De certa maneira, a nimesulida é vítima de seu próprio sucesso: a capacidade que ela tem de aliviar dor, febre e inflamação faz com que muita gente exagere na dose, na frequência ou no tempo de uso.
E isso pode trazer sérias consequências para o fígado, os rins e até o coração.
Para ter ideia, esse anti-inflamatório aparece na terceira posição entre os remédios mais vendidos nas farmácias, atrás apenas de losartana e metformina, que são prescritas para tratar hipertensão e diabetes, respectivamente.
Leia mais:
Os dados, compilados pela consultoria Close-Up International, calculam que mais de 102 milhões de caixas de nimesulida foram vendidas no país durante o ano passado.
Em termos financeiros, essa molécula faturou sozinha mais de R$ 891 milhões em 2024.
A alta popularidade dela em terras brasileiras contrasta com a situação no exterior: a nimesulida sequer foi aprovada em lugares como o Reino Unido — e foi retirada do mercado em países como Estados Unidos, Canadá, Japão, Espanha e Irlanda.
Mas como a nimesulida funciona e para que casos ela é realmente indicada? E quais eventos adversos ela pode causar?
A BBC News Brasil conversou com especialistas no assunto e traz as respostas para essas e outras perguntas relacionadas à medicação.
Como a nimesulida funciona?
A farmacêutica bioquímica Laura Marise, doutora em Biociências e Biotecnologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), explica que a nimesulida faz parte da classe dos anti-inflamatórios não esteroidais.
“De forma geral, esses medicamentos diminuem a síntese, ou a fabricação, de moléculas inflamatórias”, detalha ela.
Em diversas doenças e condições de saúde, como uma infecção ou uma dor mais intensa, nosso organismo desengata uma cascata de reações químicas cujo resultado é justamente um quadro inflamatório.
A nimesulida atua nesse processo, ao inibir uma enzima chamada ciclooxigenase, ou COX.
Essa ação, por sua vez, atrapalha a produção de outra substância, cujo nome é prostaglandina, que está relacionada à dor e à inflamação.
A tal da prostaglandina também pode mexer no “centro de temperatura” do corpo e ocasionar um quadro de febre.
Ao “atrapalhar” esse processo, portanto, o remédio alivia os sintomas com alta eficácia e tem uma ação tripla: anti-inflamatória, analgésica (contra a dor) e antipirética (contra a febre).
Na bula aprovada no Brasil, a nimesulida é indicada como “tratamento de uma variedade de condições” que apresentam as características descritas acima.
Mas, como você vai entender a seguir, essas recomendações são um pouco mais restritas em outros lugares onde ela também está liberada para prescrição e venda.
Quais são os riscos da nimesulida?
O hepatologista Raymundo Paraná entende que há um exagero no uso de anti-inflamatórios no Brasil.
“Eles são vendidos livremente, sem muito controle, e muitas vezes usados para situações em que outros analgésicos mais simples e seguros seriam suficientes”, observa o médico, que é professor titular da Universidade Federal da Bahia.
Segundo o especialista, essa classe de moléculas pode ter uma série de eventos indesejados no organismo.
“A prostaglandina, bloqueada pelos anti-inflamatórios, é importante para manter as células do estômago coesas. Sem ela, há um maior probabilidade de desenvolver gastrite, hemorragia e úlceras”, exemplifica Paraná.
“Essas medicações também aumentam o risco de doenças cardiovasculares, especialmente em pacientes com hipertensão.”
O hepatologista também cita o caso de indivíduos com insuficiência renal, para os quais a nimesulida é contra-indicada na maioria das situações.
“Já no fígado, o remédio pode causar dano quando ocorre um uso mais prolongado, por mais de 15 dias. Mas uma parcela considerável de pacientes pode sofrer com doenças nesse órgão nos primeiros dias de tratamento”, acrescenta ele.
Paraná, inclusive, faz parte de um grupo de pesquisadores da América Latina que analisa complicações hepáticas relacionadas ao uso de diversas substâncias.
Num artigo publicado em janeiro de 2025, o time de especialistas compilou casos registrados nos últimos dez anos na região.
Eles identificaram 468 episódios de lesões no fígado induzidas pelo uso de drogas.
