No caminho oposto à faixa “A gente tinha tudo pra dar errado e deu”, que abre o recém-lançado EP de Lanara e lamenta as dores de um amor perdido, a cantora e outros jovens de Marabá depositam suor e alma no passo após passo em direção a dias, se não imediatamente melhores, ao menos embalados em sensibilidade e beleza.
Há importantes novidades no cenário cultural de Marabá e a cidade vê surgir – ainda com olhos desatentos – realizações de novos artistas que, por conta própria, estão produzindo músicas autorais, divulgando os trabalhos e explorando as possibilidades oferecidas pelas redes sociais e serviços de streaming. Não é exagero afirmar que estejam criando um cenário de música independente na região.
Para não disfarçamos as evidências, vamos aos números: o EP “Ai, que dó de mim”, de Lanara Moreira, lançado há pouco mais de uma semana, no dia 21 novembro, bateu mais de 10 mil audições – apenas na plataforma Spotify – seis dias depois. No mesmo espaço, o single “Sul”, de Charles Vitor, lançado em 2019, já teve mais de 80 mil visualizações.
Leia mais:Também lançado recentemente, o videoclipe “Emocionahdô”, de Melissandra e com participação de Caroline Afrosil, alcançou mais de 6 mil visualizações no Youtube. A oitava edição do Festival Mucanpa, realizado há alguns dias pela Proex-Unifesspa, apresentou alguns dos nomes que tocam na noite marabaense e têm entregue canções autorais de (muita) qualidade, dentre elas, Banda LUI, Desmonte, Prima-Matéria, Lariza, Clauber Martins, Bruno Malheiros e a própria Lanara.
O momento não poderia ser mais desafiador: pandemia, crise econômica, ausência de políticas públicas efetivas na produção cultural aliadas a questões antigas, como falta de espaço e calendário que viabilizem o contato destes artistas com um público mais amplo, permitindo, assim, estourar a bolha na qual estão inclusos amigos, conhecidos, outros artistas independentes e palcos que alguns pouco incentivadores, também com muita luta, conseguem disponibilizar.
Há, ainda, a dificuldade em parar de tropeçar para começar a desviar da enorme pedra que é se encaixar numa cidade e região onde o agro é pop e tem como trilha sonora a música sertaneja, vide o apelo que este gênero musical possui na programação de bares, espaços para shows e rádios.
O Jornal Correio sentou numa noite agradável do inverno amazônico com os vocalistas da Banda LUI e da Desmonte, além de Melissandra e Caroline Afrosil. Também conversou, posteriormente, com Lanara Moreira e Mario Serrano, o Raikage, para um papo que revelou as intenções e perspectivas dessa turma.
Letícia Portela, 24 anos, designer gráfica, musicista e compositora da banda LUI, afirma que o maior problema é a falta de um espaço para as apresentações ao vivo e que funcione de forma constante. Segundo ela, tocar ao vivo e receber energia do público talvez seja a melhor recompensa do insistente e árduo trabalho.
Felipe Ramos, 27 anos, designer gráfico, músico e compositor da banda Desmonte, também se ressente de uma agenda constante para tocar os projetos. Tentando reduzir essa lacuna, Ramos é organizador do Bigode festival, que já teve três edições com bandas locais e de outros municípios.
Melissandra, 22 anos, acadêmica de direito e cantora. Além da questões levantadas por Letícia e Felipe, a travesti luta também com a questão de preconceito e contra a transfobia. Porém, lida com isso de cabeça erguida e orgulho, afirmando ser adepta do lema “fale mal, mas fale de mim”.
Caroline Afrosil, 27 anos, poetisa, artesã e dona do espaço Afrosil, voltado para estética e cultura negra, tem um trabalho que envolve, na sua forma, a afirmação da negritude e orgulho da raça. Possui o desejo de transformar o Afrosil em palco para a realização de eventos e shows de artistas locais.
Lanara Moreira, 25 anos, tatuadora, cantora e acadêmica de direito, crê que o surgimento de produtores locais e do selo SubSoundProd (falaremos mais sobre ele…) foi decisivo para o surgimento desta leva de novos artistas.
Mario Serrano, 24 anos, produtor e proprietário do selo SubSoundProd, vê uma um cenário local com diversas bandas e artistas talentosos e que, de forma alternativa, vem produzindo bastante material inédito.
Em comum entre eles, além da pouca idade e o desejo de expressarem visões de mundo, sentimentos e posições diante da sociedade, está o fato de serem artistas que vieram de uma situação econômica distante da confortável em termos financeiros.
