Hoje, terça-feira, dia 23 de março de 2021, completa um ano da divulgação do primeiro caso confirmado em laboratório de covid-19 em Marabá. Era uma mulher de 28 anos, que retornou à cidade depois de uma viagem a São Paulo, por via aérea. O maior município do sul e sudeste do Pará é também o que mais registrou mortes nos 364 dias seguintes: 297.
A Vigilância Epidemiológica de Marabá divulgou nesta segunda-feira, 22, que o município registrou, em um ano, 15.944 casos de covid-19. Curiosamente, dos 297 óbitos, 51,1% foram mulheres e, pasmem, 64,9% das vítimas fatais não são idosos, como se imagina, mas pessoas da faixa etária entre 21 a 50 anos de idade.
No município, os hospitais públicos trabalham próximo do estrangulamento, com 52 dos 4 leitos de UTI ocupados. Os leitos de enfermaria, no final da tarde de ontem, havia apenas cinco dos 36 leitos disponíveis para casos de covid-19. Os números apontam que Marabá está bem próximo do colapso em seu sistema de saúde, podendo até mesmo voltar a decretar lockdown em breve.
Leia mais:E como dimensionar ou representar a perda de 297 pessoas e suas consequências? O que virá depois de o Brasil chegar à marca trágica de quase 300 mil mortes por covid-19? Talvez não venha nada diferente: o país já vive um clima de “dia seguinte”, mesmo com o aumento no número de casos e óbitos, beirando os 3.000 óbitos por dia. Enquanto ainda não se sabe quando as aulas vão voltar, bares e restaurantes reergueram suas portas, dentro de novos limites de ocupação.
O fato é que a covid-19 esgarça e aprofunda a fratura social brasileira: nos últimos 10 anos, fomos da euforia ao medo. A polarização política se acirrou, barragens se romperam, prédios pegaram fogo, houve um impeachment, a crise econômica bateu. Eis que, da noite para o dia, numa situação em que o coletivo dependia de ações individuais, ignorar o uso de máscara, gostar de cloroquina e não ter receio de aglomerações virou declaração política, prova “de que lado cada um está”. O “cada um por si” venceu?
“Quem realmente compreende são os que choram os mortos. Para cada óbito, há entre 4 e 10 enlutados. Podemos ter 500 enlutados da covid-19”, explica Antônio Almeida, membro da ONG Sempre Vidas, que percorre bairros periféricos de Marabá ouvindo histórias de familiares que perderam ente queridos para realizar um documentário. E esse número não calcula os parentes e amigos dos que perderam a vida por outras causas e que também não puderam realizar seus rituais de despedida.
Para os que não estão diretamente envolvidos com a doença e suas consequências, o grau de sensibilização é variável. “Não culpo os que não entenderam a dimensão da pandemia. As informações que chegam, mesmo das autoridades, são discordantes”, sintetiza.
Cláudio Paixão, doutor em psicologia social e professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), conta que, na superfície, talvez o brasileiro não esteja mostrando mudança, mas psicologicamente, muitos já sentem o impacto. “Tudo que acontece na nossa vida é apropriado pelo inconsciente. Se uma situação social gera angústia, o cérebro produz uma tentativa de resolver essa angústia. O sonho da máscara é um sonho recorrente, algumas pessoas já me contaram isso. Essa máscara tem um status simbólico.”
Separamos, aqui, uma breve linha do tempo da covid-19 em Marabá, para que o leitor relembre os principais fatos da pandemia em nosso município.
12 de abril de 2020 – Sespa confirma primeiro óbito pela doença em Marabá;
14 de abril de 2020 – Estado inaugura Hospital de Campanha em Marabá;
22 de abril de 2020 – Acometido de covid-19, morre o ex-prefeito de Marabá, Nagib Mutran;
27 de abril de 2020 – morre o ex-deputado federal Asdrubal Bentes, vítima de covid-19;
30/05/2020 – Marabá registra 100 óbitos pela doença nefasta;
04/10/2020 – Marabá chega à marca de 200 óbitos por covid-19;
30/11/2020 – Governo do Estado fecha Hospital de Campanha de Marabá;
01/12/2020 – Segunda onda da doença começa a causar lotação no Hospital Municipal de Marabá;
16/02/2021 – Região de Marabá ultrapassa marca de 1.000 óbitos provocadas pelo novo coronavírus.
Pacientes revelam vida nova depois de ressureição da UTI
José Emanuel Linhares foi o primeiro nome que veio à mente do contador Lucas Santos, 30 anos, ao abrir os olhos depois de 33 dias em coma induzido na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Municipal de Marabá. Paciente com covid-19, Lucas ainda retomava a consciência quando lembrou do amigo vira-lata de seis anos, com quem divide uma casa de três cômodos no Jardim Imperial. Era o recomeço depois de uma parada cardiorrespiratória, uma trombose na virilha esquerda, 80% do pulmão comprometido e cinco pronações (posição de bruços para aumentar a quantidade de oxigênio que entra nos pulmões) durante o período no qual esteve entubado.
Um mês depois de deixar o hospital, já ao lado do fiel Tobias, Lucas tem a mesma certeza que costuma acompanhar os pacientes de covid-19, cujo tratamento exigiu semanas de internação sob cuidados médicos extremos: renasceu e precisa retomar a vida.
Professor de História, ele não sabe como contraiu a doença. Lembra apenas de, em 18 de setembro, terem iniciado sintomas leves de gripe – dor no corpo e pico febril –, tratados em casa com antigripal, e quatro dias depois precisar de ajuda médica porque já estava sem ar. Ao chegar ao HMM, recorda que o oxigênio foi sendo aumentado rapidamente pela equipe até que decidiram entubá-lo. Ele tinha certeza de que voltaria para casa em poucos dias. Ficou 45 internado.
Na semana seguinte à internação de Lucas, o garçon Antônio Carlos Pinto Ben, 47 anos, e o funcionário público aposentado José Elias Maciel, 67, também moradores do núcleo Cidade Nova, viviam situação semelhante à do contador. Eles não se conhecem, mas internaram no mesmo dia no Hospital Municipal, achando que ficariam apenas algum tempo recebendo oxigênio, até serem liberados. Os dois permaneceram 22 dias em coma induzido. Antônio Carlos saiu do hospital depois de 50 dias. José, após dois meses.
Com vidas completamente distintas antes da covid-19, os três tiveram recomeços parecidos desde o abrir dos olhos, ainda na UTI. Era como se estivessem nascendo, mas já com a memória de muitos anos vividos. Sem forças para erguerem as mãos ou ficarem em pé sozinhos, precisaram reaprender ações básicas, como falar, respirar, deglutir e se movimentar, antes de terem alta médica. Sessões de fonoaudiologia e fisioterapia iniciaram no dia do despertar e continuam ocorrendo em casa, cada um no seu próprio ritmo.
“Eu mudei mesmo. Tinha uma vida muito ativa antes da covid-19. Depois dela, percebi que os valores mais importantes, realmente, são a amizade, o aconchego e o contato com as pessoas. É uma doença que ataca os ricos e os pobres. Então, o que mais vale é estar junto com os teus, com as pessoas que te querem bem — resume Antônio, que é solteiro, faz fisioterapia cinco vezes por semana e pretende começar análise assim que concluir as consultas com a fonoaudióloga, o primeiro dos tratamentos que deverá receber alta em breve. (Ulisses Pompeu)