Correio de Carajás

Trinta anos do voo que saiu de Marabá e aterrissou na selva

Com escalas em vários municípios entre São Paulo e Belém, uma sucessão de erros fez com que o voo Varig 254 se perdesse, 30 anos atrás, durante o último trecho da viagem, após decolar do aeroporto de Marabá, em 3 de setembro de 1989. O avião, um Boeing 737-200, foi conduzido a um pouso forçado na selva, no estado do Mato Grosso, com 48 passageiros e seis tripulantes a bordo. Uma pessoa morreu na hora e outras 11 após o acidente.

Há três dias, domingo (1º), o canal do Youtube “Aviões e Músicas” publicou uma longa entrevista com o copiloto Nilson Zille, que atuava naquele dia ao lado do comandante César Augusto Pádula Garcez, que não é citado nominalmente durante a entrevista, conduzida pelo responsável pelo canal, Lito.

Zille, na época com 28 anos, relata que a Varig havia mudado o plano de voo, acrescentando um quarto dígito quando os pilotos sabiam que os números magnéticos são de três dígitos. “Na minha época a aviação era artesanal, hoje tem três GPS aferidos eletronicamente, na época era pé e mão e o máximo de ajuda era o um gerenciador de voo”, conta.

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Em 12 de junho de 1.989 a Varig emitiu um boletim de operações efetivado no dia 1º de julho contendo nomenclaturas e com uma observação no campo número 27, destaca o copiloto, na qual aparecia a siga MC com a tradução “rumo magnético”. 

“A Varig fez um plano de voo de quatro dígitos, fora de aerovia, de Marabá a Belém, que apresentava-se como 0270. Todos nós sabemos que zero à esquerda não tem valor. Qual foi o erro? No táxi o comandante me pediu o plano de voo e selecionou – não havia computador – no botão a proa à 270. Consequentemente estacionou o avião, depois do embarque eu fiz a inspeção externa e voltei para a cabine. Eu peguei o plano de voo, li 270, fui na carta de rota, fora de aerovia, também selecionei 270 e olhei para o dele porque se tivesse contrário eu iria questionar ou coisa aparecida, também estava a 270”, afirmou.

Zille havia levado o avião até Marabá e neste local o comandante solicitou terminar o voo até Belém. “Foi autorizada a decolagem e Marabá-Belém e é como Rio-São Paulo, é muito perto, são 240 milhas, um voozinho de 45 minutos, 40 minutos”, explica, acrescentando que à época voava-se com dois VOR e dois NDB.

O primeiro é um auxílio à navegação que opera em VHF e o segundo uma estação transmissora, instalada em posição geográfica fixa, que emite sinais de rádio frequência com formato pré-determinado, o que permite que estações de rádio móveis, inclusive aéreas, os identifiquem.

“Quando a gente decolava ficaram os quatro rádios, ou seja, dois do lado dele e dois do meu lado, sintonizados na informação de cauda, decolava com informação de cauda, a seta ficaria indicando para trás, consequentemente deduz-se que o sinal da rádio está vindo de traz. Decolou-se para uma curva à esquerda. Algum problema? Não. Me perguntaram na época ‘o sol estava na proa? eu disse que lógico, tem que estar na proa, poente, 270, até aí tava tudo certo, problema nenhum”.

SEM SINAL DE RÁDIO

Já em nível de cruzeiro, após aproximadamente 15 minutos, Zille afirma ter informado ao comandante que passaria os rádios dele para sintonizar Belém. “Belém não entrou, mas era uma coisa que eu poderia desconfiar? Não! Porque quando se voa no Norte do país e isso é assim até hoje as informações de rádio navegação a gente só consegue perto da localidade, não sei por que, mas era algo extremamente normal”.

Zille conta que ao contar cerca de 25 minutos depois, ao chegar perto do nível ideal de descida – considerando que ambos acreditavam estar seguindo na direção correta –, informou ao comandante que pediria para descer, com o que o colega concordou. “Na aviação comercial é dito que um incidente ou acidente não é apenas por um fato específico, são vários fatores, somatória de erros. Na descida deu-se o primeiro”, conclui.

Os dois, afirma, deveriam ter feito juntos uma checagem de descida, mas o comandante a dispensou; “Quando chamei Belém eu não consegui falar com Belém em VHF, falei em HF, ou seja, uma frequência superior. Não teve resposta de VHF porque estava distante”. Zille relata que mais de uma vez informou ao controle em Belém que o avião estava em proa 270, mas ninguém estranhou o fato mesmo sabendo que o avião havia partido de Marabá.

