Até o ano de sua morte, em 1993, Federico Fellini havia conquistado quatro Oscars de melhor filme estrangeiro – o que fez dele o diretor recordista de estatuetas na categoria, junto a seu conterrâneo italiano Vittorio De Sica (1901-1974).
Mas 25 anos após a sua morte, o cineasta tem um legado que vai muito além de prêmios e elogios (embora você vá encontrar mais um aqui, se continuar lendo este artigo).
Afinal, a visão do mestre do cinema italiano era tão singular e hipnótica que rendeu não só um adjetivo no vocabulário cinematográfico (o termo “felliniano”) como também mostrou a gerações de cineastas um caminho a seguir – como experimentar e se arriscar fundindo narrativas confessionais com voos fantásticos da imaginação.
Leia mais:Martin Scorsese, por exemplo, admitiu recentemente que revê “Oito e meio” (1963), obra-prima de Fellini, todo ano.
“‘Oito e meio’ sempre foi um marco para mim, de muitas maneiras. A liberdade, o senso de inovação, o rigor subjacente, o profundo núcleo de desejo, o encantamento, a atração física dos movimentos de câmera e composições.” A cada atributo, parece mais difícil superá-lo.
Não é exagero dizer que Fellini proporcionou uma experiência nova.
Ele levou (e continua levando) os espectadores para destinos muito além do mundo anglófono – que não imaginaríamos em nossas fantasias mais loucas. Ele criou um estilo próprio de cinema que misteriosamente se tornou universal.
Críticas duras
E ainda assim – existe sempre um “porém”, não é mesmo? – não me alegra dizer que a comunidade de críticos sempre teve um relacionamento complicado com Fellini.
Em sua resenha de “Oito e meio”, um devaneio autobiográfico lírico e velado sobre um diretor com bloqueio criativo, a americana Pauline Kael pegou seu rifle de franco-atiradora e colocou o filme na mira:
“A fantasia da vida de alguém é um material perfeitamente bom para um filme, se ela for imaginativa e fascinante por si só, ou se ilumina a vida real de alguma maneira interessante”, escreveu. “Mas ‘Oito e meio’ não é uma coisa nem outra; é surpreendentemente parecido com os sonhos das heroínas de Hollywood, levado por ideias apropriadas de ansiedade freudiana e realização de desejos.”
Kael não foi de modo algum a primeira crítica de peso a rechaçar os filmes de Fellini, descartando-os como embalagens vazias, cujo simbolismo artístico e surrealismo caricato insinuavam uma profundidade que não mereciam.
Tampouco ela seria a última. Na antologia “Have You Seen…” (“Você assistiu…?”, em tradução livre), de 2008, David Thomson escreveu: “Não é que ‘Oito e meio’ pode ou deve durar para sempre, só porque parece”. E não parou por aí. Em outro trecho do livro, Thomson fala sobre “Amarcord” (1974). “Fellini pode fazer uma cena enquanto dorme – mas ele precisa?”.
Sobre “A Doce Vida” (1960), ele afirma: “Nada acontece, exceto pelos elementos cenográficos presunçosos, o alcance épico do simbolismo e metáforas de encher os olhos d’água”. E no capítulo sobre “As Noites de Cabíria” (1957), que apresenta a esposa e musa de Fellini, Giulietta Masina, em uma das performances mais comoventes que já vi, ele escreve: “Pessoalmente, ainda a acho uma atriz sem graça”.
Eu argumentaria que Kael e Thomson não estão apenas errados: seus julgamentos são de um disparate sem tamanho. Com a possível exceção de De Sica, cujo filme “Umberto D” ainda me deixa aos prantos, Fellini sempre foi o cineasta mais introspectivo, mais artístico e, sim, mais profundo do cinema italiano (me perdoem os fãs de Antonioni). Ninguém mistura o amargo e o doce com um toque mais leve. E aparentemente eu não sou o único crítico que acha isso.
