Era sexta-feira, dia 11 de outubro, quando na sala de quimioterapia do Hospital Regional Púbico do Sudeste, em Marabá, Luciana Coelho da Silva, de 30 anos, se preparava para algo que, embora soe simples, carrega uma profunda simbologia. A enfermeira ajusta o equipamento, os ruídos das máquinas se misturam às vozes baixas ao redor, e Luciana sabe que hoje é diferente.
Primeira paciente da ala de oncologia a iniciar um tratamento completo de quimioterapia em sua cidade, Luciana, agora, seis meses depois, encerrou o último ciclo, um marco na luta contra o câncer que, em tantos momentos, parecia querer definir sua vida.
A mulher se recorda com clareza do dia em que tudo começou. Era um dia comum, igual a tantos outros. “Eu estava em casa, no banho, quando senti o caroço”, diz, como quem ainda se surpreende com a simplicidade do momento em que descobriu o câncer de mama. Não houve avisos maiores, apenas o silêncio de uma rotina quebrada pela surpresa de um toque. “Mostrei para minha irmã, e logo depois fui ao médico.”
Leia mais:O que se seguiu foi um caminho árduo, mas percorrido com firmeza. Luciana, que trabalha em um hospital da cidade, conseguiu rapidamente ser encaminhada para o oncologista. “O doutor Rodolfo pediu todos os exames, e logo soubemos que era câncer.” Em outros tempos, esse diagnóstico significaria viajar para outra cidade, deixando para traz o conforto de casa e a presença da família. Mas a estrutura oncológica do Hospital Regional estava preparada, e Luciana foi a primeira a passar por esse processo sem precisar ir embora de Marabá.
ALÍVIO
“Achei muito importante não ter que sair daqui”, reflete, com os olhos vagando pela sala que, de certa forma, se tornou familiar. Foi ali que enfrentou o primeiro ciclo de quimioterapia, um tratamento intenso, com efeitos colaterais que vieram cedo, desafiando seu corpo e sua mente. “As primeiras quimios foram difíceis. Era a vermelha, e eu senti os efeitos logo”, relembra.
Mas ela não parou. Com o tempo, as sessões mudaram, a medicação se ajustou, e o corpo começou a reagir de forma mais amena. “Agora, com as quimios brancas, estou bem melhor. Não sinto quase nada”, antes da última sessão”.
O fato de ter sido a primeira paciente da ala de oncologia de Marabá é algo que Luciana encara com serenidade. “Me sinto privilegiada, mas também responsável. Acho que estou abrindo caminho para outras pessoas”, diz, sem grandes discursos, mas com a certeza de quem trilhou um caminho novo e deixou rastros para que outros possam seguir. Ela nunca precisou olhar para fora, para longe de Marabá, para encontrar o tratamento que precisava. Isso, por si só, foi uma vitória.
ÚLTIMO CICLO
Hoje, no entanto, o foco está em outro ponto. Foi sua última sessão de quimioterapia. O fim de uma rotina que, embora dura, virou parte de sua vida. “Estou feliz, claro. É minha última quimio”, comenta, com o sorriso discreto, mas firme. Há uma espécie de leveza no ar, uma sensação de que algo foi vencido, ainda que a batalha maior, a de viver, continue. “Passei por tudo aqui, com a ajuda da equipe. Psicóloga, enfermeiros, todos me ajudaram muito.”
Luciana está encerrando um ciclo que começou naquele banho, naquele toque casual que mudou tudo. Agora, em sua última quimioterapia, ela não olha para trás com medo. O futuro ainda é incerto, mas a jornada que traçou em sua própria cidade, sendo a primeira a passar pelo tratamento ali, abre portas. Sua história é mais do que pessoal. É parte de um novo tempo em Marabá, onde as barreiras físicas deixaram de existir, e a luta pela vida pode ser travada mais perto de casa, perto de quem importa.
FALTA RADIOTERAPIA
A inauguração da ala oncológica no Hospital Regional de Marabá marca um importante passo na luta contra o câncer no sudeste do Pará. Desde abril, a unidade já realizou mais de mil consultas e centenas de sessões de quimioterapia, oferecendo esperança a pacientes como Luciana, que anseiam por tratamentos próximos de casa. Contudo, a ausência de serviços de radioterapia ainda deixa uma lacuna significativa.
Além disso, é necessário levantar que, embora a qualidade do atendimento seja excelente para mulheres, os homens ainda não dispõem desse serviço no Regional de Marabá.
A equipe médica demonstra comprometimento, mas a região demanda um atendimento integral que garanta que todos os pacientes, independentemente do gênero, tenham acesso aos serviços necessários.
Médica comemora mais de 200 sessões em seis meses
Sob a gestão da médica Daiane Rodrigues de Oliveira, pediatra e neonatologista, o hospital agora ganha destaque no tratamento de cânceres de mama, colo de útero e endométrio, que até então demandavam deslocamentos longos e caros para as pacientes da região de Carajás.
