📅 Publicado em 26/11/2025 17h34✏️ Atualizado em 27/11/2025 10h12
Uma pesquisa pioneira da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) vem ganhando destaque em Marabá e, principalmente, entre pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. Intitulada “Estresse de minoria em pessoas trans e não‑binárias”, a investigação revela, por meio de dados e relatos, como as vivências pessoais e sociais afetam a saúde mental desse grupo.
Coordenado pelo professor Caio Maximino, do curso de Psicologia, o estudo reuniu dados coletados entre novembro de 2024 e janeiro de 2025, por meio de questionários online, e teve a participação de estudantes trans e não-binários, com bolsas de pesquisa afirmativas concedidas para integrar o grupo.
Os resultados, divulgados em 29 de janeiro, data que marca o Dia Nacional da Visibilidade Trans, mostram que os níveis de sofrimento psicológico na comunidade trans e não-binária são substancialmente elevados. Segundo o levantamento, 85,4% das pessoas não-binárias pesquisadas apresentavam sintomas que justificavam atenção clínica especializada, percentual significativamente maior do que entre pessoas cis.
Leia mais:Além disso, o estudo aponta que pessoas trans e não-binárias têm muito mais chances de evitar determinados locais ou situações por medo de retaliação, um reflexo da discriminação e do estigma social. No caso de pessoas transgênero, por exemplo, a probabilidade de evitar esses espaços é 23,1 vezes maior do que a de pessoas cis; para não-binárias, esse risco é 5,7 vezes maior.
O relatório reforça a importância de reconhecer que as dificuldades enfrentadas por essa população não são fruto de “uma sensibilidade individual”, mas sim do peso concreto da transfobia, da exclusão e da marginalização social. A divulgação desses dados ajuda a conscientizar a sociedade e a comunidade LGBTI+ sobre a urgência de políticas de apoio, saúde mental e inclusão.
POR DENTRO DO ESTUDO
Entre as pessoas que integraram o projeto está Gabi Dutra Domingos, de 23 anos, estudante de Psicologia. Em entrevista ao Correio de Carajás, ela revelou que, apesar de viver como pessoa trans, não conhecia o conceito de ‘estresse de minoria’ nem sabia como ele se aplica à saúde mental.
“Durante as discussões que fazíamos nas reuniões para entender um pouco sobre o assunto eu fui me aprofundando mais”, explica.
O grupo iniciou o trabalho com rodas de conversa e revisão de literatura. Gabi destaca que encontrou pouca produção científica disponível em português ou em bases nacionais. A maior parte estava publicada em inglês, o que reforçou o caráter pioneiro da investigação.
Após a revisão sistemática e a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética da universidade, a equipe elaborou um questionário disponibilizado ao público geral. O formulário recebeu 249 respostas e foi construído para permitir comparações entre populações cis e trans.
De acordo com Gabi, o estudo utilizou instrumentos como o CRQ-20, voltado à identificação de transtornos mentais comuns, e o inventário UIDAS, que avalia sintomas internalizantes como ansiedade e depressão.
“A gente entende que essa população está mais suscetível a desenvolver problemas por causa de sua vulnerabilidade. E é por isso que reforçamos a importância de alertar os profissionais de saúde sobre essa tendência. Quando uma pessoa sofre preconceito, percebido, antecipado ou internalizado, ela acaba vivendo numa situação de sofrimento maior”, aprofunda a estudante.
A transfobia internalizada, segundo Gabi, foi avaliada por meio de uma escala de autorrelato e se refere ao processo no qual a própria pessoa incorpora estigmas sociais, evita expor sua identidade ou direciona a si mesma pensamentos e falas negativas. A pesquisadora afirma que esse fenômeno é recorrente na Amazônia e demais regiões do país.
No recorte municipal, o cenário ganha nuances complexas. Gabi observa que a presença de organizações da sociedade civil é significativa, mas políticas públicas específicas são praticamente inexistentes em Marabá. Ela afirma que expulsões familiares, falta de encaminhamento adequado e ausência de dados oficiais sobre violências dificultam o entendimento do cenário local.
Para ela, a pesquisa cumpre um papel essencial ao produzir conhecimento e devolver resultados de forma acessível, contribuindo para capacitar profissionais e promover debate público.
“Não há outro lugar senão a universidade para transformar o saber popular em conhecimento científico e, depois, devolver isso à sociedade. Esse estudo tem um potencial enorme: mostra que, sim, existe urgência em dar visibilidade a essa população. A pesquisa é pioneira em Marabá e no Brasil, e pode dar instrumentos para profissionais de saúde reconhecerem as vulnerabilidades de pessoas trans e não-binárias”.
