Correio de Carajás

Por que trauma na infância pode causar transtorno mental na adolescência

Pesquisa da USP constatou que 30% dos casos de distúrbios mentais em adolescentes estão associados eventos traumáticos na infância; conheça os sinais de atenção

Foto: Freepik

Um terço dos diagnósticos de transtornos mentais em adolescentes está associado a traumas na infância, aponta pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) realizada em parceria com a Universidade de Bath, no Reino Unido. Os resultados foram publicados em fevereiro no The Lancet Global Health.

O estudo analisou as informações de 4.229 adolescentes integrantes da Coorte de Nascimentos de Pelotas de 2004, uma pesquisa que acompanha um grande grupo de pessoas da cidade do Rio Grande do Sul desde o nascimento e avalia os efeitos de fatores de risco sobre a saúde ao longo dos anos.

Os diagnósticos psiquiátricos (ansiedade, alterações de humor, déficit de atenção e hiperatividade, transtornos de conduta e de oposição) foram avaliados aos 15 e aos 18 anos. O trauma cumulativo ao longo da vida foi analisado por meio do relato do cuidador até os 11 anos. Aos 15 e 18 anos, o trauma foi avaliado pelo relato do responsável somado ao dos próprios adolescentes.

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Os pesquisadores analisaram a exposição a 12 tipos de trauma, entre eles, acidente grave, incêndio, desastres naturais, ataque ou ameaça, abuso físico ou sexual, violência doméstica e morte dos pais. Aos 18 anos, 81,2% já haviam vivenciado alguma situação traumática. Além disso, essas experiências foram responsáveis por 30,6% dos transtornos psiquiátricos nessa faixa etária.

Segundo a pediatra Alicia Matijasevich, professora associada do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e uma das autoras do estudo, um dos fatores que motivou a pesquisa é o fato de a adolescência ser um período crítico para o desenvolvimento da saúde mental do indivíduo, quando muitos transtornos psiquiátricos emergem ou se agravam.

“Estudos anteriores, realizados em países ricos, já indicavam que a exposição a traumas na infância pode aumentar substancialmente o risco de transtornos mentais ao longo da vida”, complementa Matijasevic, frisando que a literatura proveniente de países de média e baixa renda ainda é escassa.

Mas pessoas de todas as faixas etárias podem, em maior ou menor grau, ficar suscetíveis a abalos emocionais quando expostas a eventos estressores. Muitas variáveis — como a dimensão do evento estressor e a forma como isso é recebido e experimentado — podem tornar a pessoa mais ou menos vulnerável ao adoecimento psicológico ou psiquiátrico.

Na infância e na adolescência, porém, há outros aspectos adicionais que devem ser considerados, justamente porque é nessa fase da vida em que ocorre o desenvolvimento e amadurecimento emocional, a resiliência e a capacidade de resolução de problemas. Além disso, do ponto de vista de desenvolvimento neuropsiquiátrico, a exposição a traumas na infância pode afetar e modificar o funcionamento de estruturas cerebrais envolvidas na regulação do humor, na memória, na cognição, no planejamento e controle dos impulsos.

“Em resumo, é uma faixa etária crítica”, afirma o psiquiatra Elton Kanomata, do Hospital Israelita Albert Einstein. “A exposição precoce a traumas pode influenciar negativamente na saúde mental na infância e na adolescência, e isso pode aumentar significativamente o risco de desenvolver transtornos mentais ao longo da vida.”

Segundo Kanomata, quando se fala de trauma, considera-se qualquer evento ou experiência extremamente estressante e que extrapole a capacidade de gerenciamento e processamento mental e emocional pela vítima, sejam eventos concretos ou subjetivos. Mesmo que a pessoa não seja exposta ao trauma, ao ouvir sobre um acidente ou catástrofe, por exemplo, pode ficar impactada com a notícia e se transformar em um trauma.

Países de baixa renda

 

O estudo aponta que nos países de média e baixa renda a prevalência de adversidades na infância é maior e os serviços de saúde mental são mais limitados, em comparação com os países de alta renda. “Essa diferença se deve a múltiplos fatores, incluindo desigualdades socioeconômicas, maior exposição à violência comunitária e doméstica, instabilidade política e acesso limitado a serviços de saúde mental”, analisa a professora da USP. “Embora não tenhamos feito uma comparação direta dos dados brasileiros com estudos específicos de outros países, referenciamos pesquisas anteriores que indicam que crianças e adolescentes em países de baixa renda enfrentam taxas mais altas de exposição a traumas.”

