O que você faria se dissessem hoje que você precisa deixar a sua casa apenas com a roupa do corpo? Que o sonho ao qual você dedicou os últimos 11 anos foi em vão? É essa angústia que atravessa os moradores do acampamento Dalcídio Jurandir, em Eldorado dos Carajás, ameaçados de despejo.
O futuro das 212 famílias, que ocupam o local desde 2008, pode ser decidido em uma audiência pública nesta terça-feira, 11, às 9h, na Comarca da Justiça Agrária em Marabá. Se o pesadelo das famílias se concretizar, o terreno volta para as mãos do banqueiro Daniel Dantas, condenado por corrupção.
O acampamento Dalcídio Jurandir fica localizado às margens da BR-155, a 28 km da cidade de Eldorado dos Carajás, que está a 100 km de Marabá. Uma placa, recém-pintada, mostra o quanto é vivo o desejo de permanecer no lugar. Ao entrar, o espaço mantém a alegria comum dos lugares onde se compartilha uma boa vizinhança: crianças brincando, um senhor trabalhando sua roça, pessoas de um lado disputando um torneio de futebol, outras tantas reunidas em uma roda de conversa alegre. Porém, basta se aproximar e perguntar pela audiência que a alegria dá lugar à preocupação e à tristeza.
Leia mais:Para Iraci Gomes, de 32 anos, que cursa Educação do Campo na Unifesspa em Marabá, a agonia atinge toda a família. “Quando chega mês de audiência todo mundo entra em desespero. Semana passada, minha mãe enfartou e passou 12 dias internada em Parauapebas. Meu filho chegou outro dia da escola e me questionou: ‘Mãe, é verdade que vamos sair daqui?”, conta a mãe, dizendo que tenta passar ao filho uma tranquilidade que ela já não tem.
Moradora do acampamento desde 2008, ela veio a pedido da mãe, que queria ter todos os cinco filhos juntos. Hoje, ela e o marido que sustenta a família com diária de agricultura residem no espaço com a certeza de que não há, nessa sociedade, outro espaço para eles. “Eu não tenho outro lugar para morar. O lugar que eu tenho para morar é aqui”, reafirma.
Em se plantando
A criação de galinha e porco, e o cultivo de feijão e arroz, mantém a família de Iraci. No acampamento, são produzidas 174 toneladas de farinha, que abastecem as cidades de Xinguara, Redenção, Rio Maria, e Curionópolis, além de 184 mil litros de leite por mês, que são destinados para consumo próprio das famílias e para abastecer a cidade de Eldorado dos Carajás.
O acampamento conta ainda com 53 tanques de criação de peixes e uma diversidade de mais de 45 tipos de frutas, verduras, leguminosas, hortaliças e criações, que são comercializados nas feiras e mercados das cidades. Mamão, banana, mandioca, maxixe, feijão, e manga são algumas das variedades produzidas.
A retirada das famílias do acampamento terá impactos econômicos para a cidade de Eldorado dos Carajás, que tem pouco mais de 32 mil habitantes – para além de ampliar o déficit habitacional do Pará, que é o pior do Brasil. Na região Norte, 24,4% das pessoas são privadas do direito à moradia adequada: ou arcam com aluguéis abusivos ou têm casas construídas com materiais não duráveis e sem banheiro de uso exclusivo no domicílio.
Um documento elaborado pela Universidade do Sul e Sudeste do Pará, intitulado “Impactos do Despejo: Acampamento Dalcídio Jurandir, Município de Eldorado dos Carajás”, aponta que a cidade não tem capacidade nem estrutura para receber as famílias.
Rotina
A vida no campo começa cedo. Às 4h, já estão de pé para dar atenção às plantações. Às 7h, todos os animais já foram alimentados e as vacas leiteiras do acampamento, ordenhadas. As frutas, verduras e legumes são levadas muito cedo para a cidade para serem comercializadas na Feira do Produtor Rural.