Entre os compostos que provocaram os piores prognósticos em situações como essa, os autores destacam os remédios anti-tuberculose, a nimesulida e os suplementos fitoterápicos e dietéticos.
Na conclusão do artigo, os cientistas sugerem a criação de “políticas de saúde pública” para “aumentar a conscientização sobre os potenciais efeitos adversos desses compostos”.
De fato, a bula da nimesulida detalha uma série de contra-indicações e possíveis complicações do uso dela.
Esse remédio não deve ser utilizado em menores de 12 anos e precisa ser prescrito com um cuidado especial para gestantes, mulheres que tentam engravidar, idosos e pacientes com doenças renais, hepáticas, cardiovasculares, entre outros.
Já na seara dos efeitos colaterais, as reações muito comuns (que ocorrem em mais de 10% das pessoas que usam nimesulida) são diarreia, náusea e vômito.
Os eventos incomuns (acometem entre 0,1% e 1% dos usuários) incluem coceira, vermelhidão na pele, suor, constipação, gases, gastrite, tonturas, vertigens, inchaço e aumento da pressão.
Já os efeitos raros (observados em 0,01% a 0,1% das pessoas) são eritema (pele avermelhada), dermatite, ansiedade, nervosismo, pesadelos, visão borrada, hemorragia, fogachos, flutuação da pressão arterial, dor para urinar, anemia, aumento do potássio no sangue, entre outros.
Há ainda uma lista extensa de efeitos ainda menos comuns, cuja frequência não foi estimada nas pesquisas.
Uma das principais recomendações para diminuir os riscos de sofrer com esses eventos adversos é seguir à risca a recomendação de profissionais de saúde.
“A gente nunca deve utilizar anti-inflamatórios por um período prolongado”, orienta Marise.
Em linhas gerais, os médicos indicam uma dose máxima de 100 miligramas de nimesulida duas vezes ao dia.
A recomendação é sempre limitar o uso pelo menor tempo possível — na maioria dos casos, é comum a prescrição do tratamento por, no máximo, cinco dias.
Portanto, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e as cartilhas de instituições de saúde, usar a nimesulida (ou qualquer outro anti-inflamatório) por conta própria, para lidar com um quadro de dor ou febre, pode representar um risco desnecessário.
Nesses casos, o melhor é apelar para analgésicos simples (como dipirona ou paracetamol) e buscar uma avaliação médica se os sintomas persistirem ou piorarem depois de alguns dias.
E esse perigo fica ainda maior quando o uso da nimesulida se repete de tempos em tempos ou se prolonga por vários dias.
“Os anti-inflamatórios são usados de forma muito leviana, por uma falsa percepção de segurança e pela ação mais rápida no controle da dor”, lamenta Paraná.
“Precisamos tomar cuidado com o uso excessivo dessas medicações, que acontece sempre quando alguém as toma desnecessariamente ou se há uma opção terapêutica menos tóxica à disposição.”
“O risco de sofrer uma doença hepática é elevada para praticamente todas as pessoas que usam esses medicamentos por mais de 15 dias”, complementa ele.
Aqui vale uma atenção especial também com as interações entre remédios.
“A associação de diferentes medicamentos também pode potencializar eventos adversos que danificam o fígado e outros órgãos”, alerta Marise.
Portanto, se você já faz algum tratamento e precisa tomar um remédio para aliviar sintomas como dor e febre, é importante antes conversar com um profissional de saúde para evitar “misturas” potencialmente perigosas.
O mesmo cuidado vale para o consumo de álcool, que deve ser suspenso durante o uso da nimesulida para não sobrecarregar ainda mais o fígado.
Por que a nimesulida está proibida em outros países?
Como citado no início da reportagem, a nimesulida nunca foi aprovada para venda em locais como o Reino Unido e a Alemanha.
Além disso, ela foi retirada de circulação em diversos países, como Estados Unidos, Canadá, Japão, Suécia, Holanda, Dinamarca, Bélgica, Irlanda, Espanha e Finlândia.
Desses, o caso da Irlanda foi talvez o que ganhou mais notoriedade.
Em 2007, o Conselho Irlandês de Medicamentos anunciou a suspensão imediata da venda de nimesulida após ter acesso a informações sobre casos de falência hepática fulminante, com necessidade de transplante, entre pessoas que usaram esse fármaco.
