas.

Ele relembra já ter vendido a cama do casal, enquanto a esposa estava grávida, “ela teve que dormir no chão”, conta. Cortou a mangueira do botijão de gás e o trocou por crack. Levou a televisão, enquanto seus filhos assistiam: “deixei eles chorando em casa”, emociona-se ao rememorar o episódio.

Até que, em 2005, ele conseguiu um emprego na construção da Orla Sebastião Miranda e tudo indicava que a vida mudaria. A esposa fazia planos para investir o salário, mas, Félix pensava em fazer outra coisa.

Quando recebeu seu primeiro FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), ele saiu da agência da CAIXA e foi direto ao extinto Bar do Cristóvão, onde bebeu o quanto pôde. Não satisfeito, foi até a reputada Vila do Rato, onde se enclausurou por dois dias usando crack.

Quando sua esposa e os filhos o encontraram, por volta das 15 horas, ele estava decadente. “Lembro-me da humilhação que foi passar pela Av. Antônio Maia toda movimentada. Todos me olhavam”, recorda.

Neste dia, Félix cogitou suicídio. Mas, um amigo o chamou e disse que o levaria a um lugar onde iria se curar: o Narcóticos Anônimos (NA). No dia 11 de setembro de 2006, ele começava seu processo de reabilitação.

“Não é fácil. É uma luta constante em não pensar, não se deixar levar, não enfraquecer. Eu persisti, tanto que hoje reconstruí minha vida. Minha esposa e meus filhos se orgulham de mim”, expressa Félix.

Por ter vindo de uma família de carpinteiros (é neto do saudoso Mestre Olívio), decidiu se aprimorar e seguir o ramo da família. Ele começou assumindo a marcenaria de seu pai, Félix Mourão Neto, na Travessa São Félix, que logo ampliou e se tornou um ateliê.

Com a possibilidade de gerar empregos, ele convidou seus colegas que lutam contra o vício para trabalhar e também ter a chance de recomeçar. “Tomamos café, almoçamos e trabalhamos ouvindo nossas músicas”, descreve a rotina, acrescentando que a atividade ajuda na recuperação.

Hoje, seu ateliê conta com cinco funcionários, sendo dois filhos dele, um cunhado e dois reabilitados. “Isso fora os que passam uma semana apenas para fazer trabalhos extras”, completa.

Como recado, Félix reconhece que não é fácil mudar de vida, porém, não é impossível. “Todos temos uma chance. Em setembro completo 15 anos nesta batalha. Então, não desista”, motiva. (Zeus Bandeira)

A fé como salvação para Aldenora

Quem pensa que apenas as drogas viciam e causam danos, precisa conhecer a história da ex-alcoólatra Aldenora Rodrigues de Oliveira Neta, de 32 anos de idade. A dona de casa que ficou apenas de calcinha e sutiã em um bar no Bairro Laranjeiras, conseguiu se libertar do vício por meio da fé em Deus.

O episódio foi o ápice de uma vida marcada pelo consumo desenfreado de bebidas alcoólicas, que começou ainda na infância. Aos sete anos de idade, quando sua mãe a levava para as festas, ela bebia as sobras de cervejas dos copos em cima da mesa. “Era brincadeira de criança”, comenta Aldenora.

Aldenora relata que tentou diversas vezes abandonar o álcool, porém, tinha recaídas

Mas aos 12 anos, a brincadeira ficou séria. Em um final de semana casual, seu namorado – e pai de sua primeira filha – chegou com licor de abacaxi e ambos beberam na porta de casa. Essa foi a primeira embriaguez, daquelas de deixar com ressaca no dia seguinte. “Até o cheiro de abacaxi me deixava enjoada”, recorda.

No entanto, a indisposição causada não fez Aldenora abandonar o álcool, tendo continuado ingerindo durante toda sua adolescência, em festas ou até mesmo em casa. Por sorte, não chegou a se meter em encrencas, como muitos jovens atualmente.

Foi na fase adulta que as coisas começaram a perder o controle, tendo cometido diversos absurdos a ponto de não se lembrar no dia seguinte o que havia feito ou dito. Quando contavam a ela o que se passava, ficava chocada e constrangida consigo mesma.

A rotina basicamente era trabalhar durante a semana e “sextar” tomando “umas” para relaxar. Reunia alguns amigos, assavam uma carne e jogavam conversa fora em uma reunião de boemia.