A partir disso, discorre na entrevista, o centro de controle enviava mensagens, inclusive, para o avião descer de níveis, se preparando para pousar. Após algum tempo, mesmo estranhando o fato de não conseguir contato com rádio, Zille disse que pensava estar tudo bem. “Aí Belém manda a informação: Varig 2544 autorizado a interceptar a radial 240 de Val de Cans. O que ele nos autorizou a fazer? Ele mandou a gente fazer uma aproximação direta da pista, uma final longa e posava, saindo do procedimento por instrumentos”.

O comandante, relembra, fez sinal negativo com o dedo e o copiloto informou ao controle que o voo contestaria a autorização, pois mantinha a proa 270. Para Zille, não fazia o menor sentido o que o controle havia autorizado, mas ainda não havia acendido o alerta. Apesar disso, diz, neste momento, o comandante da aeronave percebeu que algo grave ocorria.

“Ele pega o microfone e manda uma mensagem para Belém onde diz que o Varig 254 teve uma pane eletrônica, querendo dizer que teve desorientação cartográfica. Quando ele fala isso eu olho para os instrumentos e digo ‘tá tudo ok, não está nada errado’. Fiquei com maior medão”, conta.

COMPLETAMENTE PERDIDOS

A partir disso, Zille afirma que começou a pedir para o comandante voltar para Marabá, mas este se negava, ainda imaginando estar próximo de Belém. Na terceira vez, ao ser questionado por que não retornariam, o comandante apenas respondeu que já havia sido difícil pousar anteriormente em Marabá por conta de uma queimada na região.

“A partir do momento que ele fala que teve a desorientação eu peguei a carta diária e estava anoitecendo, estava tranquilo e estávamos sobrevoando um rio. Eu vi que o rio da carta não tinha nada a ver com o rio que a gente estava sobrevoando”.

Zille diz ter informado isso ao comandante, que comentou que o formato de plano era ‘uma porcaria’. “Imediatamente fechei a carta e guardei do meu lado e nesse negócio de voltar ou não ele diz com muita convicção que Belém tinha ficado para a direita e para a cauda”.

O copiloto começou a tentar sintonizar Macapá, alternativa do voo, mas não conseguia nenhuma resposta. “Não entrava nada e como não entrava nada, eu, tenso e com um medo danado, comecei a pensar no aeroclube: já que a gente não consegue rádio navegação vamos tentar as rádios difusoras. O gerenciador de voo dava o perfil de subida, cruzeiro e descida e a gente inseria nele, era um computador pequeno, as milhas náuticas. Uma vez que ultrapassou aquelas milhas náuticas ele começa a contar elas negativas. Pelo gerenciador, o Varig 254 afastou-se apenas 40 milhas náuticas daquilo que o comandante estava dizendo que Belém ficou, para a direita e cauda, ou seja, passamos por Belém voando”, acreditava.

Zille então apresentou a ideia de sintonizar as rádios difusoras de Belém, Liberal e Rádio Clube. “As agulhas do ADF foram para onde ele estava falando, direita e cauda. Nesse momento a minha vontade era dar um beijo no comandante e pensei comigo ‘pô, Zille, você questionando o comandante, afinal de contas o cara é bom, o cara é comandante, muito mais horas de voo que você, ele sabe o que está fazendo’ e eu fiquei muito tranquilo. Não vou mentir, fiquei muito tranquilo mesmo. Só que para o 254, ou seja, o comandante e o Zille, tivesse certeza que estava indo para Belém eu tinha que escutar o indicativo da rádio, por isso as rádios difusoras são obrigadas a dar o seu indicativo a cada 5 ou 10 minutos. Uma vez que eu ouvisse o indicativo da rádio estávamos indo de fato para cima de Belém e, chegando lá, posar seria a coisa mais fácil do mundo”, destacou.

O avião seguia a 6 mil metros de altitude e o comandante conseguiu autorização para descer ao nível 40, ou seja, 1200 metros. Pelos cálculos do copiloto eles haviam se afastado 25 minutos da capital paraense. Acontece que eles nem haviam chegado perto da cidade.

“COMANDANTE, TEM ALGUMA COISA ERRADA”

“Na descida, eu com os headphones no ouvido, só escutava estática, não tinha o indicativo da rádio, nada, passava para o áudio da cabine, fazia teste no meu ADF e quando passava para mexer no ADF dele, ele chamava minha atenção. Quando chega ao nível 40 eu faço outro tipo de questionamento: ‘Comandante, tem alguma coisa errada’”.

