- É enganosa postagem no Twitter que associa um estudo pré-publicado, portanto sem revisão dos pares, com utilização da hidroxicloroquina no tratamento precoce contra a covid-19 defendido por Bolsonaro (sem partido) e apoiadores. Além disso, o estudo em questão foi realizado com pacientes já em estado grave.
- Conteúdo verificado: Tuíte compartilha postagem de site americano sobre um estudo que chegou à conclusão de que tratamento com hidroxicloroquina pode aumentar as chances de sobrevivência de pessoas com covid-19 em quase 200%. O perfil acrescenta um comentário: “a CPI do circo deveria dar uma lida em estudos assim. O ministro da Saúde idem”.
Para defender a adoção de um “tratamento precoce” contra a covid-19, um tuíte enganoso divulga texto do site One America News que afirma que hidroxicloroquina pode aumentar chances de sobrevivência de um paciente em 200%. Na verdade, é um estudo sem revisão de pares e que avaliou o uso da droga em pessoas que estavam em estágio avançado da doença, não utilizando, portanto, o medicamento de forma preventiva.
Leia mais:O site afirma que “estudo confirmou que a hidroxicloroquina é eficaz no tratamento de covid-19”, referindo-se a uma pré-publicação que avaliou 255 pacientes infectados que necessitaram de ventilação mecânica invasiva (IMV, na sigla em inglês), ou seja, em estado grave, durante os primeiros dois meses da pandemia nos Estados Unidos.
A plataforma que o publicou destaca que preprints são relatórios preliminares de trabalhos que não foram certificados por uma revisão por pares. O estudo não engloba o que se defende no Brasil, por apoiadores do governo Bolsonaro e pelo presidente, como tratamento precoce contra o vírus.
O especialista Bruno Rezende de Souza, doutor em Farmacologia Bioquímica e Molecular no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi consultado pelo Comprova e diz que a amostra utilizada no estudo é pequena, tornando-o fraco, além de ressaltar não ter sido utilizado método eficaz para a análise.
O tuíte da usuária acrescenta o comentário de que “a CPI do circo deveria dar uma lida em estudos assim. O ministro da Saúde idem”, referindo-se à CPI da Pandemia, instaurada no Senado com a finalidade de apurar ações e omissões do governo federal no combate ao coronavírus, e ao depoimento do ministro Marcelo Queiroga aos membros da comissão, durante o qual se posicionou contrário ao “tratamento precoce”, defendendo a vacinação.
O perfil @Clauwild1, que fez a postagem no Twitter, foi procurado, mas não retornou até a publicação dessa verificação.
Como verificamos?
A partir da postagem no Twitter, o Comprova verificou o conteúdo do texto compartilhado e chegou ao estudo, que foi submetido à análise do especialista Bruno Rezende Souza.
Pesquisamos os tipos de estudos e qual o ideal para atestar a eficácia de drogas e tratamentos.
Analisamos uma entrevista de um dos autores do estudo e o procuramos por meio de contato informado no preprint, mas não recebemos retorno.
Também revisitamos checagens e estudos anteriormente publicados sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento contra a covid-19.
Por fim, tentamos conversar com o perfil @Clauwild1, responsável pelo tuíte, sem sucesso.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 14 de junho de 2021.
Verificação
Estudo
O estudo foi publicado pelo site MedRxiv, que se apresenta como um arquivo online gratuito de manuscritos completos, mas não publicados (preprints) nas ciências médicas, clínicas e de saúde relacionadas.
O site destaca, inclusive, que preprints são relatórios preliminares de trabalho que não foram certificados por revisão por pares e que não devem ser usados para orientar a prática clínica ou comportamento relacionado à saúde, nem ser relatados na mídia como informação estabelecida.
Conforme apresentado pelos autores, o estudo avaliou 255 pacientes infectados com covid-19 que necessitaram de ventilação mecânica invasiva durante os primeiros dois meses da pandemia nos Estados Unidos.
Foram examinadas as associações de comorbidades, parâmetros laboratoriais e terapias médicas com mortalidade em todos os pacientes internados em um único hospital no norte de Nova Jersey, durante a primeira onda da pandemia, entre a segunda semana de março e o pico, no início de abril de 2020.
Os pacientes foram analisados no Saint Barnabas Medical Center ao longo de 51 dias, a partir de 12 de março. Os dados dos prontuários foram acrescentados no mesmo banco de dados e analisados de várias maneiras.
“As abordagens incluíram análises de séries temporais de sinais vitais, dados laboratoriais e terapêuticos. Também examinamos o tratamento de uma maneira mais completa e abrangente, que incluiu todos os tratamentos utilizados. Ao fazer isso, fomos capazes de obter novos insights sobre a covid grave, que causa insuficiência respiratória”, diz o estudo.
As conclusões apontam que apenas 3,5% do grupo recebeu alta, mas os autores defendem que vários fatores estão associados ao desfecho em pacientes com covid hospitalizados. “A maioria dos estudos da covid não considerou dias de terapia (período em que pacientes receberam medicação), dose cumulativa ou dosagem ajustada ao peso. Descobrimos que quando as doses cumulativas de dois medicamentos, HCQ [hidroxicloroquina] e AZM [azitromicina], estavam acima de um determinado nível, os pacientes tinham uma taxa de sobrevida 2,9 vezes maior que os outros pacientes”, conclui.
O preprint destaca que esses dados ainda não se aplicam a pacientes hospitalizados que não estejam em IMV, ou seja, que não estejam em estado grave. “Uma vez que aqueles com doses mais altas de HCQ tinham doses mais altas de AZM não podemos atribuir apenas o efeito causal (a sobrevida de alguns pacientes) à terapia combinada de HCQ/AZM”.
