Correio de Carajás

Por que há tantos massacres de presos no Norte e Nordeste do Brasil?

Inquérito que investiga massacre em presídio de Altamira

Manaus (AM), Boa Vista (RR), Nísia Floresta (RN) e agora Altamira, no Pará. Nos últimos anos, alguns conflitos entre presos deixaram centenas de mortos em penitenciárias na região Norte e Nordeste do Brasil.

Na manhã de segunda-feira, 57 pessoas ligadas à facção carioca Comando Vermelho (CV) foram mortas no Centro de Recuperação Regional de Altamira. Entre eles, 16 foram decapitados e os outros morreram por asfixia após serem sufocados pela fumaça de um incêndio iniciado pelo grupo rival, o Comando Classe A.

Os últimos massacres do país, iniciados em janeiro 2017, repetem a mesma dinâmica: membros de uma das facções invadem setores comandados pelo grupo rival e, com decapitações e requintes de barbárie, matam dezenas de detentos. No pano de fundo desses episódios está o conflito entre as duas maiores redes criminosas do país pelo controle do tráfico de drogas: Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital (PCC).

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No primeiro deles em Manaus, presos ligados à facção Família do Norte – até então aliada dos cariocas – mataram integrantes do PCC. Dias depois, membros do grupo paulista revidaram no presídio de Alcaçuz, em Nísia Floresta, região metropolitana de Natal, assassinando pessoas ligadas ao Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte, filiado ao Comando Vermelho no Nordeste.

Em algum momento da última década, esses dois grupos migraram para o Norte e para o Nordeste, buscando novas oportunidades de negócios. Por algum tempo, eles foram aliados, mas romperam as relações em meados de 2016, iniciando um conflito que se espalhou pelo país.

No Nordeste, a taxa de assassinatos chegou a 48,6 mortes por 100 mil habitantes em 2017, aumento de 64% entre 2007 e 2017/ Imagem: Google

Altamira

Segundo Roberto Magno Reis Netto, doutorando em segurança pública pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador do Laboratório de Geografia da Violência e do Crime, o Comando Classe A surgiu em Altamira recentemente, sob as asas do PCC.

O crescimento econômico e populacional de Altamira, estimulado pela construção da usina de Belo Monte, fomentou a atuação das gangues, diz Reis Netto. Para ele, a oferta de rios na região também facilita o transporte de drogas para outros locais.

Os massacres funcionam como estratégia dos grupos criminosos, explica Reis Netto. “Quando a facção está se expandindo, como essa de Altamira, ela costuma usar as mortes em presídios para eliminar momentaneamente líderes rivais, mas também de forma simbólica, para mostrar força para os rivais”, disse.

A região Norte é divida por várias siglas, mais fortemente entre Família do Norte, Comando Vermelho e PCC, embora esse último tenha perdido força nos últimos anos. Elas disputam as vendas de drogas nas cidades, mas também uma rota de tráfico que vem da Colômbia, Peru e Bolívia.

Já em Estados do Nordeste, como Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, facções menores também foram criadas, mas em contraposição aos paulistas.

De acordo com Ítalo lima, do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), esses conflitos ocorrem há mais de 20 anos nos presídios de Sudeste e Sul. A diferença é que o PCC hoje tem o monopólio do tráfico de drogas e do controle dos presídios, principalmente em São Paulo. Além disso, a facção paulista evita chamar a atenção por ações violentas.

“Isso se alastrou para os presídios de outras regiões. As facções mais novas precisam passar o medo e fazer publicidade de suas ações por meio de vídeos. Estamos acompanhando a consequência de escolhas feitas há décadas, tratar o encarceramento como negócio”, afirmou.

Rebelião em Alcaçuz
No presídio de Alcaçuz, na região metropolitana de Natal, ao menos 26 presos da facção Sindicato do Crime foram mortos por integrantes do PCC/ Imagem AFP

Para o pesquisador, os conflitos nas penitenciárias são um reflexo dos problemas brasileiros. Ele diz que há uma grande preocupação com a segurança enquanto outras áreas ficam esquecidas, como saúde, educação e emprego.

“Precisamos resolver o analfabetismo, problemas na educação, moradia, saneamento básico e garantir renda para projetos. Hoje, o Brasil quer resolver problemas históricos eliminando o outro. É necessário reduzir o desemprego na juventude e a evasão escolar para reduzir de maneira estrutural nossos problemas nos presídios”, afirmou.

No Pará, como em outros Estados, os presídios estão superlotados e precários. Segundo o Infopen, do Departamento Penitenciário Nacional, o Pará tinha uma taxa de ocupação de suas cadeias de 167%. Em 2016, últimos dados oficiais compilados pelo governo federal, o Pará tinha 14.212 presos para apenas 8.489 vagas. Desse total, 48,3% eram presos provisórios – ou seja, pessoas que ainda não haviam sido julgadas.

A estrutura do próprio presídio de Altamira, onde ocorreu o massacre de segunda-feira, foi classificada como “péssima” em um relatório do Conselho Nacional de Justiça. O juiz que realizou a vistoria apontou que a unidade tem capacidade para 163 presos, mas, no momento do massacre, contava com 343 detentos.

