- Falso
- É falso que vacinas de mRNA sejam terapia genética ou causem a mesma doença que deveriam combater. Médico também engana ao afirmar que imunizantes são responsáveis por hipercoagulação, cascatas de citocina e por antecipar a morte de mais de 23 mil pessoas.
Onde foi publicado: YouTube e Telegram
Conclusão do Comprova: Vacinas que utilizam a tecnologia de RNA mensageiro (mRNA) não são terapia genética, não causam inúmeras doenças e não provocam a mesma enfermidade que deveriam combater. Também é falso que elas provocam hipercoagulação e que desencadeiam uma síndrome chamada cascata ou tempestade de citocinas. Em um vídeo publicado no YouTube e distribuído também no Telegram, o médico urologista Alain Dutra faz essas e outras afirmações, entre falsas e enganosas, numa tentativa de desacreditar os imunizantes e desestimular a vacinação.
Leia mais:Agências sanitárias de todo o mundo já atestaram que as vacinas são seguras e eficazes contra a covid-19 e concordam que seus benefícios superam possíveis riscos (1, 2 e 3). Além de divulgar mentiras a respeito das vacinas, o autor do vídeo também engana ao apresentar dados de notificações de efeitos adversos às autoridades sanitárias dos Estados Unidos como se fossem dados definitivos e incontestáveis, o que não é verdade. O próprio sistema Open Vaers (Vaccine Adverse Event Reporting System) alerta que os relatórios “não podem ser usados para determinar se uma vacina causou ou contribuiu para um efeito adverso ou doença”.
O médico urologista também engana ao citar uma série de artigos científicos que, supostamente, corroboram com as afirmações dele. Os artigos, contudo, ou não chegam às mesmas conclusões, ou não são, de fato, publicações científicas, e sim artigos de opinião.
O Comprova classificou este vídeo como falso porque há, nele, conteúdo inventado ou que sofreu edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
O que diz o autor da publicação: O autor foi procurado por e-mail, mas não respondeu até a publicação deste texto.
Como verificamos: Inicialmente, o Comprova buscou por outras verificações publicadas que já tratavam de pontos mencionados pelo autor do vídeo ou sobre as vacinas de RNA mensageiro (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).
Em seguida, foram entrevistadas duas imunologistas: Rosane Nassar Meireles Guerra, doutora em Imunologia e professora do departamento de Patologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); e Fernanda Grassi, doutora em Imunologia, pesquisadora titular do Instituto Gonçalo Moniz da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro da Rede CoVida, parceria entre a Fiocruz e a Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Também foram acessados os artigos mencionados pelo autor do vídeo e os dados do sistema Open VAERS, que reúne notificações voluntárias de suspeitas de reações adversas às vacinas, mantido pelo governo dos Estados Unidos, além de publicações de agências sanitárias, institutos de pesquisa e associações médicas. Por fim, foi procurado o médico urologista Alain Dutra, autor do vídeo aqui verificado.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 23 de março de 2022.
Conteúdo do vídeo
O vídeo completo tem quase 15 minutos de duração e traz informações falsas e enganosas sobre as vacinas contra a covid-19, sobretudo as que utilizam a tecnologia de RNA mensageiro, e ainda sobre reações adversas aos imunizantes.
O autor do vídeo, um médico urologista, engana ao afirmar, por exemplo, que as vacinas de mRNA provocam hipercoagulação, quando, na verdade, episódios muito raros foram associados às vacinas de adenovírus, como Janssen e AstraZeneca. Ele também mente ao descrever o funcionamento das vacinas de mRNA e associá-las a uma cascata de citocinas. A síndrome pode ser fatal, mas muito raramente é desencadeada pelas vacinas.
Ele ainda mente ao sugerir que, na prática, as vacinas provocam a mesma doença que deveriam combater. A comunidade científica concorda que as vacinas em uso no mundo contra a covid-19 são seguras, eficazes e não provocam doenças. Entenda a seguir cada um dos pontos mencionados pelo autor do vídeo.
Vacinas de mRNA não provocam hipercoagulação
Para a imunologista Fernanda Grassi, da Fiocruz-BA, não faz sentido falar em hipercoagulação associada às vacinas de mRNA. Casos do tipo chegaram a ser associados às vacinas de adenovírus, como a AstraZeneca e a Janssen, entre março e abril do ano passado. “Na realidade, nem as vacinas de adenovírus fazem isso. O que acontece é que algumas pessoas que têm uma espécie de reação autoimune, que fazem anticorpos anti-plaquetas, mas não é que a vacina faz isso, é que algumas pessoas têm essa susceptibilidade. Com a vacina de mRNA, então, não tem nenhuma associação”, explica Fernanda.
