Toda semana, o Ministério Público Estadual, em Marabá, recebe pedidos de socorro vindos de pacientes ou de seus parentes, que reclamam sobre o direito à saúde garantido pela Constituição e que entendem esteja sendo violado pelo poder público, ou ainda graves violações a outros direitos fundamentais, e por vezes direitos humanos diretamente relacionados à dignidade humana. Há 13 anos como promotora de Justiça em vários municípios do Pará, Lorena Moura Barbosa de Miranda já presenciou inúmeras vezes casos como os citados acima – ou outros que se referem à garantia das necessidades vitais de cada indivíduo.
Lorena é natural de Altamira, mas concentrou boa parte da vida acadêmica em Belém, onde também cursou Direito. Atuou como advogada, depois delegada de Polícia Civil por dois anos e meio. Como promotora de Justiça titular, passou por Baião, Redenção e, desde 2020 está em Marabá, onde atua na Promotoria Criminal.
Apaixonada pelos estudos, conseguiu autorização do Conselho Superior do Ministério Público do Estado do Pará para cursar mestrado em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa, em Portugal. Sua pesquisa na pós-graduação gerou um conteúdo apreciado por professores, o qual acabou se transformando em livro, que será lançado na próxima segunda-feira, dia 27, em Marabá, com a participação de diversas autoridades públicas, bem como advogados e acadêmicos de direito. A obra enfatiza exatamente a dignidade humana como posição jurídica.
Leia mais:Pouco antes do lançamento do livro, a reportagem do CORREIO conversou com a promotora Lorena Miranda, que discorreu sobre a inspiração para a obra e a abordagem sensível que ela proporciona para acadêmicos e operadores do direito de uma forma geral:
CORREIO DE CARAJÁS – Sua experiência como promotora de justiça sempre foi na área criminal, como agora, em Marabá?
Promotora Lorena Miranda – Não. Como promotora substituta, na 1ª entrância, atuamos em atribuições gerais, com demandas dede criminal, improbidade, infância, direitos fundamentais entre outras. Em Baião, por exemplo, trabalhei em processos relacionados a questões ambientais, Infância, Criminal, Direito Público, enfim, tudo. Em Redenção, Improbidade Administrativa, Direitos Fundamentais – que foi justamente quando saí para o mestrado e a pesquisa. Eu tinha esse foco em direitos fundamentais lá, trabalhava com essa parte do Direito Público – e depois aqui, na questão criminal.
CORREIO – A produção do livro é fruto de uma dissertação de mestrado?
Lorena Miranda – Esse livro é fruto de uma pesquisa que foi realizada durante esse tempo que eu estive em Portugal, para fazer o mestrado na cidade de Lisboa. O livro foi produzido entre 2017 e 2019, sendo aperfeiçoado no ano de 2020. Então, a grosso modo, a tese, digamos assim, foi editada de modo comercial para que pudéssemos publicar esse livro.
Na época em que fui fazer esse mestrado em Direito Constitucional, tinha o foco em direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana. Quando a gente tinha reuniões e tratava sobre a dignidade da pessoa humana, um ponto que era altíssimo, uma coisa muito bem colocada, era que era um princípio que apesar da força normativa ao qual ele foi disposto, não conseguia na prática ter uma aplicabilidade com a força que ele veio como disposição constitucional.
Então, ele trouxe uma fundamentalidade jurídica imensa, mas na prática aplicado com extrema vagueza, como se fosse remédio para todas as dores, o que acaba enfraquecendo esse princípio e muitas vezes os tribunais, por exemplo, colocam como reforço para algum direito fundamental. Na verdade, ele é aplicado muito aquém da eficácia que veio para ter.
CORREIO – Qual era seu foco principal de sua pesquisa para esta obra?
Lorena Miranda – A ideia, com esse livro, era justamente buscar uma teoria normativa, uma análise muito mais técnico-normativa do princípio (dignidade da pessoa humana). Isso aqui é um caminhar que já é feito por outros doutrinadores. Percebemos que há, em verdade, uma sobreposição entre o que é o princípio da dignidade como valor, com toda a história, com toda a carga social, uma visão axiológica (noção de escolha do ser humano pelos valores morais, éticos, estéticos e espirituais) e acaba havendo uma sobreposição quando se trata de uma análise como disposição constitucional. Essa mistura e todo esse paradoxo que ele se vê envolvido, socialmente e historicamente falando, acaba sendo trazido de maneira confusa quando a gente trata de uma análise normativa, que não se deve fazer. Então, é preciso ter uma análise mais técnico–normativa, que é o que a gente propõe com essa obra.
CORREIO – O seu mestrado foi em Portugal e a sua pesquisa tinha, de alguma forma, de estar ‘linkada’ com a legislação brasileira. Certamente você bebeu na fonte de constituições da Europa. Em algum momento percebeu que a legislação brasileira está um pouco defasada em relação à europeia no que diz respeito à dignidade humana?