É provável, destacam os autores, que a azitromicina contribua significativamente para esse aumento na taxa de sobrevivência. “Uma vez que a terapia com doses mais altas de HCQ/AZM melhora a sobrevida em quase 200% nesta população, os dados de segurança são discutíveis”, destaca.
Tipo de estudo
O artigo trata de um estudo observacional, geralmente utilizado para formular hipóteses, segundo explica o Centro de Apoio à Pesquisa no Complexo de Saúde (CAPCS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Para atestar a eficácia de drogas e tratamentos, o ideal é a realização de um ensaio clínico, como explica um texto de Claudia de Carvalho Falci Bezerra, mestre em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas pela Fiocruz. O melhor modelo é o duplo-cego randomizado, em que os pacientes são separados em dois grupos: um que receberá o tratamento e outro que receberá placebo. A divisão aleatória ajuda a evitar vieses como idade e condição física, que podem afetar o resultado.
Além disso, nesse tipo de estudo nem médicos, nem pacientes sabem, no momento em que a droga é administrada, quem está recebendo o medicamento e quem está recebendo o placebo. “A justificativa para esta técnica é que quando o paciente sabe que está recebendo um novo tratamento, pode haver um efeito psicológico benéfico no paciente, fazendo-o se sentir melhor mesmo não havendo nenhuma melhora clínica efetiva. E ao contrário, se o paciente souber que está recebendo um tratamento convencional ou nenhum tratamento, pode acontecer um efeito psicológico indesejado. O paciente pode se sentir pior, mesmo que não haja nenhuma piora no quadro”, explica o texto da pesquisadora.
Avaliação
O Comprova pediu ao cientista Bruno Rezende de Souza, da UFMG, para avaliar o estudo.
Conforme o professor, trata-se de estudo observacional e também retrospectivo, tendo peso pequeno como evidência porque é impossível responder se foram os medicamentos que causaram a melhora de pacientes. “Não dá para comparar com os estudos randomizados, duplo-cego e controlados com placebo já publicados”, afirma.
Ainda segundo a análise do especialista, a amostra utilizada é pequena, o que torna o estudo fraco, pois há aumento da chance de resultados falso-positivos e falso-negativos. “É como tirar cara ou coroa e fazer um gráfico depois de jogar a moeda pra cima só três vezes”, diz, lembrando tratar-se de um artigo pré-publicado que precisa ainda passar por revisão por pares.
Rezende chama a atenção sobre um dado específico do estudo, mencionado na tabela 1, que contém valores de apresentação e condições pré-existentes dos pacientes estudados. Conforme o levantamento, no dia da admissão dos pacientes, a maioria já estava sendo medicada com hidroxicloroquina e hidroxicloroquina combinada com azitromicina.
“A barra azul mostra para gente que tem muito mais pessoas sendo intubadas que são tratadas (com hidroxicloroquina) do que as que não são tratadas, ou seja, se eu olhasse só esse gráfico eu falaria que esse tratamento está induzindo as pessoas a serem intubadas, está sendo pior”, observa.
Apesar disso, diz, a interpretação está comprometida por falta de dados mais detalhados. “É apenas uma crítica porque não tem os dados que mostram se estava pareado o número de pessoas internadas em tratamento com hidroxicloroquina e azitromicina e pessoas que não estavam sendo tratadas, aí seria um estudo sério, que você pareia, normaliza pela idade, essas coisas todas. E não tem nada”, finaliza.
Hidroxicloroquina
Como o Comprova mostrou em uma verificação recente, o Grupo de Desenvolvimento de Diretrizes da OMS, formado por especialistas de todo o mundo, concluiu, no dia 1º de março de 2021, que a hidroxicloroquina não deve ser usada para tratar a covid-19 de forma precoce. Para fazer essa recomendação, os especialistas realizaram seis ensaios clínicos randomizados, dos quais participaram 6 mil participantes.
De acordo com esse grupo de especialistas, “o estudo mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo na morte e admissão ao hospital, enquanto a evidência de certeza moderada mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo na infecção por covid-19 confirmada em laboratório e provavelmente aumentava o risco de efeitos adversos”.
Por causa desses achados, os cientistas entenderam que a hidroxicloroquina deve deixar de ser prioridade nas pesquisas em busca de medicamentos para prevenir a infecção pelo novo coronavírus. A pesquisa completa foi publicada no The BMJ.
CPI e o ministro da Saúde
A CPI da Pandemia foi instalada no dia 27 de abril de 2021, com 11 senadores titulares, para apurar, em 90 dias, as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da crise sanitária no Brasil e, em especial, no agravamento dela no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados.
Tem como objetivo, também, investigar possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, se valendo para isso de recursos originados da União, bem como outras ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais a partir de recursos repassados pela União.
Citado no post verificado aqui, o ministro da saúde, Marcelo Queiroga, prestou depoimento e se posicionou contra o tratamento precoce, defendendo a vacinação como medida contra a covid-19.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham viralizado nas redes sociais sobre a pandemia ou sobre políticas públicas do governo federal. Quando esse conteúdo envolve medicamentos ou tratamentos contra o novo coronavírus, sua checagem se torna ainda mais necessária, porque informações incorretas podem levar as pessoas a colocarem sua saúde em risco.
O tuíte verificado aqui teve 3,9 mil curtidas e 1,5 mil compartilhamentos, além de 71 comentários.
Recentemente, o Comprova mostrou serem enganosos conteúdos virais sobre uma possível indicação do defensor da cloroquina ao Nobel da Paz; sobre a vacinação contra a covid-19; sobre o uso de máscaras; e sobre o chamado “tratamento precoce”.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 33 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.