Quando a relação entre casos raros de hipercoagulação associados à baixa contagem de plaquetas (trombocitopenia) e as vacinas AstraZeneca começou a ser investigada pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e pela Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos de Saúde do Reino Unido (MHRA), em abril de 2021, a Fiocruz, que fabrica a vacina no Brasil, recomendou “fortemente” a continuidade da vacinação, por entender que os benefícios superavam os riscos.
A Anvisa se manifestou sobre o caso um pouco mais tarde, em junho, e também recomendou a continuidade da vacinação tanto com o imunizante da AstraZeneca quanto com o da Janssen, chamando a atenção para a necessidade de diagnóstico precoce. É importante destacar, ainda, que pessoas com covid-19 podem desenvolver quadros de hipercoagulação e que o risco de trombose é maior em decorrência da doença do que da vacina.
Vacinas não provocam a mesma doença que o vírus – nem outras, como câncer
Outra afirmação falsa presente no vídeo é de que as vacinas que utilizam a tecnologia de mRNA provocam a mesma doença que o vírus, ou seja, a que elas deveriam combater. O que a vacina de mRNA faz é “ensinar” as células do corpo humano a sintetizar a proteína spike, que é própria do coronavírus, para que o sistema imune esteja preparado para combatê-la caso o coronavírus de fato entre em contato com o corpo.
“Você tem uma molécula de RNA que vai dar uma informação para que a célula do nosso corpo produza a proteína spike. Essa molécula é muito instável, se degrada muito facilmente, é lábil. Através de nanopartículas, conseguiram estabilizar essa molécula de RNA para que ela entre e dê as informações para que a célula produza a proteína. Depois, ela se degrada, ela não faz nada no corpo, não se incorpora, ela simplesmente se desfaz”, explica Fernanda Grassi.
A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) também explica em seu site como funciona a tecnologia, presente em vacinas como a Moderna e a Pfizer, e descarta a possibilidade de que o imunizante cause a covid-19 ou qualquer alteração no genoma. “É essencial deixar claro que a molécula não contém outra informação, não é capaz de realizar qualquer outra tarefa e não penetra no núcleo de nossas células. Então, não consegue causar a covid-19 ou qualquer alteração em nosso genoma”, diz o texto, que também detalha todo o processo de defesa desencadeado pela vacina.
Da mesma forma que não causa doenças autoimunes nem a própria covid-19, as vacinas de mRNA também não causam outras doenças como câncer, ou doenças autoimunes, conforme já desmentiu o Comprova.
São raros casos de cascata de citocina desencadeada pela vacina
Ainda falando sobre como as vacinas atuam no corpo, o autor do vídeo utiliza uma analogia com a guerra para afirmar que, ao receber a vacina, o corpo trava uma batalha com ele mesmo. Ele diz que as vacinas de mRNA, em vez de levar pequenos fragmentos do “armamento” do inimigo para estimular o sistema imune a criar anticorpos para combater o invasor, acabam estimulando o corpo a produzir esses mesmos armamentos em larga escala, produzindo “mísseis teleguiados para os órgãos”.
Segundo ele, isso provoca uma guerra constante dentro do corpo humano que provoca uma “cascata de citocinas”, o que é contestado por imunologistas ouvidos pelo Comprova. A professora Rosane Nassar, da UFMA, explica que a cascata de citocinas está associada à hiperativação do sistema imune e é capaz de intensificar as reações inflamatórias, pois pode atrair e estimular células diversas. Quando essa cascata não é controlada, ela pode sim levar à morte.
Rosane explica que essa é uma das principais complicações causadas pela covid-19 em sua forma grave e que é muito raro que as vacinas contra o novo coronavírus possam provocar uma cascata ou tempestade de citocinas.
Para a também imunologista Fernanda Grassi, a relação entre a vacina e a tempestade de citocinas não tem qualquer cabimento. “A vacina é composta de substâncias que não levam ao desenvolvimento da doença. O SARS-Cov 2 leva a essa tempestade de citocinas, mas a vacina não faz isso”, afirma. De acordo com Fernanda, o que a vacina pode fazer é desencadear uma reação imunológica, mas ela é controlada e “infinitamente mais leve do que a doença”.
