O ano de 2022 foi o pior da história do setor de planos de saúde, desde o início da série histórica elaborada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a partir de 2001. O prejuízo operacional acumulado em 12 meses foi de R$ 11,5 bilhões, o maior em mais de duas décadas. No entanto, abaixo dos R$ 15 bilhões estimados pelo mercado.
Mas, considerando o resultado financeiro, as contas fecharam no que a ANS chamou de zero a zero, já que o lucro líquido foi de R$ 2,5 milhões, que representa 0,001% das receitas de operações de saúde do setor no ano passado, de R$ 237,6 bilhões.
O número no campo positivo, ainda que pouco relevante para o tamanho do mercado, é reflexo do expressivo resultado financeiro obtido pelas operadoras com o aumento das taxas de juros que remuneram os ativos garantidores e aplicações financeiras. Com isso, o resultado financeiro ficou em R$ 9,4 bilhões no ano.
Leia mais:Mas o fato de 43% das operadoras médico-hospitalares terem fechado o ano com prejuízo aumenta a percepção de deterioração do resultado do setor, que teve um lucro recorde de R$ 18,7 bilhões em 2020 — devido à redução de procedimentos durante a pandemia — e de R$ 3,8 bilhões em 2021.
Na avaliação de Paulo Roberto Rebello, presidente da ANS, o mercado vive um momento peculiar. Apesar de um crescimento constante na base de clientes desde o início da pandemia — o número de beneficiários em planos médico-hospitalares foi de 47 milhões em dezembro de 2019 para 50,4 milhões em dezembro de 2022 — os resultados vêm piorando.
— Em princípio, as despesas assistenciais não apresentaram crescimento que possa justificar sozinha o aumento da sinistralidade, o percentual das receitas com mensalidades consumidas pelas despesas assistenciais. Entretanto, as receitas advindas das mensalidades parecem estar estagnadas, especialmente nas grandes operadoras — analisa Rebello, que vê sinais de melhoras no quarto trimestre.
Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde, associação que reúne as maiores empresas do setor, não concorda com a avaliação da ANS de que o resultado de 2022 representa um zero a zero. E afirma ter uma visão mais pessimista para este e o próximo ano.
— Não se opera num setor de altíssimo risco para ganhar dinheiro em aplicação financeira. Há uma parte das empresas, inclusive, que defende a liberação das aplicações financeiras (os ativos garantidores) para dar um alívio no setor. Cerca de 40% dos beneficiários estão em operadores que registraram prejuízo operacional. Na minha avaliação, esse quadro não se reverte no curto prazo. É um grave momento do setor — afirma Vera.
Amil tem o maio prejuízo
A empresa que registrou o maior prejuízo em 2022 foi a Amil, com resultado negativo em R$ 1,6 bilhão. No segundo lugar desse ranking está a Prevent Senior, com prejuízo de R$ 872 milhões, seguida pela Metlife (-R$ 626 milhões). A Unimed-Rio, que acumulava prejuízo de R$ 1,3 bilhão até o terceiro trimestre, não aparece no ranking porque não entregou os dados do quarto trimestre.
No topo da lista das empresas com melhores resultados está a Bradesco Saúde, com lucro de R$ 690,53 milhões — não por acaso, a empresa que tem maior reserva do segmento —, seguida por SulAmérica (R$ 485,91 milhões) e Odontoprev (R$ 452,17 milhões).
‘Downgrade’ de plano de saúde
O fato de a receita não acompanhar a evolução no número de beneficiários pode ser em parte explicada pelo downgrade dos planos de saúde. Ou seja, a base cresceu, mas o valor médio dos planos caiu. Para não deixar o benefício, famílias e empresas trocaram seus contratos por outros mais baratos.
Há quem diga ainda que houve uma subprecificação por parte das operadoras na intenção de aumentar sua base de clientes.
Com o aperto econômico dos últimos anos, as operadoras dizem ainda que não foi possível repassar os aumentos de custos para as empresas, principais contratantes de planos de saúde do país, com cerca de 80% do mercado. E lembram que a média dos reajustes coletivos no ano passado foi menor do que a dos planos individuais: 11% contra 15%.
Isso quer dizer que o percentual de aumento este ano deve ser mais alto. Será preciso recompor a margem, dizem, mesmo que isso signifique em alguns casos reduzir a base de clientes.
Além disso, o setor viveu uma forte onda de fusões e aquisições nos últimos tempos, o que além de endividamento pode ter provocado, em alguns casos, perda de eficiência durante o processo de integração.
– Embora os últimos dados mostrem que os resultados menos favoráveis são observados nas maiores operadoras, ainda é cedo para avaliar. A busca por ganhos de escala no setor é natural devido à própria natureza do negócio das operadoras – analisa o presidente da ANS.