Porém, conforme o tempo passou, ela começou a beber todos os dias. Se sentia agoniada e queria antecipar. “Acabava bebendo logo na quarta-feira, por conta disso”, justifica.

Até que um dia, estava bebendo em casa, quando seu esposo pediu para que parasse. Não seguiu o conselho e continuou. Ela narra que a bebida havia acabado e decidiu fugir de casa para continuar a beber, em um bar próximo.

Depois de algum tempo bebendo nesse bar, em um determinado momento, sem que recordasse do motivo, ela se viu apenas de calcinha e sutiã, vagando pela rua. Aldenora também não se lembra como chegou em casa, apenas o que no dia seguinte contaram a ela.

Foi então que a mulher “acordou” e decidiu não continuar vivendo assim. Como esposa e mãe de quatro filhas, ela procurou mudar sua vida, voltando a frequentar a igreja e tendo em Deus, a força para superar o vício.

Atualmente, ela está há três anos sem ingerir álcool, deixou seu emprego para ficar mais próxima de suas filhas e investiu no ramo de confeitaria. “Eu já tinha boas habilidades em produção de bolos e salgados, então, pensei: por que não? Hoje contribuo com a renda da casa e ainda fico próxima de minhas filhas”, alegra-se.

Ela encontrou forças para largar o álcool na fé e no seu trabalho de confeiteira, uma ocupação para se manter sóbria

Aldenora também deixa seu recado, explicando que sempre há uma saída. “Dizem que ‘a chave para a liberdade está dentro de nós’, então, a decisão de se libertar deve partir do individual. A minha chave foi Deus, com quem converso tanto na igreja, quanto sozinha em casa”, completa.

NÃO CONSEGUE PARAR? O SUS TE AJUDA!

Poucos sabem, mas, graças ao SUS (Sistema Único de Saúde) pessoas adoecidas pelo alcoolismo ou pelo vício em entorpecentes podem ter uma chance de se recuperar. Inclusive, o Ministério da Saúde destaca o dia 20 de fevereiro como o Dia Nacional de Combate às Drogas e Alcoolismo.

Em Marabá, o atendimento é feito pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS III Castanheira) através dos Grupos de Redução de Danos, com o projeto “Papo Reto” que realiza encontros pela manhã e pela tarde.

O CAPS III Castanheira é uma alternativa gratuita para quem deseja abandonar os vícios em álcool e drogas

Nesses grupos, os participantes passam por momentos de reflexão, ajuda e esclarecimento de dúvidas sobre o uso abusivo de substâncias psicoativas (álcool e drogas). Além disso, são elaboradas estratégias para evitar esse uso, segundo a enfermeira do CAPS III, Daniela Santiago.

Ela explica que o grupo da manhã fica sob os cuidados de um terapeuta ocupacional e, à tarde, ela assume com apoio de uma assistente social. Há uma média de 20 pessoas sendo acompanhadas pela manhã e até 14 pela tarde.

“Esse número varia, pois, nem sempre o paciente deseja participar. Alguns comparecem apenas para o atendimento individual com psicólogo, médico ou outro profissional”, explica Daniela.

Vale lembrar que o CAPS III dispõe de uma equipe completa para acolher o paciente, contando com psicólogo, psiquiatra, terapeuta ocupacional, assistente social, farmacêutico, enfermeiros especialistas, médicos, técnicos em enfermagem e outros.

Daniela mostra alguns artesanatos produzidos pelos grupos de redução de danos

O Centro atende a todos e está localizado na Folha 31, próximo à Fundação Casa da Cultura. O paciente só precisa apresentar um documento com foto, o cartão do SUS e um comprovante de residência para iniciar seu tratamento. “Porém, mas do que isso, ele precisa ter vontade de mudar de vida”, reforça Daniela.

E o recado da enfermeira é reforçado nos últimos versos da canção de Alok, quando ele alerta: “para aqueles que querem desistir da vida, porque não esperam mais nada dela. Talvez, seja ela, que espera algo de você”.

Talvez essa seja a epifania que restava em Félix e Aldenora quando decidiram mudar de vida. Mas, ainda há 3,5 milhões de usuários de drogas e 4 milhões de pessoas alcoólatras existentes no Brasil, conforme estudos da Fundação Oswaldo Cruz e da Organização Mundial da Saúde (OMS), que precisam de ajuda para mudar de rumo na vida. (Zeus Bandeira)