Correio de Carajás

Uma menina mulher, uma rede e um livro

Certo dia, passando férias na casa da minha mãe, como fazia costumeiramente, após as tarefas domésticas, eu me deitei numa rede com um livro e ali fiquei lendo por horas. Naquela ocasião estava lendo A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne (escritor norte-americano), foi quando minha tia passou na frente de nossa casa e disse: Maria, cadê a Marinete? Ainda não vi ela! E minha mãe com seu jeito simples e bem-humorado respondeu:  Tá ali, enfurnada, deitada numa rede com um livro na mão. Eu sorri discretamente, não queria que ela percebesse que eu havia escutado o comentário.

A fala de minha mãe me fez lembrar de forma imediata do conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector. Aquele foi a minha porta de entrada para a obra de Clarice. Por anos, li e reli esse conto me vendo naquela menina que tinha um amor imensurável pelo livro. Assim como aquela menina também li muitos livros emprestados. Uma vizinha ao me emprestar seus livros fazia a seguinte recomendação: não faça orelhas! (eu ainda não sabia que era possível fazer orelhas em um livro!).

Dizem que o conto Felicidade Clandestina é autobiográfico, que a menina amante dos livros é Clarice. Sempre me enxerguei naquela menina que não tinha nome, mas tinha fome de ler, fome de livros (físicos).  A menina experimenta a felicidade pela leitura, pela posse do livro desejado, qual seja:  Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Trago um trecho do conto para que você leitor possa visualizar a experiência da menina leitora:

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Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. (…) Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade”.

Diante daquela menina que ficava em puro êxtase antes de iniciar a leitura, por apenas tocar no livro e trazê-lo consigo junto ao coração, eu faço a seguinte pergunta:  ela trocaria o livro físico pelo livro digital? Ela adotaria a leitura no celular? São questões para nos fazer refletir sobre a leitura digital.  De antemão, deixo claro que não sou contra a leitura por meio de suportes digitais, embora eu não esconda de ninguém minha preferência pelo livro físico.

Aproveito para tratar de um benefício especifico do livro físico: estimular a leitura profunda. Não digo isso sozinha, apenas com base na minha experiencia pessoal, há estudos que afirmam que durante a leitura (no livro físico), a conexão com a história e personagens acontece de forma mais aprofundada, ali o leitor faz analogias e inferências que o ajudam a entrar na história lida. Além disso, a leitura digital, sobretudo aquela que é feita por meio do celular, acaba sendo superficial, fragmentada, visto que a tela traz muito estímulos ao leitor, o que, naturalmente, prejudica a concentração e provoca distração. Ou seja, é mais difícil o leitor fazer uma leitura profunda quando lança mão de um dispositivo digital como o celular.

A leitura profunda melhora a memória e a concentração. Some-se aos benefícios citados o vínculo afetivo, a afeição que o leitor desenvolve pelo livro em si. Quando lemos, deixamos marcas nas páginas, fazemos anotações, eu por exemplo, anoto o dia e o horário em que início uma leitura, da mesma forma registro o término. Se viajo com um livro, anota também a cidade em que fiz aquela leitura. Se durante a leitura ocorre um fato importante em minha vida anoto numa página. Aos poucos as páginas vão sendo margeadas por anotações e tem-se um diário de leitura.

As marcas de leitura que alguém faz, suas anotações e trechos sublinhados são íntimos, pessoais, dizem muito do leitor. Mais tarde, de repente ao reler aquela obra ele encontrará suas marcas e ali entrará num processo de rememoração, encontrando-se com o leitor que fora outrora. Estabelecer esse vínculo somente é possível com o livro físico. Portanto, reforço, o livro é mais que um canal, um meio, é mais que a porta de entrada para histórias e personagens, é afeto, é memória.

Digo por fim, a menina de Clarice (ou a menina Clarice), que conheci na adolescência ainda reverbera na leitora adulta que me tornei, pois a “fome” por livros ainda mora em mim, por isso, hoje indico o livro de contos Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector. Para quem ainda não teve contato com a obra da escritora é um excelente começo. Se possível, deite-se numa rede como aquela menina “Às vezes sentava-me da rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante” e boa leitura!

 

A autora é leitora voraz, por amor e vocação. Graduada em Letras pela UFPA; bacharela em Direito pela UNIFESSPA.

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.

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