A cidade de Eldorado dos Carajás vive da atividade rural, como reafirma o documento da Universidade do Sul e Sudeste do Pará. No acampamento, o agricultor Creoni da Silva, de 58 anos, conta que quando chegou ao local, não havia nada: ele começou a lavoura “do zero”.
Seu Creoni é um homem de pele clara, mas queimada de sol. O inseparável chapéu de palha fala antes que ele precise pronunciar uma única palavra que sua vida é no campo. O homem vive sozinho no lugar, pois se separou da esposa há alguns anos. O dinheiro que obtém vem com a venda do que ele mesmo produz e se destina a comprar remédios e o calmante, que ele toma há algumas semanas, desde que foi informado da possibilidade de despejo. “Eu vivo aqui nesse pequeno pedaço de chão. Não tem para quem eu trabalhar uma diária. Não tenho nada, mas sobrevivo daqui”, diz.
Em sua casa de barro, seu Creoni segue sozinho com fé em Deus, mas o desespero às vezes toma conta. “Hoje eu me acho muito preocupado, porque é a única coisa que a gente tem na vida, mas a gente espera em Deus que tenha alguém que vai nos tirar dessa aflição”, afirma.
O movimento tenta sensibilizar a população e mostrar às autoridades o prejuízo que o despejo das 212 famílias pode causar. “A reforma agrária não devia ir por viés jurídico. A decisão da questão agrária, assim como de outros projetos do país, é uma decisão política e de necessidade para o desenvolvimento do país”.
Assim como Elisvaldo, Mateus Sousa de Oliveira, de 61 anos, também é agricultor. Dono de uma barba longa e grisalha e de uma fé sem tamanho, ele veio do Mato Grosso para tentar um pedaço de chão no estado do Pará. Hoje, Seu Mateus vive do que cultiva.
Na época em que foi para o acampamento Dalcídio Jurandir, ele tinha quatro filhos pequenos e a esposa para sustentar, e entende que a vinda ao local foi quase como uma peregrinação divina. “Eu acredito em um homem que nunca perdeu uma batalha, e não é essa que ele vai perder. Eu tenho certeza que ele que nos mandou para cá. Aqui é Terra Prometida. Se ele nos mandou pra cá, ele não vai permitir que o adversário venha nos tirar daqui”, diz.
Apesar de acreditar que o local é divino, Seu Mateus diz que, “no início, era só capim”. Quando questionado sobre o que diria ao banqueiro Daniel Dantas, caso tivesse a oportunidade, Seu Mateus não hesita: “Isso aqui não é nada diante da fortuna dele. Se ele tivesse coração, ele dava essa terra para a gente”, diz.
A mesma reflexão faz a agricultora Fabíola Pereira da Silva, de 39 anos. Ela é mãe de sete filhos e planta seis variedades de fruta, além de mandioca e hortaliças para consumo da família.
A vida na casa de Fabíola é simples. O chão é de cimento queimado. As paredes de barro e o telhado de palha revelam o cotidiano de alguém que vive com nada além do básico. O dinheiro no fim do mês é resultado de muito esforço, dela e do marido. “A caixa de banana, a gente vende a 25 reais; o mamão também a 25 reais. É pouco, mas é muito, para quem não tem nada. Dá o suficiente para, às vezes, a gente trazer um pacote de arroz, um pacote de açúcar, um café”, conta.
Ela chegou ao acampamento no dia 16 de agosto de 2018 e, desde então, é a esse lugar que ela tem dedicado cada dia de sua vida. “Outro dia, meu filho chegou em casa e disse: ‘Mãe, o que vai ser da gente se a gente sair daqui? Lá fora eu não tenho nada, tudo o que eu tenho está aqui’”. A mãe, sem saber o que responder para a criança, e tão preocupada quanto ela, aguarda a decisão da Justiça do Pará e não abre mão da luta pelo direito à terra. (Fonte: Brasil de Fato)