Ela era estudante de Arquitetura; ele, de Música. Mas ambos tinham uma paixão em comum: pedalar. Um hobby que logo viraria um projeto (e estilo) de vida.
A paulista Iris Magalhães e o gaúcho Djoe Rosa, ambos com 28 anos, já percorreram mais de 11 mil quilômetros de bicicleta pelo Brasil em seis anos. Uma jornada sem previsão de volta, compartilhada em tempo real pelo casal nas redes sociais.
Os dois se conheceram na Universidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 2016. E, antes de começarem a namorar, fizeram uma viagem de 40 dias de bicicleta pelo Uruguai.
Leia mais:Quando voltaram para a faculdade, engataram o romance. Mas algo havia mudado dentro deles. O sentimento de pertencimento, segundo Iris, não era mais o mesmo.
“Parecia que a sala tinha ficado pequena, e percebi quão jovem eu era. Falei para o Djoe para irmos ao México de bicicleta. A gente começou a se organizar e amadureceu a ideia”, diz ela à BBC News Brasil.
Mas como viajar para outro país sem antes explorar o Brasil? Eles decidiram então começar a jornada em território nacional.
O plano era sair do Sul, onde moravam, e explorar os seis biomas brasileiros.
“A gente, como brasileiro, tinha a mesma visão estereotipada do Brasil e com preconceitos. Não contávamos que seria tão grande. É um país extremamente diverso.”
Para se preparar financeiramente para a empreitada, os dois começaram a vender brigadeiro na faculdade.
Antes de qualquer coisa, eles precisaram adquirir bicicletas novas, uma vez que as que eles usavam para se locomover haviam sido roubadas no meio do processo.
“(Na) minha bicicleta, paguei R$ 50. É um modelo de 98, e é daquelas de comprar pão na esquina. Comprei de um amigo e fui montando com outras peças. No fim das contas, deve ter custado tudo uns R$ 700”, relembra Djoe.
Já Iris conseguiu uma bicicleta nova por meio de doação. “Fiz um post no Facebook falando do roubo, e um colega me ofereceu. Fui ver a bicicleta e saí pedalando.”
Com as bicicletas novas em mãos, eles colocaram na balança o que seria mais importante para uma viagem longa e de baixo custo. Decidiram investir então em uma boa barraca e em uma câmera de aventura barata para documentar a jornada.
Partida com R$ 67 no bolso
Em fevereiro de 2017, os dois deixaram a universidade para trás para embarcar na aventura.
Saíram de bicicleta de Pelotas, no Rio Grande do Sul, e foram subindo em direção à Serra Gaúcha, passando pelas regiões dos cânions, pelo litoral de Santa Catarina, até chegar a cidades do Sudeste.
Como grande parte do dinheiro que eles juntaram havia sido usado na compra dos equipamentos e acessórios para a viagem, o casal iniciou a jornada com pouco mais de R$ 50.
“Saí com R$ 17 no bolso, e a Iris, com R$ 50”, relembra Djoe.
Eles dizem que a quantia foi suficiente no início. Isso porque, para se capitalizar, os dois faziam apresentações de música nas cidades que paravam — Djoe no violão, e Iris no pandeiro.
Naquela época, seis anos atrás, eles contam que gastavam apenas R$ 300 por mês — a despesa maior, segundo eles, era com alimentação.
Isso só foi possível pelo modo de vida simples e minimalista que adotaram, dizem.
“A gente cozinha nossa própria comida. Dorme na beira de rio, em postos de gasolina, faz voluntariado, fica hospedado na casa das pessoas”, afirma Iris.
Hoje, o gasto mensal do casal aumentou — mas, de acordo com eles, as principais despesas continuam a ser com alimentação e manutenção das bicicletas.
“Atualmente, gira em torno de R$ 1.500 a R$ 2.000 (por mês)”, afirmam.
Para se manter, além das apresentações musicais, o casal já fez capinagem, bico de garçom e vendeu brigadeiro.
Com o passar do tempo, eles viram necessidade de profissionalizar a produção audiovisual para as redes sociais. E decidiram investir em equipamentos novos.
“No começo da viagem, a gente só tinha um celular velho da Iris e uma ‘Go Pobre’ (câmera de aventura barata)”, lembra Djoe.
Para isso, eles contam que trabalharam oito horas por dia em uma fazenda em Brasília durante um mês.
