“Você sabe que isso tudo vai ser destruído?”, informa o agricultor Valdecir Moreira Leite, de 62 anos, olhando para as colinas cobertas de floresta da porção sudeste da Serra de Carajás, no Pará. A mata imponente se ergue sobre o pomar de Valdecir, onde as árvores frutíferas formam uma cobertura tão espessa que impedem a entrada de sol e o crescimento de vegetação terrestre, expondo o solo avermelhado e úmido. A água verte do cume em uma caixa-d’água de 500 litros que transborda por não dar conta de controlar a vazão. O som embaralha os sentidos: mesmo num dia ensolarado escuta-se chuva. A água gelada e cristalina abastece a casa de Valdecir e de sua mulher e percorre mangueiras fixadas no chão que irrigam o pomar, apinhado de Bananeiras, Mangueiras e Buritizeiros. “Vai tudo virar um imenso buraco, e as serras, uma pilha de rejeitos”, completa em tom resignado o ex-sanfoneiro paranaense de cabelos ondulados grisalhos sob um chapéu de boiadeiro, que aterrou no Pará nos anos 1980. Essa foi a primeira das muitas vezes que Valdecir, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), repetiria a mesma frase durante a visita às roças de grãos e hortaliças entremeadas na floresta.
Valdecir e Inêz de Sousa, sua companheira de 51 anos, vivem com mais 131 famílias na iminência de serem despejados das terras públicas que a Vale – mineradora multinacional brasileira e maior produtora mundial de minério de ferro do planeta – afirma ter comprado entre 2008 e 2011 para implantar o Projeto Cristalino para exploração de cobre e ouro. Hoje ele se encontra em fase de análise de documentação para licenciamento ambiental, segundo a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas). Se for aprovada, a mina a céu aberto vai desmatar quase mil hectares de floresta conservada, segundo uma nota técnica do Ministério Público do Pará com base no estudo e no relatório de impacto ambiental feito pela mineradora. Meio milhão de árvores tombarão. Pelo menos três cavernas, cuja riqueza arqueológica ainda não foi estudada, serão destruídas para dar lugar a uma cava de onde serão extraídos 16 milhões de toneladas anuais de cobre – e o dobro de rejeitos. Sedimentos que Valdecir antevê no lugar dos cerros por onde verte a água límpida que irriga os pomares e as roças dos mais de cem agricultores.
Desde 2015, grupos de trabalhadores rurais e de ex-assentados da reforma agrária de Canaã dos Carajás travam na Justiça uma disputa desigual com uma das maiores mineradoras do mundo pelo direito à terra. As áreas foram ocupadas por eles em uma reação à expansão minerária e territorial da Vale ocorrida nas últimas duas décadas sobre terras públicas na Serra dos Carajás. Avanço considerado irregular em alguns casos, já que a principal estratégia da mineradora foi comprar terras de assentados da reforma agrária, o que não é permitido por lei – um assentado é considerado um usuário da terra e não pode vender seus lotes a terceiros por um período de dez anos após ter a posse definitiva, o que pode demorar décadas.
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Uma análise exclusiva de SUMAÚMA feita na base do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro público obrigatório para todas as propriedades do campo, confirma a cobiça da Vale. A mineradora registrou, em 7 CNPJs ativos no Pará, 182 imóveis rurais que somam 62 mil hectares, território quase equivalente à área urbanizada da cidade do Rio de Janeiro. Dos 182 imóveis que a empresa alega serem seus – o CAR é uma ferramenta autodeclaratória –, 46 aparecem sobrepostos a outros imóveis e dez estão sobre áreas de assentamentos, unidades de conservação ou Terras Indígenas, o que é irregular.
Os imóveis sobrepostos a áreas públicas somam 17,2 mil hectares. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará, responsável pelo sistema, informa que apura o caso. Os dez registros com sobreposições a assentamentos e outras áreas públicas constam no sistema: seis estão classificados como pendentes; dois, suspensos; um cancelado; um ativo. Caso seja constatado que as informações declaradas são falsas, enganosas ou omissas, diz a Semas, os registros serão cancelados. Os dados do CAR foram apurados em dezembro de 2023.