Zille afirma que Garcez olhou para a direita com cara feia e pergunta o que estava errado. “Comandante, eu disse, já era para a gente ter avistado Belém. É uma cidade grande e a gente se afastou apenas 40 milhas. Ele disse ‘zille, não concordo porque a gente desceu devagar’, mas questiono se 220, 230 era devagar. Ele me mandou monitorar os rádios. Ele assumiu tudo, não falava com ninguém e a minha função era monitorar rádio”, declara.

Como explica Lito, no vídeo, Belém não sabia onde o avião estava e a equipe achava que estava onde não estava, ou seja, a rádio para a qual a agulha apontava não ficava na capital paraense. Depois de 35 minutos, diz Zille, perguntou novamente ao comandante onde estava Belém e recebeu outra resposta atravessada. “Depois de uma hora voando baixo e consumindo combustível eu digo que estamos indo para o Sul (…) e no que consta Belém é para o Norte”.

Neste momento, relembra o copiloto, o comandante perde a paciência e começa a falar utilizando palavras de baixo calão, deixando o clima ainda mais tenso. “A gente já tinha voado duas horas e a autonomia era de 3 horas e 10 minutos, no meio do nada, à noite. Eu fui guardar a carta de descida, não tinha nada pra fazer, quando eu bato o olho, na entrada do arco DME, 0270, eu gelei nessa hora, peguei e falei: olha aqui a merda que tu fez”.

A única resposta que Zille recebeu foi o comandante colocando o dedo sobre os lábios pedindo silêncio para o colega, apontando para a gravação da cabine. “Ele já sabia que estava errado, como eu também sabia que estava errado, agora existe uma diferença grande entre saber que está errado e saber qual é o erro. Existe uma diferença grande. Ele questionou ‘e agora?’”.

O copiloto então sugeriu que subissem o avião para melhorar a transmissão e aumentar o tempo de voo. “Se declararia emergência e informaria o que aconteceu. Ele simplesmente não fez, saiu do nível 40 para 65, aproximadamente. Falei pra ele fazer o que quisesse, ele pega a carta diária e diz que estávamos próximos de Carajás. Estávamos próximos de lugar nenhum. Começou outro desespero para tentar abrir Carajás que naquela época não tinha operações noturnas”.

“ENCOMENDEI A MINHA ALMA” –  O POUSO FORÇADO

Zille relembra que o comandante mentiu ao informar pane eletrônica e que todos os equipamentos funcionavam perfeitamente. Ao perceber que não teriam para onde ir, entendeu que morreriam na selva. “Como a gente não ia pousar em lugar nenhum mesmo, vou ser sincero, eu olho pra minha direita e encomendo a minha alma. Não rezei Ave Maria e nem Pai Nosso, simplesmente falei: é compadre (Deus), que merda!”.

O copiloto lembra que nem era para estar no voo. Há um ano na empresa embarcou para cobrir uma falha de escala. Naquele dia, deveria fazer um voo tranquilo para São Luís, no Maranhão, e entraria de férias em seguida. Diz ter pedido três coisas a Deus quando achou que morreria: não sentir dor, perdão por alguma coisa e que houvesse alguém para recebe-lo “do outro lado”.

Vinte minutos antes de acabar o combustível, ele afirma que o comandante bateu em seu ombro e pediu desculpas, assumindo ter cometido um erro e falando que os dois se encontrariam do outro lado. As palavras do colega tiveram estranho efeito em Zille, que diz ter passado a ter a certeza de que sobreviveria.

“Fui tomado por uma certeza de vida e simplesmente contestei ele em tudo e aí quem começa a falar palavrões sou eu. Disse que a gente viria com o maior ângulo de ataque para que as árvores segurassem o impacto do avião e quando a gente sentisse que ia bater abaixaria as cabeças pra que nenhum galho degolasse a gente. Não admiti mais a hipótese de morte”.

O combustível acabou e os dois começaram a realizar o pouso em meio à selva. “Segurei com a minha mão direita o manche, ele do meu lado, e deitei a cadeira toda pra ler os instrumentos acesos do lado dele porque só tinha 30 minutos de bateria”.

Zille diz que começou a gritar ordens para o comandante. “Abaixa nariz, puxa nariz, vai bater porque ouvi as árvores na barriga do avião, sem enxergar nada, breu. No ‘vai bater’ pegamos uma árvore que arrebentou meu lado todo e levou a asa direita e o avião fez curva para a direta. Aí Jesus coloca outra árvore frondosa que leva a asa esquerda. Acerta o charuto e encaixa o charuto no meio da selva amazônica”

APAGÃO E TRÊS DIAS NA FLORESTA

Zille conta que desmaiou e ao acordar viu um passageiro morto ao lado. “Do pouso forçado foi a única pessoa que infelizmente faleceu. Estava em pé no corredor e entrou na cabine. Quando olhei tinha um galho próximo do meu rosto e não conseguia mexer meu lado direito por causa de uma fissura craniana que eu tive e que paralisou meu lado direito todo. Chegou uma passageira que é muito minha amiga até hoje. O comandante tinha dito para ela que eu estava morto e foi ela quem me tirou da cabine, não foi o comandante, foi ela, a Rita, ela me colocou ao lado do avião e adormeci”.