“O antígeno que estimula o sistema imune não causa uma reação patogênica, não tem nenhum cabimento dizer isso, nem com a vacina de vírus inativado, que tem a estrutura do vírus, só que inativado. As únicas vacinas que poderiam, teoricamente, levar a um quadro de uma resposta mais patogênica são as vacinas de vírus atenuados, e essas vacinas são contraindicadas para pessoas imunossuprimidas. É o caso da vacina de febre amarela. Mas todas as vacinas que estamos utilizando aqui contra a covid, nenhuma delas causa esse tipo de situação”, esclarece.
Vacinas x terapia genética experimental
No vídeo publicado em seu canal no YouTube, o médico usa o conceito “terapia genética experimental” para nomear as vacinas de mRNA. Segundo ele, os imunizantes que usam essa tecnologia nem poderiam ser chamados de vacinas. Ao Comprova, a imunologista Rosane Nassar refutou a alegação do urologista e explicou que esse conceito nem sequer faz sentido. Segundo ela, a terapia genética experimental só ocorre com animais de laboratório.
Já a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma nota em 7 de janeiro de 2022 para esclarecer que as vacinas de mRNA não podem ser consideradas “terapias gênicas”, outro termo comumente ligado às vacinas por pessoas que tentam desacreditá-las: “Segundo normas vigentes na Anvisa, publicadas desde 2018, o produto de terapia gênica é um medicamento especial que contém ácido nucleico recombinante (material genético), com o objetivo de regular, reparar, substituir, adicionar ou deletar uma sequência genética e/ou modificar a expressão de um gene humano, com vistas a resultados terapêuticos. Ou seja, a terapia gênica utiliza-se de material genético humano, manipulado em laboratório, para tratamento de doenças genéticas ou relacionadas”, diz a Anvisa.
Fernanda Grassi também rechaça o argumento do autor do vídeo. “As vacinas são, conceitualmente, vacinas, são substâncias que vão induzir a produção de anticorpos com o intuito de prevenir o desenvolvimento de uma doença. Elas não são terapias genéticas porque estas terapias modificam o gene”, afirma.
O uso de argumentos que sugerem que as vacinas contra a covid-19 fazem experimentos ou alterações genéticas é recorrente. O Comprova já desmentiu, por exemplo, que as vacinas injetam DNA alienígena, e já mostrou que outro médico descontextualizou o manual da Pfizer para sugerir alterações genéticas.
Vacinas anteciparam a morte de mais de 23 mil pessoas?
O autor cita dados do relatório Open Vaers (Vaccine Adverse Event Reporting System), do governo dos Estados Unidos, até o dia 11 de fevereiro de 2022. Não é possível conferir se os dados são precisos, mas o relatório aponta, com dados até 11 de março e 2022, um total de 25.641 mortes relatadas como efeito adverso das vacinas contra a covid-19, 141.112 hospitalizações ligadas às vacinas e 1.183.493 eventos adversos ligados à vacina.
O relatório de fato informa que o sistema de notificação voluntária representa apenas 1% dos eventos, mas faz uma observação importante que não foi levada em conta pelo médico autor do vídeo: de que os dados não devem ser usados para determinar se uma vacina causou ou contribuiu para um efeito adverso ou mesmo a doença.
“Embora muito importante no monitoramento da segurança da vacina, os relatórios Vaers por si só não podem ser usados para determinar se uma vacina causou ou contribuiu para um evento adverso ou doença. Os relatórios podem conter informações incompletas, imprecisas, coincidentes ou não verificáveis. Em grande parte, as denúncias ao Vaers são voluntárias, o que significa que estão sujeitas a vieses. Isso cria limitações específicas sobre como os dados podem ser usados cientificamente. Os dados dos relatórios VAERS devem sempre ser interpretados com essas limitações em mente”, diz um aviso sobre a isenção de responsabilidade do Vaers e do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC).
O site Open Vaers lista as “principais considerações e limitações dos dados”:
- Os fornecedores de vacinas são incentivados a relatar qualquer problema de saúde clinicamente significativo após a vacinação ao Vaers, independentemente de acreditarem ou não que a vacina foi a causa.
- Os relatórios podem incluir informações incompletas, imprecisas, coincidentes e não verificadas.
- O número de notificações por si só não pode ser interpretado ou usado para chegar a conclusões sobre a existência, gravidade, frequência ou taxas de problemas associados às vacinas.
- Os dados do Vaers são limitados a notificações de eventos adversos de vacinas recebidas entre 1990 e a data mais recente para a qual os dados estão disponíveis.
- Os dados Vaers não representam todas as informações de segurança conhecidas para uma vacina e devem ser interpretados no contexto de outras informações científicas.