“Desde a inauguração da ala, já realizamos mais de 1.300 consultas oncológicas e cerca de 200 sessões de quimioterapia. A demanda é alta, especialmente porque somos a única referência nesse tipo de tratamento para 22 municípios”, afirma Daiane, que também atua como diretora técnica do hospital.
A decisão de focar no atendimento oncológico à mulher surgiu da carência de serviços especializados na região. Antes, mulheres precisavam viajar para outras cidades, afastando-se de suas famílias para receber tratamento adequado.
A estrutura do hospital, no entanto, enfrenta desafios com o crescimento dessa demanda. Com 135 leitos, incluindo UTI adulto e neonatal, a integração de um serviço tão especializado como a oncologia trouxe à tona a necessidade de melhorias físicas e logísticas.
LACUNAS
Segundo Daiane, a Secretaria de Saúde do Estado (SESPA) busca equilibrar as necessidades com o foco no atendimento mais próximo e humanizado. “Tivemos que pensar na ampliação de UTIs e no suporte cirúrgico. O tratamento aqui é completo até a etapa de cirurgias, mas ainda há limitações, como a ausência de radioterapia, que requer mais investimentos em estrutura”, reconhece.
A ausência da radioterapia reflete uma lacuna importante no tratamento, uma vez que é uma modalidade essencial no combate a muitos tipos de câncer. Atualmente, as pacientes que precisam desse recurso são encaminhadas para outros centros de referência, distantes de Marabá. Embora esteja nos planos futuros da Secretaria de Saúde, a instalação desse serviço ainda carece de prazo definido.
Outro ponto crítico levantado por Daiane é a inclusão limitada de pacientes masculinos. A ala, focada na saúde da mulher, realiza alguns atendimentos preliminares a homens com câncer, mas o tratamento completo é oferecido em outras cidades. Ainda que haja planos de expansão para o público masculino, as condições atuais da estrutura impedem que isso aconteça no curto prazo.
DEMANDA
O caráter regional do hospital também impõe desafios logísticos. Cerca de 60% a 70% das pacientes são de Marabá, mas o restante vem das cidades vizinhas. O hospital é a principal referência para municípios da região de Carajás, o que amplia a responsabilidade sobre os profissionais e a infraestrutura. A gestão da demanda, entretanto, não diferencia a origem dos pacientes, focando no tratamento de todos os que precisam, independentemente de sua localidade.
Além dos atendimentos clínicos, o hospital promove cuidados integrais, que incluem apoio psicológico, assistência social e acompanhamento fisioterapêutico. Esse atendimento multiprofissional é fundamental, especialmente em tratamentos oncológicos, que exigem uma abordagem que vai além do cuidado físico.
Em relação ao Outubro Rosa de 2024, a equipe do hospital vê motivos para comemorar, mas também reconhece os desafios que ainda precisam ser superados. Daiane ressaltou a importância desse avanço para a saúde pública da região, mas ponderou que a ampliação da estrutura é essencial para garantir que o atendimento se torne cada vez mais abrangente, sem a necessidade de enviar pacientes para fora da cidade.
A criação da ala oncológica é um marco importante, mas levanta questões sobre a capacidade de sustentar um serviço que está, claramente, crescendo mais rápido do que a estrutura pode acompanhar. Mesmo com os desafios, a diretora técnica acredita que o hospital está no caminho certo para consolidar-se como referência na saúde oncológica da região. “Nosso objetivo é oferecer o cuidado necessário a quem precisa, seja de Marabá ou de qualquer outra cidade da região de Carajás”, conclui.
De Canaã para Marabá, Euzanira fala em “alívio”
Aos 48 anos, Euzanira Gomes Barros enfrenta uma rotina desafiadora. Residente em Canaã dos Carajás, ela precisa viajar regularmente até Marabá para realizar o tratamento de quimioterapia após a descoberta de um nódulo. A distância entre as duas cidades é de aproximadamente 220 km, e esse deslocamento faz parte de seu novo cotidiano desde que recebeu o diagnóstico.
Para garantir sua ida ao tratamento, ela conta com o transporte fornecido pelo programa de Tratamento Fora de Domicílio (TSD). O trajeto, embora longo, é fundamental para que ela tenha acesso ao atendimento necessário. “Eu utilizo o transporte fornecido pelo TSD. A viagem é de ida e volta e fico hospedada aqui até terminar o tratamento”, explica Euzanira, descrevendo o processo logístico que envolve não só a viagem, mas também a permanência em Marabá durante as etapas do tratamento.