Há também a crença e a vontade de converter os trabalhos em algo estabelecido, concreto. Felipe Ramos acredita que o caminho é ter uma cena alternativa forte, que sobreviva por ela mesma. Opinião da qual Mario Serrano também compartilha. Letícia Portela e Lanara Moreira vão além e querem que a expansão seja a mais plural possível, posição que Melissandra também busca.
Um aspecto importante do surgimento desta leva de artistas tão distintos nas propostas é o esmero em difundir os produtos por todos os meios possíveis, o que motiva a colaboração entre si.
O Bigode festival, de Felipe Ramos, já contou com a banda LUI se apresentando. Melissandra e Caroline gravaram juntas o clipe de “Emocionahdô”, com a produtora de audiovisual Boiuna, de Letícia junto a Bruna Soares e Diná Oliveira. Felipe tocou por algum tempo com Lanara, inclusive na live recente da Mucanpa, e com Letícia. Além disso, todos gravaram no estúdio SubSoundprod, do produtor e integrante da banda LUI, Mario Raikage.
O movimento ainda enfrenta (muitos) percalços, mas isso não diminui o ânimo dessa galera que não tendo espaço disponível para se expressar, resolveu abrir por conta própria. Enfrentando dificuldades das mais diversas formas, se mantêm em busca daquilo que acreditam. Merecem atenção e muito respeito por isso.
Letícia, Lanara e Felipe: juntos e se misturando
A história de três dos entrevistados se cruzou quando Letícia, vinda de Belém, encontrou Lanara em Marabá e as duas, juntamente com Lariza Xavier e Erivan França, formaram o primeiro projeto musical que tiveram na cidade: a banda Barco Vazio. Deste encontro, Letícia e Erivan tiveram identificação mútua de influências e gostos musicais e partiram para outro projeto: a seminal banda Universo Paralelo das Palhetas, carinhosamente conhecida como UPP. Lanara buscou o circuito dos bares, com músicas mais intimistas.
Para o projeto que deu origem à UPP foram recrutadas mais algumas pessoas e o então baterista Felipe Ramos. Após o período inicial tocando covers, o grupo partiu para as composições próprias. Um pequeno detalhe chama atenção na UPP: os músicos praticamente não possuíam equipamentos, tanto que Letícia teve que adaptar a guitarra para obter o som grave de um baixo. Mesmo assim, venceram um concurso da Pró-Reitoria de Extensão (Proex), da Unifesspa, e receberam um valor em dinheiro e a gravação de um EP, que foi feito em Belém.
A UPP ganhou certa notoriedade na cambaleante cena roqueira de Marabá, principalmente por cheirar a espírito juvenil e encontrar um público predominantemente da mesma faixa. Não só de bandas cover de metal viveria mais o público do rock em Marabá, o que serviu de start para que outros novos nomes buscassem também gravar as próprias composições.
Após o fim da UPP, Felipe montou outras bandas e tocou na noite com Lanara, compartilhou os primeiros passos da LUI e hoje lidera a banda Desmonte, agora como vocalista e com o single Refazer lançado. Ele também faz planos para próxima edição do Bigode festival, inviabilizado na edição 2020 pela pandemia.
Letícia divide a banda LUI com Mario da Raikage e ambos também possuem alguns singles já gravados, incluindo um clipe da música Nó. Também divide o comando da produtora Boiuna que, aliás, deve ser o foco de Letícia, buscando produzir artistas que também não dispõem de recursos financeiros fartos.
Como já adiantado, Lanara está nos fones de ouvido e na ponta dos dedos dos usuários de Twitter de Marabá com o recém-lançado EP “Ai, que dó de mim”. Divulgar o trabalho e mostrá-lo para o maior número possível de pessoas tem sido a ordem dos dias da artista.
Melissandra e Caroline: as comadres badaladas no Youtube
Caroline de Paula, a Caroline Afrosil, morava até poucos anos atrás no Rio de Janeiro e pelas circunstâncias da vida mudou-se para Marabá, em 2019, onde abriu o centro estético Afrosil, que cuida preferencialmente do visual de pessoas negras. O empreendimento foi forçado a fechar as portas no antigo endereço, por conta da pandemia, e ser reaberto na casa dela, o que causou pânico em Caroline, por razões óbvias. Porém, desta situação dramática veio a possibilidade de morar com Melissandra durante os meses de isolamento social.
Melissandra estava em evidência pelo filme “Transamazonia” (2019), que dirigiu e foi premiado em festival. Das gravações do filme, Melissandra aproveitou equipamentos e pessoal para filmar o primeiro videoclipe, “Armário”, gravado na Feira da Folha 28, Nova Marabá. A repercussão do vídeo – com quase 6 mil visualizações – gerou admiração em Caroline, que a partir daí “precisava conhecer essa gata”.