Artigos não corroboram tese do vídeo
Para tentar passar uma impressão de que as alegações do vídeo são bem fundamentadas, o autor cita estudos e compartilha os links na descrição do material. Os artigos, contudo, não corroboram necessariamente os argumentos do urologista. O primeiro estudo citado, publicado em março de 2021 na revista científica Circulation Research, do AHA Journals, não diz que a vacina é problemática, pelo contrário. Os pesquisadores perceberam, num estudo com hamsters, que a proteína Spike (S) do coronavírus é capaz, sozinha, de danificar as células endoteliais vasculares, que possuem funções metabólicas no sistema circulatório. Na conclusão do artigo, os estudiosos afirmam que “o anticorpo gerado pela vacinação e/ou o anticorpo exógeno contra a proteína S não apenas protege o hospedeiro da infectividade do SARS-CoV-2, mas também inibe a lesão endotelial imposta pela proteína S”.
O segundo artigo citado também não depõe contra a vacina. Ele foi lançado primeiro na plataforma Medrxiv, que reúne produções que ainda não foram revisadas por pares, e depois na revista Bioscience Reports, em agosto do ano passado. No texto, os pesquisadores apontaram que a presença da proteína Spike na circulação de pacientes com covid-19 contribuiu para a hipercoagulação nesses pacientes. Eles dizem que o estudo fornece evidências de que direcionar a proteína, “diretamente, seja por meio de vacinas ou anticorpos, provavelmente será um benefício terapêutico”.
O terceiro link compartilhado é do “Estudo para Descrever a Segurança, Tolerabilidade, Imunogenicidade e Eficácia de Candidatos à Vacina de RNA Contra covid-19 em Indivíduos Saudáveis”, feito pela Pfizer/BioNTech, mas ainda não há resultados publicados.
O quarto link faz referência a um artigo publicado em fevereiro de 2022 pela jornalista Apoorva Mandavilli, do The New York Times. O artigo mostra que o CDC vem deixando de publicar alguns dados sobre efetividade das vacinas em adultos jovens e que uma das razões é o medo de que eles sejam mal interpretados e gerem hesitação. O link compartilhado pelo autor do vídeo, contudo, é um artigo opinativo que omite uma análise de especialistas sobre o caso. Segundo ele, o medo da hesitação não é uma razão plausível para omitir os dados, mas o órgão deveria ter alertado as pessoas que, à medida que mais pessoas fossem vacinadas, a porcentagem de pessoas vacinadas hospitalizadas também aumentaria. O artigo opinativo compartilhado, pelo contrário, interpreta o artigo do The New York Times como um sinal de que as vacinas não funcionam, o que é mentira.
Em seguida, o autor do vídeo lista um artigo de opinião baseado em afirmações do cardiologista norte-americano Peter McCullough, que diz que as vacinas de mRNA estão instalando uma proteína inflamatória permanentemente no corpo humano, se referindo à proteína spike McCullough, contudo, já teve várias de suas afirmações desmentidas por outras agências de checagem.
Já os dois artigos publicados na revista Nature tratam de sequelas patológicas da covid-19 longa e de efeitos a longo prazo da covid, sem mencionar eventuais problemas provocados pela vacinação.
Quem é o autor do vídeo
O autor do vídeo aqui verificado é o médico urologista Alain Dutra, que possui registro ativo no Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). A especialidade dele pode ser verificada no site do Conselho Federal de Medicina (CFM), mas também nas próprias redes de Dutra.
O médico se apresenta como o dono do “canal de saúde mais completo do YouTube” e, além do vídeo que tenta desacreditar as vacinas, ele também já gravou um material sobre como fazer um “detox da proteína Spike” com ervas.
Por que investigamos: O Comprova verifica conteúdos suspeitos que tenham viralizado nas redes sociais ou aplicativos de mensagem sobre a pandemia de covid-19, eleições e políticas públicas do governo federal. Conteúdos que buscam desacreditar as vacinas, associando-as às doenças que elas combatem, contribuem para minar a principal estratégia contra o coronavírus em nível mundial. Isso pode desestimular o processo de vacinação da população e favorecer a disseminação do vírus.
Alcance da publicação: A publicação verificada teve mais de 83 mil visualizações no YouTube e 4,4 mil no Telegram até o dia 22 de março.
Outras checagens sobre o tema: Em publicações anteriores, o Comprova mostrou ser falso que vacinas de RNA mensageiro causam doenças autoimunes, também mostrou que agências reguladoras negaram risco de infertilidade nos vacinados, que vacinas não injetam DNA alienígena e que elas também não provocam câncer, nem provocam alterações genéticas.
Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 33 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.