Correio de Carajás

O que o assassinato de João Alberto tem a nos dizer

Imagine um homem branco, de meia idade, vestido de paletó, que discute com uma funcionária de supermercado; ofendida, ela então chama os seguranças para denunciar o problema. A última coisa que eles fariam seria espancar o cliente até a morte. Pois esse foi o destino do aposentado João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, assassinado a socos e pontapés por dois seguranças do Carrefour em Porto Alegre, na noite de quinta-feira (19), véspera do Dia da Consciência Negra.

Não é possível dizer o que exatamente deu origem a toda confusão. A esposa dele, Milena Borges Alves, 43, afirma que ele apenas tirou 7uma brincadeira com 7um dos seguranças do supermercado. Foi o bastante para que tudo terminasse da forma que terminou.

Milena Alves, viúva, diz que também foi agredida ao tentar socorrer o marido/ Foto: Lauro Alves/Agência RBS

Depois de levado para o pátio do supermercado, João Alberto foi agredido covardemente pelos dois homens, um de 24 anos e outro de 30. Mais jovens e em maior número, eles surraram o cliente do supermercado até a morte. Não escolheram o caminho da imobilização; escolheram “finalizar” João Alberto.

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As cenas de sangue foram filmadas e tomaram conta das redes sociais, subindo em plataformas como Youtube, mostrando a violência explícita. Eles só pararam de bater no homem quando já não havia mais o que fazer.

A cena dos socorristas do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), tentando reanimar João Alberto, enquanto seu oxigênio se esvai para sempre é aterradora, reflete uma sociedade agonizante, sob a doença do racismo estrutural.

Não existe racismo

Depois disso, veio a declaração do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão: “Não existe racismo”. Ele lamentou o ocorrido – de forma protocolar – e reafirmou pelo menos três vezes, ao ser confrontado pelos jornalistas, que não há racismo no País. Na visão de Mourão, racismo existe nos EUA, onde negros não andam junto com brancos.

Agora, feche os olhos e imagine por um momento em que, se os dois seguranças que agrediram e mataram João Alberto fossem negros, e ele fosse loiro dos olhos azuis, é muito provável que as pessoas que estavam em volta, apenas filmando e assistindo, teriam entrado na briga para salvar a vítima.

Foi racismo

João Batista Rodrigues, pai da vítima, contou para a Imprensa que foi até o local do crime pouco tempo depois e que ainda conversou com um dos agressores que estava já detido em uma viatura policial. Ele perguntou ao agressor se seu filho tinha roubado alguma coisa, mexido em algo, mas a resposta foi negativa. João Batista diz que o segurança alega ter sido agredido com um soco, mas assegura não ter visto marcas no rosto do homem.

Para ele, além de ser um ato “covarde”, a agressão também foi motivada pelo preconceito racial. “Eu parto da ideia que não é possível [o filho] sofrer a agressão se não tivesse motivo de uma raiva, uma fúria. Para mim, é um ato de racismo”, resume.

Vídeo da agressão que resultou em morte está viralizando nas redes sociais/Foto: Divulgação

As consequências

Os suspeitos são Magno Braz Borges, de 30 anos, e Giovane Gaspar da Silva, de 24 presos em flagrante. Os nomes foram confirmados pela Polícia Civil. Giovane é policial militar e, por isso, foi levado para um presídio militar. O outro é segurança terceirizado da loja e está em uma unidade da Polícia Civil. O crime deve ser investigado como homicídio qualificado.

Segundo informação da Polícia Federal, um dos acusados não possuía o registro nacional para atuar na profissão, mas não informou, no entanto, qual dos dois. O outro tinha o documento registrado. Segundo a nota da corporação, a carteira será suspensa. João Alberto foi espancado pelos dois, após um desentendimento.

O advogado William Vacari Freitas, que vai defender os dois assassinos, disse que a defesa vai aguardar a conclusão das perícias para se manifestar. Eles usaram o direito de permanecer calados durante depoimento à polícia.

Os dois são funcionários de uma empresa terceirizada, Vector Segurança. O Carrefour informou, em nota, que lamenta profundamente o caso, que iniciou rigorosa apuração interna e tomou providências para que os responsáveis sejam punidos legalmente. A rede também chamou o ato de criminoso e anunciou o rompimento do contrato com a empresa que responde pelos funcionários agressores.

Por outro lado, a Brigada Militar, como é chamada a Polícia Militar no Rio Grande do Sul, informou que o espancamento começou após um desentendimento entre a vítima e uma funcionária do supermercado, que fica na Zona Norte da capital gaúcha. A vítima teria ameaçado bater na funcionária, que chamou a segurança.

Na mesma nota, a Brigada Militar explicou que o policial envolvido no brutal assassinato é “temporário” e estava fora do horário de trabalho.

Supermercado na Zona Norte amanheceu fechado nesta sexta-feira/ Foto: Lauro Alves/Agência RBS

Reincidência e boicote

A Coalizão Negra por Direitos, que representa mais de 150 entidades, coletivos e organizações do movimento negro no País, ingressou com uma representação no Ministério Público Federal e no Ministério Público do Rio Grande do Sul, pedindo rigor na investigação do caso.

Para a entidade, a responsável pela tragédia é a empresa Carrefour, que vem reincidindo na prática de racismo. Em 2009, seguranças da mesma rede espancaram um homem negro, alegando terem confundido com um ladrão. Em 2018, outro cliente negro foi agredido, simplesmente por ter aberto uma lata de cerveja dentro do supermercado.

Diante disso, a Coalização pede boicote ao Carrefour, cuja unidade de Porto Alegre onde aconteceu o crime amanheceu fechada e com segurança reforçada nesta sexta-feira. (Chagas Filho, com informações de G1 e UOL)