A escolha de Marabá como local de tratamento representa um alívio em meio às dificuldades enfrentadas. Para ela, realizar o tratamento mais perto de casa é algo positivo, já que outras opções, como Belém ou Tucuruí, exigiriam ainda mais deslocamentos e esforços. “Agradeço a Deus por já ter esse tratamento disponível em Marabá”, ressalta. Apesar das dificuldades, a proximidade de Marabá em comparação com outras cidades maiores facilita o processo e oferece a ela um certo conforto.
FAMÍLIAS
A logística do deslocamento é apenas uma parte do desafio. Em Canaã, ela deixa para trás sua casa, sua rotina e sua família durante o tratamento. O apoio familiar é fundamental, mas o processo de sair de casa para enfrentar dias de tratamento em outra cidade traz desafios emocionais e físicos. “Meus filhos me deram muito apoio e disseram que estariam sempre comigo”, conta.
Com três meses de tratamento completados em Marabá, Euzanira já considera a equipe de saúde local como uma nova família. “A enfermeira Fran, os técnicos e todos são bem acolhedores. Sinto que aqui tenho uma outra família”, diz ela, reforçando a importância do acolhimento que encontrou ao chegar no hospital.
Ao refletir sobre a importância de fazer o tratamento no Regional, ela ressalta o quanto seria mais complicado se tivesse que viajar para cidades mais distantes. “Com certeza seria mais difícil. Eu me sinto bem amparada aqui, e é mais fácil vir para Marabá do que ter que ir para Belém”, destaca. O tratamento próximo de sua cidade facilita não só a logística, mas também o aspecto emocional, permitindo que ela mantenha uma conexão mais próxima com sua família durante esse processo.
Atendimentos criam vínculos com pacientes, diz enfermeira
Mirele de Souza Rosa, enfermeira especialista em cardiologia hemodinâmica e atualmente em processo de especialização em oncologia, testemunhou de perto as mudanças que o hospital passou com a criação do setor de oncologia. Depois de dois anos atuando na área de imagem, ela foi transferida para o novo departamento, onde encontrou uma realidade de trabalho significativamente diferente da que vivenciava na cardiologia.
A comparação entre a hemodinâmica, onde são tratadas doenças cardíacas, como infartos e aneurismas, e a oncologia, que lida com câncer, evidencia não apenas a distinção nos cuidados, mas também o abismo existente entre as duas áreas em termos de suporte.
“São especialidades completamente diferentes, com caminhos de cuidados distintos. Na oncologia, cada paciente tem um tratamento específico, mas isso exige muito mais do hospital, tanto em equipamentos quanto em pessoal especializado”, explica a enfermeira.
OBSTÁCULOS
A ausência de tratamentos completos dentro do hospital, como a radioterapia, reforça a dependência de tratamentos fora de domicílio (TFD), citado por Luciana. Tal vácuo estrutural coloca o peso do atendimento nas mãos de uma equipe que, embora dedicada, precisa lidar com limitações de recursos.
Enquanto o hospital se esforça para garantir a qualidade do atendimento, com profissionais treinados e atualizados, a falta de infraestrutura adequada impede que o paciente oncológico receba o cuidado integral em um único lugar. O resultado é uma peregrinação de doentes em busca de tratamento, desgastando ainda mais a saúde física e emocional de quem já enfrenta uma doença que carrega estigmas sociais profundos.
Mirele reconhece a dureza da situação e a complexidade do atendimento em um ambiente que, muitas vezes, é visto pelos pacientes como um local de última esperança. “Há esse estigma de que o câncer é uma sentença de morte, e isso reflete muito na forma como os pacientes chegam até nós. Aqui, tentamos combater essa visão e oferecer uma perspectiva de esperança, mas os desafios são grandes.” A tentativa de humanizar o atendimento e criar um vínculo com os pacientes, que retornam diversas vezes para sessões de quimioterapia, é um ponto forte da equipe. No entanto, a enfermeira revela que nem sempre o sistema é capaz de oferecer a estrutura emocional e técnica que esses pacientes necessitam.
COMPLEXIDADE
O atendimento oncológico, em especial, exige uma coordenação entre diversas especialidades, como fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais e médicos de diferentes áreas. Contudo, a sobrecarga desses profissionais é evidente. A equipe de enfermagem, composta por poucos técnicos e enfermeiros para atender um fluxo contínuo de pacientes, precisa lidar com jornadas exaustivas e, muitas vezes, com decisões difíceis sem o suporte adequado.
“Em caso de dúvidas, sempre acionamos o oncologista, mas é uma equipe pequena para a demanda que temos. A pressão é constante”, comenta Mirele, refletindo sobre a escassez de recursos humanos na área.
Embora o hospital tenha conseguido criar um vínculo forte com seus pacientes, muitos dos quais continuam visitando a equipe mesmo após o término do tratamento, a realidade é que o setor de oncologia ainda luta para oferecer o atendimento que esses pacientes verdadeiramente merecem.
(Ulisses Pompeu e Thays Araujo)