Iris trabalhava como camareira no hotel da fazenda, enquanto Djoe fazia serviços gerais na agrofloresta. Nos finais de semana, Djoe ainda tocava no restaurante da fazenda, e os dois também faziam apresentações musicais em Brasília. Como tinham direito a alimentação e moradia na fazenda, dizem que o gasto deles era praticamente zero.
Depois de juntar dinheiro, foram até o Paraguai comprar câmeras mais modernas.
O investimento deu retorno. Desde 2020, eles ganham dinheiro com o canal do Youtube, que começou a ser monetizado após três anos de postagens.
Também promovem campanhas de financiamento coletivo e têm uma loja virtual na qual vendem adesivos e camisetas do projeto.
Dia a dia na estrada
Os desafios, no entanto, vão muito além da questão financeira. O casal conta que ao se deslocar pedala, em média, 60 quilômetros por dia — e é preciso ter muita disposição.
Para facilitar a jornada, eles utilizam equipamentos próprios para ciclismo.
“Usamos alforges, que são bolsas para bagagem. Não vai nada no nosso corpo, e isso facilita a distribuição do peso. É muito menos desgastante”, explica Djoe.
A alimentação também é estratégica. Como são vegetarianos, eles investem em uma dieta rica em frutas e legumes.
E, para não carregar muito peso extra, contam que levam apenas a quantidade necessária — além de adotar técnicas para evitar que a comida estrague.
“A gente carrega a comida em pedaços de panos para não acelerar o processo de decomposição. Preparamos sanduíche com tomate, pasta de amendoim e, no fim do dia, a gente vai ao mercado e compra comida suficiente para viver uns dois dias.”
A segurança também é pensada cuidadosamente. Eles costumam dormir em postos de gasolina ou pedem para montar a barraca no quintal de moradores locais. Segundo eles, tem muita gente desconfiada, principalmente nas cidades grandes, mas a maioria estende a mão aos cicloviajantes.
E há gratas surpresas no meio do caminho:
“Uma vez, estávamos pedalando, e uma mulher passou buzinando de carro nos chamando para tomar café na casa dela. Nós a seguimos, fomos até lá, tomamos café, depois fomos embora”, relembra Iris.
E como faz para tomar banho? Na maioria das vezes, eles tomam banho em postos de gasolina. Mas nem sempre da forma tradicional — eles contam que, às vezes, precisam usar lenço umedecido, e já chegaram a tomar banho de caneca e regador.
Há seis anos na estrada, o casal já pedalou pouco mais de 11 mil quilômetros, passando por 17 estados brasileiros.
Inicialmente, eles passavam meses em uma determinada cidade, mas essa estratégia estava estendendo demais a viagem.
Agora, o tempo de permanência varia de alguns dias a semanas, de acordo com as atrações locais e o interesse de cada um.
No momento desta reportagem, eles estavam em Porto Velho, Rondônia, e faltava conhecer apenas um bioma da lista: o Pantanal.
O maior desafio — pedalar no ‘deserto’
Ao longo desta jornada, eles já viveram muitas aventuras. E se você perguntar qual foi o trecho mais desafiador do trajeto, eles não vão pensar duas vezes: o Jalapão, no estado do Tocantins.
“Chamam (o Jalapão) de ‘deserto das águas’, e explorar de bicicleta era quase uma loucura. 100% das pessoas diziam que a gente era doido e que íamos morrer”, relembra Djoe.
Eles saíram do Distrito Federal com destino ao Jalapão em 2019. No trajeto entre as cidades de Ponte Alta do Tocantins e Mateiros, foram 210 quilômetros sem praticamente nenhuma estrutura para parada. Era possível avistar somente alguns moradores locais no caminho.
Como era época de seca, eles enfrentaram temperaturas elevadas — com sensação térmica de até 50 graus pela manhã.
E se hidratar não era nada fácil. Eles contam que muitas vezes tinham que percorrer 50 quilômetros até encontrar uma fonte de água. Mas, às vezes, davam sorte de contar com a generosidade de guias de turismo que passavam de carro.
“Foi a galera do turismo que nos deu apoio. E, inclusive, teve um guia que nos deixou comida.”
Mas o mais desafiador, segundo o casal, era pedalar naquele terreno. Eles tiveram que descer das bikes.
“A gente empurrava as bicicletas e demorava quatro horas para andar três quilômetros.”
