- Enganoso
- É enganosa postagem que circula nas redes sociais atribuindo à esquerda o fato de a carteira estudantil não ser gratuita e o seguro DPVAT ainda estar vigente. As medidas apresentadas pelo governo federal sequer foram analisadas pelo Congresso Nacional, que reúne partidos de todas as matizes políticas. Também não procede dizer que bandidos seriam presos em segunda instância, se não fosse por interferência da esquerda. Essa decisão cabe ao Judiciário.
- Conteúdo verificado: Postagem atribui à esquerda o fato de projetos do governo federal não estarem em vigor e, ainda, que teria responsabilidade sobre bandidos que não foram presos em segunda instância.
É enganoso o post que voltou a circular nas redes sociais que relaciona a não implementação de medidas propostas na gestão de Jair Bolsonaro (sem partido) a segmentos brasileiros de esquerda. A postagem original é de setembro de 2020.
Na publicação, com tom de advertência para as próximas eleições, o autor diz que a carteira estudantil seria gratuita e o seguro DPVAT (Danos Pessoais por Veículos Automotores Terrestres) extinto, mas que a esquerda não teria “deixado”.
As duas propostas foram apresentadas pelo governo Bolsonaro em forma de Medida Provisória (MP), cuja validade é temporária – até 120 dias. Para que se tornassem leis, precisavam de aprovação no Congresso Nacional, mas sequer foram analisadas. A comissão mista de deputados e senadores que deveria analisar a proposta nem chegou a ser instalada pelo presidente do Senado Federal à época, Davi Alcolumbre, que coordenava os trabalhos do Congresso Nacional. Filiado ao DEM, o partido se identifica com ideologia de centro-direita.
Leia mais:Particularmente na MP que trata sobre a extinção do DPVAT, o partido Rede Solidariedade recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a medida, porém líderes da direita e centro-direita também se posicionaram contrários à proposta por entenderem que a iniciativa de Bolsonaro seria retaliação a um desafeto político. Mas, antes mesmo que o prazo para apreciação da MP expirasse no Congresso, o STF considerou a proposta inconstitucional.
O outro tópico da postagem se refere ao fim da prisão após condenação em segunda instância, uma mudança ocorrida após julgamento de três ações declaratórias de constitucionalidade (1, 2 e 3) ajuizadas pelo então Partido Ecológico Nacional (atualmente Patriota), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Embora as ações tenham sido ajuizadas por partidos e pelo Conselho Federal da OAB, a decisão foi da mais alta Corte do Judiciário brasileiro.
O Comprova classificou a postagem como enganosa porque usa dados imprecisos em um conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Como verificamos?
O Comprova pesquisou no Google pelos termos citados pelo autor da postagem – carteira estudantil e seguro DPVAT – para localizar conteúdos que tratassem sobre o assunto. No levantamento, logo foi possível identificar as propostas apresentadas pelo governo federal nos sites do Legislativo federal.
Nos mesmos canais e também em sites de notícias, a reportagem identificou a razão pela qual as medidas não se tornaram leis.
A equipe consultou ainda publicações sobre prisão em segunda instância. Pela leitura de reportagens publicadas em 7 de novembro de 2019, é possível concluir que o fim das prisões após condenação em segunda instância foi resultado de uma decisão colegiada do STF. O site da Corte também foi fonte de consulta para esta checagem.
O Comprova buscou o autor da postagem pelo Facebook, na seção reservada às mensagens diretas. Foi questionado sobre se sabia do teor enganoso do conteúdo, mas não respondeu.
Verificação
Carteira estudantil
A carteira estudantil é um benefício concedido por lei, garantindo meia-entrada em espetáculos artísticos-culturais e esportivos. Na legislação vigente que trata do assunto, idosos, pessoas com deficiência e jovens de 15 a 29 anos comprovadamente carentes também são contemplados com o custo 50% menor.
O projeto que deu origem à legislação é de 2008 e havia sido apresentado pelo ex-senador Eduardo Azeredo e o colega Flavio Arns, que ainda exerce mandato no Senado Federal, ambos no PSDB à época. Após tramitação no Congresso Nacional, foi sancionado e virou lei em 2013, quando Dilma Rousseff (PT) estava na presidência da República.
Já na gestão de Bolsonaro, foi editada a Medida Provisória 895/2019 criando a carteira estudantil digital gratuita.
O presidente pode publicar medidas provisórias em caso de relevância e urgência, que têm força de lei desde a sua edição. No entanto, elas têm prazo de até 120 dias e, se não forem aprovadas pelo Congresso nesse período ou forem rejeitadas pelos parlamentares, perdem a validade.
E foi isso o que aconteceu com a MP que versava sobre a gratuidade na emissão do documento. A proposta nem sequer foi analisada pelos deputados e senadores. Na época, parlamentares sustentaram que faltou ao próprio governo federal a articulação para que a medida provisória se tornasse lei.