Um documento disponível no site da Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que, entre 1995 (quando a nimesulida foi aprovada na Irlanda) e 2007 (quando foi suspensa), esse país notificou 53 casos de danos graves ao fígado.
A decisão das autoridades irlandesas motivou a abertura de uma investigação mais ampla na Agência Europeia de Medicamentos (EMA), o órgão responsável pela vigilância sanitária na União Europeia.
Um relatório produzido no comitê responsável pelo inquérito concluiu que “os benefícios da nimesulida continuam a superar os riscos”.
No entanto, a EMA decidiu restringir o uso dela a alguns casos específicos.
Atualmente, na União Europeia, essa medicação segue disponível, a depender do critério de cada país, mas só está indicada para o tratamento de dor aguda e dismenorreia (a popular cólica menstrual).
E, mesmo nesses casos, ela entra apenas como a segunda linha terapêutica, quando outras opções não funcionaram.
Mas e no Brasil? Por que esse fármaco está amplamente disponível?
Marise pondera que nem sempre o que acontece num determinado país se repete em outros.
“Precisamos levar em conta um fator importante, que é a genética populacional. Alguns genes específicos fazem nosso corpo responder de formas diferentes ao mesmo medicamento”, explica ela.
“Então pode ser que, para algumas pessoas, esse perfil genético favoreça a toxicidade, enquanto para outras gere um efeito terapêutico mais potente.”
Ou seja, antes de lançar uma proibição generalizada, é preciso conhecer as particularidades de cada região — e entender como cada população reage a uma certa substância.
Algo similar acontece com a dipirona, que é livremente usada no Brasil, mas está proibida em outras partes do mundo.
Mesmo diante de possíveis variabilidades populacionais, Paraná entende que órgãos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) precisam fazer uma revisão das normas sobre o uso de anti-inflamatórios no país.
“É necessário ter protocolos mais rígidos, com uma venda limitada de caixas e sempre mediante a apresentação de receita médica”, sugere o hepatologista.
“Precisamos também de programas de educação dos profissionais de saúde para conscientizar sobre o uso desses remédios”, complementa ele.
Procurada pela BBC News Brasil, a Anvisa reforçou que a nimesulida “é um medicamento sujeito à prescrição médica”.
“Entre as contraindicações, a bula traz restrição para ‘histórico de reações de hipersensibilidade ao ácido acetilsalicílico ou a outros antiinflamatórios não esteroidais; histórico de reações hepáticas (do fígado) ao produto; pacientes com úlcera péptica (úlceras no estômago ou intestino) em fase ativa, ulcerações recorrentes (úlceras que vão e voltam) ou tenham hemorragia no trato gastrintestinal (sangramento no estômago e/ou intestinos); pacientes com distúrbios de coagulação graves; pacientes com insuficiência cardíaca grave (mau funcionamento grave do coração); pacientes com mau funcionamento dos rins grave e pacientes com mau funcionamento do fígado'”, diz a agência em nota enviada à reportagem.
O texto também lembra que o uso desse remédio requer “cuidados que devem ser observados em pacientes com problemas de fígado”.
“Reações adversas hepáticas (do fígado) relacionadas à droga foram relatadas após períodos de tratamento menores de um mês. Dano ao fígado, reversível na maioria dos casos, foi verificado após curta exposição ao medicamento”, conclui a nota.
Já o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) informou que não tem nenhum comentário específico a fazer sobre o tema, mas reforçou que “todos os medicamentos tarjados [como é o caso da nimesulida] devem ser usados com orientação dos profissionais de saúde e só devem ser vendidos e dispensados mediante a apresentação da receita médica”.
Para Marise, é preciso também exercitar o autoconhecimento e observar o corpo.
“O mais importante de tudo é a pessoa entender por que está tomando um medicamento, seja por conta própria ou não. Ela está com uma dor recorrente, que não passa? Será que não é melhor investigar o que está acontecendo e as causas disso?”, questiona a farmacêutica.
“Anti-inflamatórios podem até aliviar os sintomas, mas não tratam a causa do problema”, conclui a especialista.
(Fonte: BBC News/ André Biernath)