A pesquisadora destaca que, como os serviços de saúde mental nesses países são mais escassos, isso agrava o impacto dessas adversidades. Em muitos casos, a falta de acesso a diagnóstico e tratamento adequados pode levar a uma progressão dos transtornos mentais, resultando em maiores dificuldades na vida adulta. “O estigma associado aos transtornos mentais dificulta ainda mais a implementação de estratégias preventivas”, completa Alicia Matijasevich.

Para Kanomata, a pesquisa retrata um problema nacional. “Apesar da amostra representar uma única cidade [Pelotas] e não todo o país, este estudo aponta para desafios compartilhados por toda a população: exposição à criminalidade, falta de segurança, acidentes e catástrofes naturais, violência doméstica, abuso físico e sexual, negligência parental, falta de acesso à saúde e educação”, diz.

Na visão do psiquiatra, um desafio para enfrentar esse problema é a distribuição desigual de médicos no país, o que limita a atuação de serviços de saúde mental para prevenir, diagnosticar e tratar distúrbios emocionais.

Transtornos mais comuns

 

Na pesquisa brasileira, transtornos de conduta e oposição, ansiedade e humor foram os mais comuns entre os adolescentes. Os transtornos de conduta e oposição são caracterizados por problemas no autocontrole das emoções e de comportamentos persistentes de desobediência, agressividade e violação de normas sociais. Eles geralmente surgem na infância ou adolescência e podem ter impacto significativo na vida escolar, familiar e social dos jovens.

Já os transtornos de ansiedade são um grupo de condições psiquiátricas caracterizadas por medo excessivo, preocupação persistente e respostas desproporcionais a situações cotidianas. Podem causar sofrimento significativo e interferir nas atividades diárias, no desempenho acadêmico, nas relações sociais e na qualidade de vida dos adolescentes.

Por fim, os transtornos de humor (como a depressão e o transtorno afetivo bipolar) são condições psiquiátricas caracterizadas por alterações significativas e persistentes no estado emocional, que podem incluir períodos de depressão profunda, euforia excessiva ou flutuações entre esses extremos. Afetam o bem-estar psicológico, o comportamento e a funcionalidade do indivíduo no dia a dia.

Estratégias de prevenção

 

Na avaliação de Matijasevich, os resultados do estudo são fundamentais para a identificação precoce de adolescentes com maior risco de desenvolver transtornos mentais, especialmente em contextos mais vulneráveis. “A associação entre a exposição cumulativa a traumas e o aumento do risco de transtornos psiquiátricos na adolescência sugere que a prevenção e a intervenção precoce podem ter um impacto significativo na redução da carga desses transtornos na população”, diz.

Kanomata concorda e diz que o estudo ressalta a importância de diferentes estratégias, tanto individualmente quanto para a elaboração de políticas de saúde pública eficazes para a prevenção, identificação precoce e tratamentos específicos. “O primeiro e mais importante objetivo é o bem-estar. A abordagem preventiva é importante para que as pessoas não cheguem ao adoecimento”, comenta.

Alguns sinais de alerta que pais, familiares e professores podem detectar são: alterações de humor (ansioso, deprimido, irritadiço, choro fácil), mudanças no comportamento (inquietude, agressividade, comportamentos intempestivos), alterações cognitivas (queda no rendimento escolar, desatenção, dificuldade de concentração), dificuldades sociais (isolamento, desconfiança excessiva), mudanças de sono (insônia, sonolência excessiva) e alteração no apetite (com perda ou ganho de peso).

“É muito importante a identificação precoce de sinais psicológicos, pois eles podem indicar sofrimento emocional e vulnerabilidade. Esses sinais permitem abordagens terapêuticas mais específicas e, geralmente, sem a necessidade de emprego de medicamentos”, diz o psiquiatra. Com isso, os jovens podem conseguir lidar com traumas de maneira mais efetiva e sofrer menos com o impacto desses transtornos ao longo da vida.

(Fonte:G1/Fernanda Bassette, Agência Einstein)