Na lista da BBC Culture dos 100 melhores filmes estrangeiros, Fellini aparece em segundo lugar entre os diretores com maior número de filmes na lista. Ele tem quatro, apenas Ingmar Bergman e Luis Buñuel têm mais – cinco cada.
Para aqueles que estão tentando adivinhar, os filmes de Fellini que estão na lista, em ordem decrescente, são: “Oito e meio” (7ª posição); “A Doce Vida” (10ª); “Na Estrada da Vida” (83ª); e “As Noites de Cabíria” (87ª). “Amarcord”, repleto de nostalgia, ficou fora da lista de corte, na 112ª colocação.
Artistas de circo e prostitutas
Nascido em 1920, na cidade litorânea de Rimini, na costa do Mar Adriático (locação a que ele voltaria em filmes como “Amarcord” e “Roma”), Fellini começou sua carreira no cinema como roteirista do clássico neorrealista “Roma, Cidade Aberta” (1945), de Roberto Rossellini.
Uma década e meia depois, seria difícil imaginar alguém virar totalmente as costas para o realismo (neo ou de qualquer outro tipo) como Fellini faria. Seus primeiros filmes inspirados em Rossellini, como “Os Boas-vidas” (1953), foram deixados de lado pelo sentimentalismo picaresco de “Na Estrada da Vida” (1954) e “As Noites de Cabíria” (1957), que mostram um senso inquietante de humanidade entre artistas de circo e prostitutas.
Em seguida, veio, é claro, “A Doce Vida” – um vertiginoso passeio na madrugada pela alta sociedade espiritualmente entorpecida da Via Veneto, em Roma. Uma grande aula sobre o anseio existencial e hedonismo do pós-guerra, alimentada pelo charme libertino de seu enfadado protagonista Marcello (Marcello Mastroianni) e por um punhado de cenas inesquecíveis, como a da estátua de Cristo sendo levada de helicóptero pela cidade e o banho noturno sensual da atriz sueca Anita Ekberg na Fontana de Trevi. A imagem final de uma menina angelical chamando Marcello na praia e tentando se comunicar, enquanto ele não consegue ouvir sua voz, é arrebatadora.
Panteão
“A Doce Vida” catapultaria Fellini para o rol dos diretores mais famosos do mundo.
Talvez não seja surpreendente que também tenha levado o cineasta a uma crise espiritual e artística (como você dá seguimento ao maior sucesso de sua carreira?), que se tornou a base narrativa para seu próximo projeto, “Oito e meio”.
Expressando-se por meio de seu alter ego no cinema – Mastroianni mais uma vez -, Fellini transformou “Oito e meio” em sua obra mais reflexiva – e um dos seus filmes mais engraçados.
Foi como deixar as páginas de um diário em preto e branco abertas para serem lidas por seus fãs, a exumação do fluxo de consciência do passado de um artista na esperança de encontrar a chave para desvendar o futuro em algum lugar dentro desse enigma.
Ele começaria um novo capítulo de sua carreira, onde a narrativa era secundária ao espetáculo. E que espetáculo! Eu poderia assistir seu voo pagão e lisérgico de tapete mágico pela Roma de Nero, em “Satyricon” (1969), uma vez por ano – e assisto.
Não quero sugerir que todos os filmes de Fellini do fim dos anos 1970 merecem o mesmo status de “clássico”. Não é o caso. Mas mesmo os títulos menores que vieram posteriormente oferecem uma variedade de riquezas, se você escutar com atenção as melodias contagiantes do compositor Nino Rota ou observar a magia dos cenários do figurinista Danilo Donati.
Ainda assim, acho que a Academia acertou em 1993, quando concedeu a Fellini um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra.
Ao subir no palco para receber a estatueta, menos de um ano antes de sua morte, o homem de 73 anos foi sincero e direto ao ponto, dizendo grazzie (obrigado) e pedindo a sua esposa, Giulietta, para parar de chorar. O que mais ele precisava dizer? Seus filmes já haviam dito tudo. (Fonte:BBC)