Lorena Miranda – Na verdade não. A nossa Constituição, com a nossa disposição como fundamento da República, inclusive, não perde de maneira nenhuma para a Constituição alemã, por exemplo. Não perde para a Suécia, não perde para outros países como Grécia nem para Portugal, quando falamos sobre a disposição normativa do Princípio em foco. A grande diferença é que, por exemplo, Portugal prevê como fundamento da República, mas também prevê como direito fundamental diretamente, o que não causa qualquer prejuízo, porque é um princípio, capaz de transmudar-se em norma de Direito fundamental, como o próprio livro aborda.
CORREIO – Como é feita essa discussão da dignidade no Brasil e no mundo?
Lorena Miranda – É possível trazer essa análise para o Brasil, porque a análise que se faz aqui é a mesma feita na Alemanha, com o dispositivo que eles têm lá, porque é similar. E a intenção desse dispositivo é similar nas constituições do mundo todo. Nem todos os países do mundo preveem o princípio da dignidade, mas aqueles que se dispõem a prever, fazem isso com essa carga, com essa força normativa. Normalmente vem disposto na constituição do país, como objetivo geral e fundamento da República, sempre nesse nível que vem o princípio da dignidade. Então, essa discussão que a gente vai travar aqui, nesse livro, pode acontecer na Suécia, na Grécia, em Portugal, na Alemanha, porque os dispositivos desses países, inclusive, são analisados na obra. Existe uma similaridade que o princípio da dignidade vem sendo prevista nas constituições.
CORREIO – Em um trecho do livro, você diz que o ser humano é portador natural de uma “insociável sociabilidade”. Como conciliar esses termos contraditórios?
Lorena Miranda – Ao mesmo tempo em que o ser humano tem necessidade de convivência social, ele possui um instinto um tanto quanto indissociável. Porque no mesmo momento que eu tenho necessidade de socializar, tenho dificuldade de socializar. Possuo um nível de agressividade ao me socializar. O ser humano vive essa dicotomia, e é por isso que a gente precisa que o direito efetivamente consiga servir ao bem-estar das pessoas, da coletividade, da sociedade – bem-estar no sentido da paz social mesmo. Quando a gente trata do direito, de uma disposição normativa, principalmente como essa, que tem essa carga de dar fundamento para a própria República brasileira, estamos tratando da paz social, de boas relações entre pessoas. Quando eu me reconheço como ser digno, reconheço o outro como digno; quando eu me respeito como um ser com direitos na ordem jurídica, respeito o outro como sujeito de direitos na ordem jurídica. Para mim, é um dos princípios mais relevantes do pensamento jurídico contemporâneo.
CORREIO – A gente consegue mensurar onde esses direitos fundamentais da dignidade humana, de alguma forma, não são garantidos em Marabá?
Lorena Miranda – Esse princípio permeia toda a atuação do Estado, especialmente a do Ministério Público. Eu vejo uma caminhada da humanidade para que esse princípio realmente consiga ser vivenciado. E aí entra o poder judiciário, nessa caminhada, quando se percebe uma violação gravíssima, aí há o recurso ao Poder Judiciário e é quando ele vai e atua. O que a gente percebe quando analisa a jurisprudência dos tribunais superiores? E não digo só o do Brasil, mas tribunais superiores do mundo todo. Ainda dão de fato uma aplicabilidade aquém da força normativa, que veio para ser esse princípio.
CORREIO – E como esse princípio é aplicado?
Lorena Miranda – Ainda é uma aplicabilidade muito vaga, desmedida. Ainda se percebe com essa intenção de servir para todas as causas humanas e não é bem isso. O princípio da dignidade tem uma autonomia, o que se percebe é que muitas vezes ele vem como reforço a um direito fundamental, que já é previsto. Mas o princípio da dignidade pode ser um direito fundamental autônomo inclusive, dependendo da hipótese. Existe um núcleo duro nesse princípio, que é a máxima da não instrumentalização. O que atrai a dignidade, o respeito a tua dignidade, é a sua condição de ser humano, tão somente a sua vida consciente como ser humano.
Eu não posso tirar de você essa condição, e lhe tratar como coisa. Existe uma máxima, que começou com Kant (filósofo alemão, fundador da “Filosofia Crítica”), que diz: “não coisificação do ser humano”, a “não instrumentalização”. Essa é a violação crassa do princípio da dignidade. Eu não consigo perceber diretamente na legislação um direito fundamental que me ressalve disso e o princípio da dignidade pode vir a ser constituído como norma exatamente para impedir que você seja instrumentalizado como ser humano, em algumas hipóteses.
Por exemplo, no direito penal tem um crime que aborda o tratamento como condição análoga à de escravo. Esse item possui um alto índice de proteção da dignidade humana. Então, é um núcleo duro e que não necessariamente pode existir como direito fundamental. Ele vem como norma autônoma. Fora isso, ele não precisa ser constituído por um tribunal como normal, ele existindo como disposição constitucional paralisada, digamos assim. Há uma necessidade de interpretação de todos os atos, que devem respeitar a dignidade humana. E claro, uma vez violado você recorre ao Judiciário. O dispositivo por si só tem uma eficácia jurídica.
