Não consigo conceber cenário possível em que meu fôlego sustentaria a primeira vez em que ouvi O mundo é um Moinho, do Cartola. A vértebra do destino que aquela flauta, aquele clarinete e os violinos preparavam para a profecia que encontraria meu ser. Eu não havia chegado aos 16 quando labirintei sobre moinhos, lâminas afiadas e em sonhos se desfazendo e, hoje, aos 25, é difícil absorver esse samba de 1976 sem imaginar que as mãos enrugadas deste sambista seguram as minhas e se aproxima do meu ouvido para dizer: “Ainda é cedo, amor” todas as vezes que aperto o play do Spotify.
Ainda é cedo, amor, mal começaste a conhecer a vida…
É cedo mesmo, Cartola, mas sinto como se já tivesse vivido uns 50 anos. Talvez seja a pressa de quem cresce sem uma mão para guiar, uma pressa de entender tudo, de ter o controle. Mas, essa canção – essas palavras que não pedi – me lembram que o mundo, com todos os seus mistérios, continua apenas se revelando. Como pode algo parecer tão profundo e, ao mesmo tempo, tão distante? Talvez seja assim que os conselhos de um pai soariam, caso… Uma verdade que corta, uma verdade que parece dura demais, mas que, no fundo, só quer o meu bem. E, por um momento, eu acabo aceitando que talvez eu esteja só começando, mesmo quando sinto que já vivi demais.
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E como não me iludir? Desde pequena, fiz da ilusão meu chão e meu céu, meu abrigo, minha casa. E agora me pede para não me iludir? É cruel, como uma onda que não me deixa respirar, mas que insiste em me ensinar. Ainda há estrada, ainda há curvas que não prevejo, ainda há o inesperado que pode me tombar. Tento engolir essa verdade amarga: o mundo que imaginei é apenas um fragmento do que ainda está por vir. A estrada pode ser longa e tortuosa, mas é minha – e saber disso é quase como sentir que alguém, finalmente, está cuidando de mim.
A tua vida, querida, está a um ponto de desabrochar
“Desabrochar.” Essa palavra soa como uma promessa, um sussurro de que o amanhã guarda algo belo. Será possível que todo esse caos, essa ansiedade, essa incerteza, esteja apenas preparando o terreno? Talvez eu ainda esteja na fase das raízes, enterrando fundo o que sou, me firmando para um dia florescer. É estranho pensar assim, pois a dor não parece uma parte natural da beleza. Mas Cartola, você diz que sim, que estou prestes a desabrochar – e talvez esse desabrochar inclua aceitar que não é preciso entender tudo. Apenas confiar.
E a tua inocência, querida, vai desvanecer
Inocência… Que palavra cruel e delicada, Cartola. Saber que ela vai sumir já me machuca tanto, como se eu estivesse perdendo algo que nunca tive realmente. Mas também me sinto aliviada. A inocência, com sua doçura, me protegeu da realidade, mas, ao mesmo tempo, me prendeu em ilusões que me feriram e ainda ferem. Talvez, Cartola, como um pai que observa de longe, você soubesse que esse momento chegaria, e que eu precisaria encarar o mundo com olhos mais duros, menos encantados. Eu só não esperava que alguém fosse me avisar.
Mesmo teu amor, amargo, que te trago, afasta o que é teu mais lindo sonho
Há uma tristeza tão profunda nessas palavras que sei que você sabia da dor de perder um sonho – não qualquer sonho, mas o mais lindo. Você parece dizer que até o amor, tão doce e desejado, pode ter seu lado amargo, capaz de corroer o que há de mais precioso. Não sei ao certo se esse conselho é um aviso ou um pedido de cuidado. Talvez ambos. Talvez ele queira me preparar para o fato de que o amor é uma lâmina de dois gumes, que pode tanto cortar quanto acariciar. E eu me pergunto se conseguirei aceitar esse amargo, esse risco, sem me perder no caminho.
Preste atenção, querida, embora eu saiba que estás resolvida
Quantas vezes pensei de mim mesma estar resolvida, como se essa certeza fosse um escudo. Mas agora, ao ouvir isso em palavras que não são minhas, percebo o quanto ainda carrego de teimosia e orgulho. Você, Cartola, já sabia que a vida não é sobre certezas, mas sobre aprendizado. Por isso, esse “preste atenção” soa como uma prece, como um abraço invisível de quem se preocupa, de quem sabe que, por mais que eu me julgue forte e pronta, a vida tem muito a ensinar. E aceito, como um lembrete de que posso estar decidida, mas jamais terminada.
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Ah, essa imagem tão doída, como se você estivesse vendo os pedaços de mim espalhados por cada escolha, cada erro, cada perda. Nas esquinas da vida, é como se eu estivesse deixando rastros de quem fui, fragmentos que jamais se juntarão. É triste, mas, ao mesmo tempo, belo, porque talvez esse seja o caminho para realmente viver: deixar partes de mim para trás, para que novas possam surgir. A vida, então, não é uma linha reta, mas um percurso onde cada curva leva um pedaço de nós. Aceito essa perda, mas agora com a sensação de que cada pedaço caído faz parte de uma jornada maior.
Em pouco tempo não serás mais o que és…
No começo, ao ouvir isso, senti medo. Quem eu serei, então, Cartola? Quero acreditar que a mudança é inevitável, que a essência é a única constante, e que meu eu de hoje é apenas uma passagem. O que sou agora está destinado a desaparecer, e, no fundo, isso é uma libertação. Não preciso me prender a uma identidade fixa, a uma imagem de mim mesma que envelhece com o tempo. Bom, não serei mais a mesma, e isso, enfim, me traz paz. Porque, talvez, tudo o que eu precisava era saber que alguém já viveu essa mesma dor e encontrou, de algum modo, beleza no que é passageiro.
Thays Araujo é jornalista e dá primeiros passos na arte de produzir crônica
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.