PAPEL DA ACADEMIA

Há dez anos no quadro de docentes da Unifesspa, Caio Maximino de Oliveira afirma que a universidade tem o dever de responder a demandas urgentes da sociedade, em especial quando se trata da violência e da saúde mental de pessoas trans, não-binárias e travestis.
“Quando analisamos saúde mental de pessoas trans, não-binárias e travestis, percebemos algo gravíssimo. Sabemos que o Brasil está entre os países que mais mata pessoas trans do mundo, e isso gera uma ameaça permanente. Esse debate é urgente. A universidade precisa acolher e dar visibilidade a essa realidade”, explica.
Para Caio, o ambiente acadêmico também exerce função essencial de acolhimento e escuta. A elevada presença de estudantes não-binários na instituição demonstra que a universidade pode ser espaço não apenas de ensino, mas de descoberta de identidade e construção de pertencimento.
Ele defende que a diversidade transforma as perguntas que a ciência faz: com vozes diversas – trans, indígenas, quilombolas, entre outras -, se passa a investigar realidades que historicamente foram ignoradas.
Em um país que vive uma onda global de retrocessos conservadores e onde pessoas trans são alvo frequente de discursos de ódio e criminalização, Caio considera fundamental entender como esse contexto afeta a saúde mental, e usar esse conhecimento para fortalecer redes de apoio, acolhimento e cuidado.
“As pessoas trans viraram alvo de ataques violentos e discursos de ódio. Esse contexto transforma a transfobia num problema real para a saúde mental. Esta pesquisa vem para dar visibilidade à dor e fortalecer a resiliência coletiva. É urgente que a universidade abrace esse debate”, reflete.
EXPOSIÇÃO DOS DADOS

Dom Condeixa, professor do curso de Jornalismo da Unifesspa, também integra o grupo de pesquisa e coordena a assessoria de comunicação da universidade. Ele, que é uma pessoa trans masculina, reforça que divulgar os resultados é parte essencial do compromisso acadêmico com a sociedade, especialmente em uma região como Marabá e o sudeste do Pará, onde a visibilidade desse tema costuma ser ainda menor.
Condeixa afirma que, se os dados continuarem restritos ao meio acadêmico, deixam de cumprir sua função social.
“As pesquisas feitas na universidade precisam sair do campus, senão morrem dentro dela. É essencial tornar públicos os resultados, especialmente quando falamos da saúde mental de pessoas trans, travestis e não-binárias. A comunidade costuma ser vista como marginalizada, estigmatizada. Ao compartilhar dados concretos, mostramos o impacto da transfobia e damos visibilidade à dor real dessa população”, reflete.
Ele lembra que muitas vezes se atribui à “marginalização individual” os problemas dessa população, ignorando fatores estruturais como a exclusão social, desigualdades de acesso à saúde, educação e mercado de trabalho, e violência sistemática.
Segundo ele, tornar públicos os dados não é apenas um ato técnico: é uma oportunidade de mobilizar empatia e sensibilizar famílias, escolas, serviços de saúde e gestores públicos para a urgência de políticas de proteção, inclusão e apoio psicológico. Afinal, o que os números de mortes violentas mostram é apenas a ponta do iceberg, antes da tragédia, há sofrimento, medo e invisibilização.
“Estudos sobre saúde mental costumam ser subestimados, mas, quando trouxemos dados sobre pessoas trans, travestis e não binárias, sentimos que era um movimento necessário. Se depender só de artigos acadêmicos, poucos verão. Trazer esses resultados à luz dá esperança de que a sociedade entenda: são seres humanos sofrendo, como qualquer outro”, conclui.
Gabi, Caio e Dom ressaltam que a pesquisa segue em andamento. Já há um preprint publicado e há planos para aprofundar as análises regionais e ampliar a produção de materiais acessíveis ao público. Eles defendem que os dados até agora disponíveis apontam de forma inequívoca para a necessidade urgente de políticas públicas voltadas à saúde mental, ao combate à transfobia e ao fortalecimento de redes de apoio para pessoas trans e não-binárias.
Para a equipe de pesquisadores, este trabalho representa um avanço significativo na produção científica sobre o tema no Brasil e reafirma o papel da universidade como espaço de investigação, acolhimento e transformação social.