Segundo o copiloto, enquanto estavam na mata, por duas vezes, o piloto pediu que os dois fizessem juntos os relatórios deles, ao que o copiloto ignorou, ferido. “Eu disse que a gente não estava em momento de falar mentira”.

Ele conta ter permanecido três dias deitado, com medo de perder a perna bastante machucada e sem tecidos. Dentro do avião, pessoas presas entre os assentos que se soltaram no acidente morriam aos poucos. “Era dolorido porque uma pessoa estava viva num dia e horas depois infelizmente não estava mais”.

Ao acordar na manhã seguinte, sentindo muita sede, um sobrevivente saiu em busca de água, tendo encontrado um riacho. Essa mesma pessoa, Afonso Saraiva, subiu na manhã do terceiro dia em uma árvore bastante alta, de onde avistou uma fazenda, o que salvou a vida de quem suportou o pouso. Afonso e os dois sobreviventes saíram procurando a propriedade e por conta disso, na noite do mesmo dia, o resgate chegou ao local dos destroços.

PENA DE QUATRO ANOS PARA CADA

Após o acidente, os dois funcionários da Varig responderam a processos administrativos e criminais. “O comandante foi cassado, pagou multa de 1 mil URV e eu fui multado em 500 URV, mas não perdi nada e fui parabenizado pela minha postura pelo Brigadeiro na época. No inquérito criminal fomos sentenciados a quatro anos de prisão para ambos, convertidos em pena alternativa. Eu cumpri a pena”.

Zille conta ter sido demitido da empresa porque esta entendeu que ele atuou de forma passiva. “Eram dois jovens numa cabine, a gente ia sair na porrada. O que ia adiantar se eu também não sabia o que estava errado? Eu não teria sido passivo se soubesse qual era o erro”. O copiloto afirma que posteriormente à queda foi convencido por membros da Associação de Pilotos da Varig (Apivar) a fazer o relatório conjunto com Garcez.

“Eu estava vendo minha profissão ir por água abaixo e eu topei e fiz o relatório, fiz o meu e entreguei na mão de um comandante da Apivar para que ele pudesse fazer de acordo com a do comandante. Quando entreguei meu relatório na Varig o diretor perguntou se estava puro e eu disse que passei pela Apivar”.

Zille afirma que há algumas lendas que rondam a história até hoje. Uma delas se propagou após um dos sobreviventes afirmar publicamente que os pilotos estavam assistindo ao jogo de Brasil e Chile, jogo válido pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 1990, o que teria feito com que se perdessem.

“Ninguém estava ouvindo futebol. Em solo a comissária foi à cabine e perguntou ao comandante se já havia começado o tal jogo porque o passageiro queria saber, o comandante perguntou à rádio em Marabá, que deu retorno e a comissária respondeu ao passageiro. Ele entendeu que a gente se perdeu por causa de futebol”.

Outra história diz respeito a um passageiro que tentou informar aos pilotos algo errado e que estes não quiseram recebê-lo. “A comissária disse que havia um passageiro a bordo que conhece muito a região e gostaria de vir à cabine, o comandante imediatamente diz ‘não’ e eu concordei com ele porque o clima estava tenso. Se vai o passageiro à cabine e vê a tensão ele volta para a cabine de passageiros e cria pânico, não tem ninguém que conseguisse segurar aquilo porque eram quatro meninas, quatro comissárias, seria rebuliço dentro do avião”.

Há uma versão de que foi informado aos dois homens que estavam na cabine que o passageiro havia percebido que o sol estava do lado errado. “Pode até ser verdade que ele viu, mas não foi o que a chefe de equipe disse pra nós. Se ela tivesse feito isso eu iria arrumar uma dor de barriga, saía, pedia pra chamar o cara e iria perguntar o que ele estava vendo, sem tirar a autoridade ou sem me insubordinar”. (Luciana Marschall)

A entrevista completa pode ser assistida no Canal Aviões e Músicas, disponível nos links:

Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=dSBvh6By76Y&feature=youtu.be

Parte 2: https://www.youtube.com/watch?v=VXoodj6aybY

Parte 3: https://www.youtube.com/watch?v=gJP5rlGsCdo