Sílvia Lisboa (publicado em Sumaúma)
CPT: Vale teria arrematado 58,4 mil hectares de terras na região
Segundo um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) feito com base em dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e em processos judiciais, a Vale teria arrematado 58,4 mil hectares de terras na região de Carajás entre os anos 2000 e 2011. Pelo menos 41% (24 mil hectares) são terras públicas da União e de assentamentos pertencentes ao Incra. Entre elas, estão os lotes ocupados e reivindicados hoje por Valdecir e outras 131 famílias na área onde a Vale quer extrair cobre e pelas 447 famílias do Planalto Serra Dourada, onde a mineradora pretendia explorar níquel. As três áreas atualmente ocupadas por trabalhadores rurais, que somam 6.395 hectares, pertenciam a antigos assentamentos.
Em 2008, agricultores assentados em Ourilândia do Norte, também na região da Serra dos Carajás, denunciaram ao Incra que foram pressionados pela mineradora para vender seus lotes, conforme o relatório obtido pela Folha de S. Paulo. À época, a própria Vale reconheceu a compra irregular e firmou um acordo com o Incra. Adquiriu novas terras e entregou-as à União para reassentar as famílias. Mas a sanha por terras públicas não cessou desde a denúncia. Uma reportagem do jornal El País, que registrou o início da resistência dos sem-terra em Canaã, entrevistou assentados que venderam terras à mineradora antes de 2016. Eles disseram que a empresa perguntava se os agricultores tinham o título da terra, mas, “se não tinham, compravam também”.
A Vale obtém lucros bilionários a partir de seus três projetos de grande porte em Canaã dos Carajás: Sossego (cobre), Onça Puma (níquel) e S11D, a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo. Em 2022, seis anos após a abertura da S11D, registrou 95,9 bilhões de reais (18,6 bilhões de dólares) de lucro, o terceiro maior resultado da história da Bolsa de Valores brasileira, atrás apenas dos ganhos da Petrobras e da própria Vale no ano anterior. No ano passado, o lucro recuou 53,6%, ficando em 39,9 bilhões de reais (7,7 bilhões de dólares), “em função dos menores preços médios realizados e o impacto de perdas cambiais”, segundo a empresa.
Enquanto contabilizava lucros bilionários, a Vale seguiu com as ações de desocupação contra os agricultores de Canaã que tiram seu sustento de pequenas roças entremeadas na floresta e vivem, em sua maioria, em casas de madeira. Em mais de oito anos, com muita luta e suor, eles ergueram acampamentos organizados e produtivos que hoje abastecem com frutas, grãos, verduras e laticínios moradores de Canaã dos Carajás. Lutaram por luz elétrica, construíram escolas, oficina, armazém e centro comunitário para reuniões coletivas – a gestão é compartilhada por quatro ou cinco lideranças em cada um deles. No Planalto Serra Dourada, o acampamento com casas de lona deu lugar a um pequeno vilarejo com construções de alvenaria – a maioria dos agricultores já tem casas e galpões de tijolos como se vivessem ali desde muito tempo. “Ficamos só alguns meses na lona. Erguemos tudo juntos”, orgulha-se Carlenes Pereira Silva, de 53 anos, a liderança feminina do Serra Dourada.
Vale entrou com mais de 60 pedidos para expulsar famílias das áreas
Após a ocupação das famílias, a Vale entrou com mais de 60 pedidos de reintegração de posse para expulsá-las das áreas. Mas, ao entrar com as ações, a mineradora não apresentou à Justiça os títulos definitivos das áreas que alega serem suas. No caso das fazendas Boa Esperança e Vale do Carajás, onde planeja instalar o Projeto Cristalino, retirando Valdecir e seus colegas de suas casas, a Vale apresentou uma escritura e uma promessa de compra e venda das áreas, respectivamente, não os títulos definitivos.
No caso do Planalto Serra Dourada, onde estão outras 447 famílias, a Vale teria “doado” a terra, que era de posse da União, à prefeitura de Canaã mas, mesmo assim, mantém as ações que pedem a expulsão dos agricultores. A falta de títulos das áreas é um indício de que a gigante da mineração pode ter comprado fazendas públicas irregularmente e sem anuência do Incra.
“Mesmo sem apresentar os títulos das terras, uma exigência da lei brasileira, a Vara de Canaã deu liminares favoráveis à Vale em primeira instância”, critica José Batista Gonçalves Afonso, advogado da CPT, que assumiu a defesa dos trabalhadores rurais. “Denunciei essa apropriação ilegal de terras ao Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e ao Ministério Público em 2009, mas até agora nem o órgão fundiário, que poderia resolver a questão ao regularizar os lotes ou exigir uma contrapartida da Vale, nem o MPF [Ministério Público Federal] tomaram medidas efetivas para proteger os agricultores.” SUMAÚMA entrou em contato com a Comarca de Canaã e de Curionópolis, mas os juízes que deferiram as liminares a favor da Vale não estão mais lotados nas varas. Em contato com as comarcas onde estão lotados, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Pará informou que os juízes só se manifestam nos autos.