A não aprovação da medida levou a outros conteúdos de desinformação, como um boato que foi desmentido em publicação no site da Câmara Federal. No texto, a Casa declara que é “falso que tenha deixado caducar a MP sobre a carteira estudantil gratuita.”
DPVAT
Situação semelhante se passou com a MP do seguro DPVAT, que não chegou a ser analisada pelo Congresso Nacional. A cobrança havia sido extinta em janeiro do ano passado, mas voltou logo depois. Editada em novembro de 2019, a MP foi prorrogada e ficou em vigor por 180 dias, mas, mesmo assim, não foi apreciada por deputados e senadores.
Antes, contudo, parlamentares do partido Rede apresentaram uma ação no STF contra a MP. O senador Fabiano Contarato (ES), delegado com atuação na área de trânsito, argumentou que a medida prejudicaria vítimas de acidentes e não tinha a urgência necessária para ser tratada por meio de uma MP. O STF suspendeu a medida ao considerá-la inconstitucional e pontuou que o tema poderia ser abordado em lei complementar, e não em MP.
Ainda que o partido Rede esteja no espectro da esquerda, lideranças de outros vieses políticos – de direita e centro-direita – também se mostraram contrárias à MP, sobretudo ao avaliar que a medida poderia ser uma retaliação de Jair Bolsonaro a Luciano Bivar, que está no comando do PSL nacional e é desafeto do presidente. Uma das empresas de seguro que administra o DPVAT é de Bivar. A justificativa do governo para a adoção da medida era evitar fraudes.
Parlamentares também estimaram, segundo reportagem publicada no portal Congresso em Foco, que extinguir o DPVAT reduziria a verba para a saúde em R$ 400 milhões, valor de recursos previsto para repasse pelo seguro para o financiamento do SUS.
O DPVAT é pago anualmente por todos os donos de veículos do país no início de cada ano. A arrecadação do seguro ampara vítimas de acidentes de trânsito, independentemente do responsável, oferecendo coberturas por morte, invalidez permanente e reembolso em despesas médicas.
Após ser extinto pela MP e voltar a ser cobrado por decisão do STF, antes mesmo de a medida provisória caducar no Congresso Nacional, uma nova regra passou a valer e reduziu o valor da cobrança do seguro em mais de 60%. A diminuição no custo foi aplicada em 2020 e tem validade por quatro anos.
STF decidiu pelo fim da prisão em segunda instância
Também não procede a afirmação de que a esquerda impediu que “bandidos” fossem presos após condenação em segunda instância. Essa não é uma decisão que cabe a partido político de qualquer vertente, mas sim à Justiça.
O entendimento sobre a prisão após o trânsito em julgado – quando se esgotam as possibilidades para apresentação de recursos – foi formado pelo plenário do STF, em 7 de novembro de 2019. O julgamento terminou com um placar de 6 a 5.
Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia foram favoráveis à prisão após condenação em segunda instância. Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, contrários.
Embora as cadeiras do STF sejam ocupadas mediante indicação do presidente de turno, não há como classificar de modo objetivo como cada ministro se define política e ideologicamente, tampouco atribuir à esquerda o que foi decidido pelos magistrados em 7 de novembro de 2019.
Importante observar, ainda, que a decisão do STF não contempla apenas políticos, mas qualquer cidadão que seja submetido a julgamento. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afirmou que cerca de 4,8 mil presos foram beneficiados com a decisão favorável à prisão após o trânsito em julgado, caso não estivessem presos preventivamente por outras razões. O Ministério Público Federal (MPF) levantou à época que 38 condenados no âmbito da Lava Jato seriam beneficiados com o resultado que viria a se confirmar.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre pandemia, políticas públicas do governo federal e eleições que apresentem grande possibilidade de viralização.
A postagem aqui verificada, publicada em um grupo de apoio a Bolsonaro, teve mais de 5 mil interações até o dia 4 de outubro e lança acusações contra a esquerda brasileira, espectro político que tem no PT a principal organização partidária e em Lula o principal adversário eleitoral do presidente Jair Bolsonaro, conforme pesquisas de intenção de voto.
A desinformação envolvendo partidos ou candidatos é prejudicial porque pode afetar a capacidade de discernimento da população no momento de fazer a sua escolha para votar.
O Comprova já fez várias checagens de conteúdos sobre eleições, como o vídeo que engana ao sugerir que o STF pode manipular resultado eleitoral ou o post falso que diz que Lula e Dilma pagaram 6 mil euros para jantar em Paris ou, ainda, um vídeo antigo de Bolsonaro ovacionado em Natal como se fosse atual e em Nova York.
Para o Comprova, enganoso é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 33 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.