Após se conhecerem e na vivência próxima forçada pela pandemia, surgiu a parceria que resultou na música e clipe de “Emocionahdô” – este visto mais de 6 mil vezes – composta numa tarde entre “lavagem de roupa e cervejas”. O perrengue gerando música em pessoas talentosas. As duas lançaram neste semestre o álbum “Matinta” (Melissandra) e o EP “Escorpiana” (Caroline Afrosil).
Você conhece o Mário?
Os entrevistados são unanimes em afirmar que os obstáculos maiores são a falta de espaços físicos para se apresentarem e as dificuldades em gravar. Se a primeira questão ainda está longe de uma solução, a segunda obteve um grande reforço para diminuir a distância do ideal. A criação do selo SubSoundProd, por Mario Serrano, o Raikage.
Mario começou tocando violão, após aprender pela internet, e desenvolver habilidade em outros instrumentos. Tocando em bandas de rock, percebeu as dificuldades de fazer música independente “longe demais das capitais” e dos grandes centros urbanos. Dessa percepção, veio a ideia de criar um estúdio na própria casa e a vontade de produzir bandas e artistas locais.
A SubSoundprod grava, lança e divulga os trabalhos com preços bem mais acessíveis que os estúdios tradicionais da cidade. Letícia Portela diz que normalmente “gravar qualquer material sai por R$ 600 ou R$ 700”, enquanto na SubSoundProd Mario possibilita a banda fazer isso com “coleta de R$ 50 entre os integrantes das bandas”. O preço da gravação varia entre R$ 300,00 e R$ 400,00 por faixa, informa Mario.
O selo está aberto a todos os gêneros e para artistas de outros municípios, sendo cada vez mais notado por músicos que buscam mostrar ao mundo aquilo que criam em quatro paredes. A SubSoundProd mantém parceria com canais do Youtube, como o Rap BR letras, que conta com 500 mil inscritos, e o Humble Star, com mais 100 mil inscritos.
Em Marabá, são Lançamentos do selo o single “Sul”, de Charles Vitor, o EP de Lanara Moreira, os trabalhos das bandas Desmonte e LUI, de Melissandra e Caroline Afrosil, além do trabalho solo do próprio Mario, o Raikage, que planeja lançar um álbum, já batizado de “Gravidade”, no início de 2021.
Lembranças de um passado nem tão distante
Marabá vive de ciclos. Economicamente falando, mas também culturalmente. Nos já longínquos anos 80 e começo dos 90 teve o histórico Festival da Canção Marabaense, o Fecam, produzido pelo Poder Público municipal e que era abrigado no estádio Zinho Oliveira, com grande produção, considerando os padrões da época.
Após a redução drástica de investimento em cultura por parte da Prefeitura de Marabá, através das décadas, o surgimento de trabalho autorais foi escasseando, sobretudo o de produção de música dita jovem.
Sobraram os esforços de alguns guerreiros, sejam de bandas - como Antonio “Metal” Gonçalves com a Prima-Matéria, Tobias, The Tarso, com a Ioda Reggae, e Jane Martins com a Negra Melodia (todos com gravações autorais e participação em festivais de músicas) – ou mesmo solo, como Diego Aquino, Clauber Martins e o produtor e músico Itair Rodrigues, que planeja para breve a realização de um festival unindo música e artes visuais.
Recentemente, houve projetos esporádicos como Cilindrada Fest, que rendeu gravação ao vivo de vários artistas, disponível no Spotify, e espaços como o mítico Caldeirão Furado, do “elemento” Max Welson e de Dika Vieira, e o Roda Viva, tocado por Maya e Salvador. Além dos importantes eventos realizados na Unifesspa, outrora UFPA. Mas nunca algo certo e perene.
O momento agora é todo feito pelo “underground”, como pontua Felipe Ramos. Com as novas tecnologias de gravação, redes sociais e streaming, nasce esse movimento bastante diverso, que conta com o abertamente pop de Melissandra, o som pop com influência hip hop de Caroline Afrosil, o emocore eletrônico da Banda LUI, o dream rock psicodélico da Desmonte, a MPB eletrônica de Lanara Moreira, a MPB mais intimista de Vitor Charles e a mistura de pop, trap, hip hop do Raikage.
Tem para vários gostos. É isto. Como diz o renomado psicólogo Ayrk Zamiske, “só é impossível até alguém fazer”. Achei pomposo e bonito.
(Jair Santos e Luciana Marschall)