O MPF tem um inquérito aberto sobre o caso e vem desde 2020 cobrando uma posição do Incra, sem sucesso. Em julho de 2022 houve um segundo pedido para o Incra realizar um levantamento fundiário das terras em disputa, que estabeleceria o que a Vale poderia, de fato, ter comprado de forma irregular. O Ministério Público Federal deu prazo de quatro meses para a resposta. Vinte e dois meses e uma mudança de governo depois, ainda não houve retorno do órgão federal, também responsável por assentamentos da reforma agrária. “Queremos nos reunir com o Incra, mas estudamos entrar judicialmente contra o órgão para exigir que essa vistoria seja feita”, disse o procurador Rafael Martins da Silva a SUMAÚMA. “Também estamos avaliando fazer esse levantamento por conta própria.”
A Superintendência Regional do Incra no sudeste do Pará confirmou à reportagem que a Vale pleiteia terras de assentamentos da União. “A dimensão da estrutura fundiária que envolve a exploração minerária da Vale S/A acaba por atingir áreas da União em várias formas de domínio, principalmente em áreas de projetos de assentamentos”, informou o instituto, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). O órgão alegou não ter estrutura atualmente para fazer o levantamento sobre a situação fundiária de cada lote em disputa. Disse, porém, que iniciaria em março um diagnóstico da situação, por intermédio de um convênio com a prefeitura de Canaã dos Carajás. Até o fechamento desta reportagem, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária não havia respondido se começou ou não a fazer o levantamento.
A mineração desenha uma geografia econômica e política que vai além das áreas de exploração, segundo Malheiro. Ao implantar uma mina, a Vale imobiliza largas áreas, que serão transformadas em estradas, em prolongamentos da estrada de ferro ou em zonas de exportação. Malheiro e Fernando Michelotti mostram, no livro Quatro Décadas do Projeto Grande Carajás (2021), um mapa da região em que as propriedades da Vale, seus títulos, áreas de interesse e de servidão minerárias aparecem sobrepostos a diversos assentamentos.
“A dinâmica de exploração mineral empreendida por essa empresa na atualidade na região de Carajás pode ser vista como uma espécie de continuidade de uma guerra, não mais entre potências, mas de uma guerra às condições materiais de vida de diversos povos, grupos e comunidades atravessadas pela mineração e todo seu metabolismo social”, escrevem os pesquisadores.
Vale diz que atua sem ferir a legislação e Incra se manifesta
SUMAÚMA questionou a Vale sobre os problemas apresentados nos levantamentos da Comissão Pastoral da Terra e na base do Cadastro Ambiental Rural, o CAR. A empresa não respondeu sobre a compra irregular de terras nem a respeito da sobreposição sobre terras públicas de imóveis rurais que declarou serem seus. Limitou-se a dizer que “os processos de negociação, aquisições de terras, reintegração de posse e/ou de instituição de servidão minerária realizados pela empresa ocorrem conforme previsto em legislação e buscando solução justa e com respeito aos direitos constituídos”. A mineradora disse também que “mantém relacionamento permanente com o Incra, para nivelar sobre os assuntos fundiários, bem como, mantém diálogo constante com movimentos sociais e comunidades próximas às suas operações e projetos”.
A Vale disse ainda que “acredita na agricultura familiar como potencial vocação no estado” e “tem atuado para impulsionar essa e outras atividades econômicas, para além da mineração”.
Sua ofensiva fundiária, no entanto, engoliu a agricultura familiar de Carajás. Em uma tese na qual se debruçou sobre a atuação da mineradora na região, Bruno Malheiro, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, mostra que as lavouras de arroz, feijão, abacaxi, coco, pimenta-do-reino, cacau, café e maracujá praticamente desapareceram entre 2000 e 2015 em Canaã.
Versão do Incra
O Incra enviou a seguinte nota sobre o assunto: “O Incra está firmando Acordo de Cooperação Técnica (ACT) com a empresa Vale S/A para trabalharem imóveis rurais para fins de execução da política de reforma agrária e de ações de regularização fundiária, promovendo estudos de viabilidade, de acordo com cada situação apresentada. O Plano de Trabalho foi encaminhado no mês de julho e vai tratar várias dessas demandas da região”.