“Os presídios do Pará, como no resto do país, são precárias e superlotadas. Nessas cadeias, presos perigosos ficam misturados com presos de menores potencial ofensivo”, diz Edson Ramos, professor do programa de pós-graduação em Segurança Pública da Universidade Federal do Pará. “Você coloca dentro de uma mesma cela um cara que praticou um pequeno furto com grandes líderes de redes criminosas. Então, esse recrutamento (de novos filiados para as facções) fica muito fácil.”

Dados da violência

Os recentes ataques nos presídios foram acompanhados por uma explosão de homicídios nas ruas, tanto no Norte como no Nordeste, segundo dados do Atlas da Violência, publicação anual do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Vidro perfurado por bala.
O aumento da presença de facções criminosas é um dos fatores que explicam a alta de homicídios no Norte e no Nordeste/ Getty Images

No Nordeste, a taxa de assassinatos chegou a 48,6 mortes por 100 mil habitantes em 2017, aumento de 64% entre 2007 e 2017. Já os sete Estados do Norte bateram a marca de 47 por 100 mil, crescimento de 75% no mesmo período.

Como comparação, no Sudeste o índice médio de homicídios foi de 19 por 100 mil habitantes em 2017, queda de 17% em dez anos.

O Atlas da Violência resume o cenário. “Nos últimos anos, enquanto houve uma residual diminuição (da taxa de homicídios) nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, observou-se certa estabilidade do índice na região Sul e crescimento acentuado no Norte e no Nordeste.”

Por Estado, os números são ainda mais dramáticos. Enquanto São Paulo registra 10,3 homicídios por 100 mil pessoas – a menor taxa do país -, os nordestinos Rio Grande do Norte e Ceará bateram 62,8 e 60,2, respectivamente. Já o Acre (62,2) e o Pará (54,7) despontam como campeões de homicídios no Norte.

Mas por que essa violência cresceu?

“O boom econômico vivido pela região não foi acompanhado por investimentos no treinamento e fortalecimento das polícias e melhorias no sistema prisional. Cidades até então pequenas e pacatas cresceram muito, mas a infraestrutura policial e social não acompanhou”, disse Thadeu Brandão, professor de sociologia da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, em entrevista recente à BBC News Brasil.

Presídio onde mais de 50 pessoas foram mortas no Pará
Pesquisadora Camila Nunes Dias diz que grande fragmentação é um dos motivos de guerras no Norte e Nordeste/ Imagem EPA

“Por outro lado, a Justiça não se preocupou em combater as grandes redes criminosas. Ficou concentrada em prender pequenos traficantes, que vão para presídios em péssimas condições. Esses ‘aviõezinhos’, pequenos delinquentes, acabam sendo cooptados pelas facções e se tornam grande delinquentes”, afirmou.

Além do crescimento econômico, as regiões também viveram uma mudança demográfica, que, em parte, pode explicar o aumento dos homicídios. As populações de adolescentes e jovens do Norte e do Nordeste são proporcionalmente maiores que as do Sul e do Sudeste – e, no geral, grande parte das vítimas de homicídio é composta justamente por pessoas dessa faixa etária.

“Muitos desses jovens, moradores de bairros pobres, são excluídos do mercado formal do trabalho e da educação superior”, diz Roberto Magno Reis Netto, da UFPA. “Quando eles são presos, são colocados em locais mais precários ainda, as prisões. Suas opções ficam ainda mais reduzidas. O crime oferece condições melhores. Acho que o crime é uma escolha, mas esse contexto contribui muito para a entrada dessas pessoas.”

Fragmentação do crime

Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, diz que esses conflitos no Norte e Nordeste ocorrem principalmente por conta da fragmentação das facções na região que se dá com a nacionalização dos grandes grupos do Sudeste.

“Quando esses grupos do Sudeste se nacionalizam, isso produz um arranjo em cada lugar, que é marcado pelo surgimento de grupos locais. No Norte e Nordeste, eles são muito fragmentados e isso favorece para que eles sejam mais instáveis, o que causa mais riscos de rebeliões violentas”, afirmou em entrevista à BBC News Brasil.

Ela conta que o PCC surgiu no começo da década de 1990, envolveu-se em vários conflitos, principalmente com presos que não aceitavam a presença da facção. Para ela, a hegemonia do grupo se consolidou no início dos anos 2000. Desde então, grupos menores não têm capacidade de ameaçá-los no Estado de São Paulo, o que torna a região imune a esse tipo de conflito dentro dos presídios.

“Eles tiveram êxito em evitar uma fragmentação. Hoje, aqueles que não se encaixam na facção pedem para serem transferidos para presídios conhecidos como ‘seguro’, com acusados de cometer crimes sexuais. Não é possível replicar isso em outros Estados porque a fragmentação muito grande”, diz Nunes Dias.

Por outro lado, a pesquisadora afirma que, mesmo fragmentados, esses grupos criam uma polarização nos Estados do Norte e Nordeste entre PCC e CV – os maiores do país. Segundo ela, isso começou em 2016, quando as gangues nascidas no Rio de Janeiro e São Paulo, que atuavam juntos e conviviam nas mesmas prisões, romperam relações.

“Os grupos menores são geralmente aliados de um ou outro. Raramente são neutros. Isso acabou polarizando. É aquele papo de ‘o inimigo do meu amigo também é meu inimigo'”.