Quando chegavam na casa de moradores locais, ouviam até que deviam jogar as bicicletas fora porque iriam atrapalhar a travessia.
Eles lembram, no entanto, que também conseguiram caronas inesperadas ao longo do trajeto.
Foram 40 dias nessa região do país. E, mesmo com a dificuldade para pedalar, o casal diz que se sentiu completo.
“A gente estava tão feliz, as pessoas foram tão incríveis. A paisagem é muito bonita, uma estrada longa de areia e nada dos dois lados. Várias vezes a gente estava lá, montava a barraca, e à noite não passava ninguém”, relembram.
Outros perrengues (e perigos) na estrada
Esse não foi único perrengue que eles passaram. Embora o clima possa ser, na opinião deles, um dos principais contratempos.
Eles lembram que pedalar na chuva também é complicado — e não é considerado tão seguro. E, às vezes, as condições meteorológicas se somam a imprevistos, como um pneu furado.
“No estado de São Paulo, estava chovendo muito uma vez, e o pneu da bicicleta da Iris estourou, e eu tive que ficar literalmente protegendo com o guarda-chuva enquanto ela consertava o pneu. É doideira.”
Outra vez, sob um sol forte no sertão do Rio Grande do Norte, o pneu da bicicleta de Iris estourou oito vezes — eles lembram que estavam muito cansados, quase desidratando. Mas não teve outro jeito a não ser consertar.
Além disso, em muitas rodovias os motoristas de carros e caminhões não respeitam os ciclistas.
Uma vez, logo no começo da viagem, Iris sofreu um acidente. Ela freou bruscamente enquanto pedalava, e a bicicleta escorregou entre as pedras. Ela bateu a cabeça e desmaiou.
Como Djoe já estava um pouco mais à frente, ele não viu o que aconteceu. Quando parou, ele contou até 100, e como ela não apareceu, começou a voltar. Foi quando se deparou com Iris caída na estrada, sendo ajudada por um homem.
“Eu não lembrava das coisas, perguntavam se eu tinha sofrido um acidente, e não lembrava. Minha cabeça estava um pouco machucada, e não sabia direito o que tinha acontecido.”
Djoe bateu na porta de um casal de idosos, que inicialmente ficou desconfiado, à procura de ajuda:
“Eles pediram para eu levar a Iris até lá, e eu levei. Eles viram que ela estava machucada e chamaram o SAMU. Ela foi atendida no hospital e deu tudo certo”, relembra Djoe.
No fim das contas, eles acabaram passando quase quatro dias na casa desse casal.
Depois do acidente, no entanto, Iris ficou insegura de voltar para a estrada.
“Nessa época, comecei a questionar se aquilo era para mim, fiquei pensando, pensando. Foi difícil, mentalmente falando. Precisei superar aquilo para conseguir seguir pedalando.”
Perrengues e acidentes à parte, eles dizem que as paisagens de tirar o fôlego são sem dúvida uma recompensa. Mas afirmam que o que mais os marcou, ao longo desses anos todos de estrada, foram as pessoas.
Eles acreditam que conseguiram ver de perto a pluralidade do Brasil.
“A gente percebeu o quão incrível é o nosso país, e como de fato é nossa terra, nosso povo. Uma história sofrida. É quase inacreditável que tenha tudo isso de uma vez. O bonito no Brasil é a diversidade”, resumem.
Aventura pela América do Sul
Depois de quase seis anos viajando pelo Brasil, Djoe e Iris pretendem seguir para os Andes — a ideia é explorar os países da América do Sul a partir do segundo semestre.
O casal quer começar a viagem pela Bolívia, atravessar para o Peru e depois avançar para o Equador e a Colômbia.
Eles estão chamando o projeto de “Coragem nos Andes”, uma analogia com o nome do perfil que têm nas redes sociais — “Coragem na Bagagem” (@coragemnabagagem).
E lançaram uma campanha de financiamento coletivo para ajudar a comprar equipamentos e roupas próprias para baixas temperaturas.
“Essa fase internacional vai demandar equipamentos mais técnicos e roupas apropriadas, que são caras fora do país. Pedalar a 3 mil metros de altitude é diferente”, explicam. “Vamos enfrentar um frio extremo.”
O plano deles é completar esse roteiro em um ano — e eles afirmam que não pensam, por enquanto, em voltar ao modo de vida tradicional.
(Fonte: G1)