CORREIO – Em algum momento você precisou recorrer a um tribunal depois que, em primeira instância, esse princípio não foi respeitado?
Lorena Miranda – Algumas vezes, sim. Por exemplo, em relação à saúde, onde muitas vezes a dignidade humana é violada. Nesse aspecto, o estado fica muito aquém do que se espera, do que a Constituição prevê. Ainda existe uma falha muito alta no nosso País quanto a vivência do Princípio da Dignidade humana. Essa é uma análise muito profunda, por exemplo, na altíssima diferença social, em que há uma desigualdade imensa entre os brasileiros, existe um nível dessa diferença que chega realmente a violar a dignidade humana. Quando a gente fala de mínimas condições, que eu trato aqui como mínimas condições de autonomia, porque um dos elementos da dignidade que merecem ser respeitados é a autonomia. Mas para que eu consiga exercer – inclusive eu coloco como elemento de usufruto – eu preciso ter mínimas condições para isso, muitas vezes a gente não consegue minimamente.
O que alguns doutrinadores chamam de mínimo existencial, eu chamo de mínimas condições de autonomia, de autodeterminação. Você existe? Você existe, mas você não consegue autodeterminação. Educação é fundamental, estado de saúde é fundamental, participação política é fundamental. Para isso, você precisa ter o mínimo de consciência, de educação e isso é uma responsabilidade do estado com todo cidadão. A gente ainda vive num estado de coisa inconstitucional, e quando percebe que tem como fundamento da República o princípio da dignidade da pessoa humana, há uma expectativa muito alta de um bem-estar da sociedade. Infelizmente no Brasil a gente não tem isso.
CORREIO – Esse livro é dirigido para os operadores do direito ou a linguagem alcança os acadêmicos também?
Lorena – Eu acredito que para todos os interessados. É um livro que tem um aspecto jurídico muito alto, é verdade, o que serve muito para os acadêmicos. Mas eu busquei uma linguagem para as pessoas, que fosse possível o entendimento, que fosse mais acessível. Então, para aqueles que atuam no Poder Executivo, por exemplo, é relevantíssimo. Aqueles que atuam no Poder Judiciário, no Poder Legislativo, também, porque como eu disse, a todos interessa o princípio da dignidade, inclusive aos três poderes, aos profissionais da área, aos acadêmicos de direito e eu usei uma linguagem bem acessível para pessoas de dentro e fora da área jurídica.
CORREIO – Onde o livro está sendo comercializado e quando será o lançamento?
Lorena – O livro está sendo vendido pela Amazon, pela Americanas, pela Editora Juruá, no Shoptime e no Submarino – físico e digital. O lançamento será no dia 27 de fevereiro, na Universidade Anhanguera, a partir de 18h30, numa aula magna do curso de Direito.
CORREIO – Desse lançamento vão participar várias autoridades, entre as quais o Procurador Geral de Justiça, César Mattar Jr; Alexandre Tourinho e Edivaldo Sales. Como conseguiu atrair essa “constelação” do MPPA para Marabá?
Lorena Miranda – A edição Juruá pelo seu Conselho Editorial demonstrou grande interesse na publicação do livro, e quanto ao Ministério Público desde o início com o pedido de licença até agora com a publicação do livro tem apresentado essa postura de grande apoiador do aperfeiçoamento funcional dos membros do Ministério Público do Estado do Pará. Aqui a gente realmente tem um apoio muito interessante com produções acadêmicas e com estudo acadêmico. Nesse sentido recebi o apoio do coordenador do Centro de Estudos e Aprofundamento Funcional do Ministério Público, doutor Edivaldo Sales, do próprio doutor César Mattar Procurador Geral do MPPA e da Associação do Ministério Público através do Dr. Alexandre Tourinho, me sinto muito feliz e agradecida pela presença destes também aqui no dia do lançamento do livro. De fato, trata-se de um apoio institucional de grande relevância, não somente para mim, mas porque com o aperfeiçoamento funcional o Promotor de Justiça pode levar uma prestação de serviço cada vez melhor para os jurisdicionados, ganhando por tanto ao fim toda sociedade.
CORREIO – “Dignidade humana como posição jurídica” abre leque para outras produções no futuro?
Lorena Miranda – Pretendo fazer uma atualização desse livro trazendo a dignidade do meio ambiente e dos animais, porque aqui o foco foi na maneira como vem sendo disposto nas Constituições dos Estados de Direito Contemporâneo, portanto especificamente sobre a Dignidade humana. Mas já percebo a necessidade de uma atualização do livro em alguns aspectos, com a extensão desse princípio também para o meio ambiente e aos animais. Tenho portanto a pretensão de fazer uma atualização da obra posteriormente.
(Ulisses Pompeu e Luciana Araújo)