Ele complementa:
– É necessário tempo para que as unidades adquiridas estejam com as engrenagens ajustadas. Esse período de busca de sinergias empresariais pode resultar em investimentos adicionais e seus resultados efetivos podem não ser visíveis em um espaço tão curto de tempo, especialmente após uma pandemia como a que passamos
‘Reajustes que penalizam consumidor’
O percentual das receitas com mensalidades gasto com a assistência (a chamada sinistralidade), aumentou 2,1 pontos percentuais de 2021 para 2022 e chegou a 89,21%.
Na avaliação do economista Lucas Andrietta, do Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde e Interações Público-Privadas da USP, os dados estão longe de mostrar uma crise estrutural do setor.
— O aumento da sinistralidade pode estar relacionado ao represamento ocorrido durante a pandemia. Era um efeito previsível e sua contrapartida foi um resultado econômico extravagante em 2020. A dita preocupação com a sustentabilidade financeira e a saúde da clientela indicaria a óbvia necessidade de se fazer provisões para as oscilações dos anos seguintes. O que sabemos hoje é que, ao longo dos anos, o setor tem sido capaz de manter receitas crescentes via reajustes de preço que penalizam consumidores, sobretudo idosos que não podem pagar — pontua o economista.
Terapias e tecnologia pesam na conta
Na avaliação do economista Rodrigo Mendes Leal, diretor da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), é preciso analisar esse prejuízo operacional do setor como reflexo de um momento extraordinário que foi a pandemia.
Ele destaca ainda que em setores regulados, como o de saúde, não deve haver um repasse total de custos ao consumidor, é esperado que o cálculo de reajuste traga incentivos a ganho de eficiência das empresas. Leal defende um maior monitoramento de preços de venda pela ANS:
– É preciso garantir que as empresas tenham um preço mínimo que garanta a prestação de serviço adequada para que não se veja uma estratégia que atrai o consumidor, para no ano seguinte aplicar reajustes altos para recompor a margem do contrato. Aliás, essas margens, que eram tradicionalmente entre 2% e 4%, chegaram a 8% em 2020.
Na avaliação da diretora-executiva da FenaSaúde, no entanto, o aumento de uso não está mais relacionado ao represamento de procedimentos vivido na pandemia, mas a uma mudança de comportamento. Vera pontua ainda que as contas das operadoras foram fortemente impactadas pela liberação de terapias sem limites e a incorporação de novas tecnologias.
— Esse excesso de tecnologia cara sendo incorporada sem critério adequado preocupa, estamos falando em medicamentos de R$ 6 milhões, R$ 10 milhões. Vamos precisar ter uma conversa madura em sociedade sobre isso, pois em nenhum lugar do mundo é possível dar tudo a todos. Além disso, houve um aumento significativo de fraude, da pandemia para cá, que também está pesando na conta — pondera a executiva.
Rebello destaca que o mercado opera em segurança:
– A gestão de saúde privada nas operadoras de planos deve se pautar pelo mapeamento, identificação e gestão dos riscos ao qual a entidade está exposta. Sejam eles assistenciais ou financeiros. Como dito anteriormente, apesar das dificuldades, o mercado apresenta condições de operar em segurança. O plano de saúde que conhecemos hoje é muito diferente do que existia há 30 anos, e mais ainda dos primeiros seguros de saúde no início do século XX. A reinvenção desse produto faz parte da evolução natural da sociedade e do avanço da medicina.
Mais informação e transparência
Ana Carolina Navarrete, coordenadora do programa de Saúde, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), pontua que as operadoras atuam seguindo uma lógica securitária, ou seja, são quantificadoras de risco, tendo instrumentos que lhes permitem diluir riscos equilibrando perdas entre um ano e outro.
— Da mesma forma como foram admitidos resultados positivos unilaterais em situações como a pandemia de Covid-19, resultados negativos ou como mostram os dados da ANS, zero a zero, decorrentes de situações plenamente antecipáveis, como a retomada de procedimentos pós-pandemia, devem ser suportados pelas empresas sem que consumidores sejam responsabilizados por condições que poderiam ter sido antecipadas por quem faz a gestão financeira do serviço — diz Ana Carolina.
A especialista diz ainda que talvez a situação fosse diferente se em 2020 a ANS tivesse atendido o pedido do Idec e criado uma câmara técnica para avaliar o impacto da pandemia nos reajustes das mensalidades:
— Agora, o risco de repasse direto do risco aos consumidores, por meio de altos reajustes é grande, e não há instrumentos, hoje, que assegurem ao usuário que o aumento é justificado. Por isso, é tão importante o setor avançar para uma regulação que permita mais transparência na formulação dos preços, especialmente dos planos coletivos. Hoje, a operadora indica o percentual e o consumidor ou se aperta para pagar, ou faz a portabilidade (quando encontra aonde ir) ou perde o plano. Não tem como ele saber se o percentual é justificado.
Andrietta pondera que é preciso maior transparência e disponibilidade de dados para que se possa entender os componentes das despesas assistenciais:
— Apenas com a clareza e abundância de informações podemos discutir o papel de prestadores, modelos de remuneração e outros aspectos organizacionais — avalia.
(Fonte: O Globo/ Luciana Casemiro)