Gentrificação é o conceito para a valorização de áreas que antes eram desvalorizadas. Ou seja, é o movimento de transformação de paisagens urbanas. Geralmente ocorre em bairros que começam a receber movimentos de revitalização e, consequentemente, cresce a procura por imóveis naquele determinado local. Com isso, as populações mais pobres se sentem inibidas, intimidadas e constrangidas e se veem “obrigadas” a se mudar para mais longe.
Em Marabá, o Bairro Francisco Coelho, popularmente conhecido como Cabelo Seco, tem recebido olhares tentadores nos últimos tempos. Propostas financeiras chegam a todo momento perguntando: “você venderia essa casa?”, inclusive, alguns imóveis já podem ser vistos com placas de vende-se. Alguns já foram comercializados e os antigos moradores tangidos para mais longe.
A requalificação do Bairro com a recente ampliação da Orla no encontro dos rios tem sido uma faca de dois gumes.
Leia mais:Ana Luísa Silva, filha de Marabá e nascida e criada no Cabelo Seco, conta que conversa, quase que diariamente, com seus vizinhos e amigos da comunidade para que não vendam seus imóveis.
“Quando era feio ninguém queria, e agora que está bonito todo mundo quer. O que vai acontecer se as pessoas de fora comprarem nossas casas? Não vai mais ser o Cabelo Seco que a gente tanto quis. Lutamos pra tornar isso aqui um lugar lindo e agora um povo que nem queria nos ver quer tomar o nosso lugar?”, desabafa com certa indignação.
Para a moradora – e tantos outros do bairro – a orla sempre foi uma extensão da casa, um verdadeiro quintal. Ali ainda se encontra a verdadeira raiz de Marabá, tendo moradores descendentes dos primeiros habitantes. Com isso, Ana Luísa diz que segue lutando e pedindo para que resistam aos pedidos tentadores de compra dos imóveis e, alguns com placas, são heranças.
“Eles querem comprar casas aqui na orla, de frente para o rio. Aqui que é o fluxo de gente e aqui que é bonito. Já pensou acordar e ver esse rio todo dia de manhã? O que a gente quer mais? Nada”, ela mesma responde.
Questionada se os mais jovens – que possuem outra mentalidade – não acabariam cedendo às propostas, já que muitos estão ficando com casas como forma de herança. Ana Luísa afirma que não, e ressalta que eles têm levantado a bandeira, constantemente, sobre o fortalecimento das raízes do Cabelo Seco.
Por muito tempo, visto como uma área marginalizada, muitos moradores de Marabá que antes tinham preconceito com o local, hoje utilizam o Mirante para passear e levar os visitantes.
“As pessoas só iam até a Praça São Félix, ninguém passava pra cá. Tinham resistência e não vinham até aqui. Hoje em dia, o fluxo de pessoas aumentou muito aqui no bairro e estamos nos adaptando a essa nova realidade. São muitos turistas”, comemora.
Sobre essa adaptação, Ana Luísa fala sobre as melhorias dos imóveis. Para ela, com o fluxo intenso de visitantes, principalmente nos finais de semana, as casas acabaram ficando mais expostas. Diante dessa mudança, moradores estão fazendo pequenas reformas e deixando as casas mais bonitas.
“Esse era o nosso quintal, onde a gente estendia a roupa. Com a nova orla, estamos com outra realidade. E agora, acabamos ficando com duas frentes de casa, uma pro lado de lá e outra pra cá, de frente pra orla. Todo mundo ajeitando suas casas, vendendo suas batatinhas fritas, pasteis, suco. Aí chega gente e pergunta se a gente não quer vender. Faço parte do grupo de mulheres do bairro, e a gente sempre fala sobre isso. Não vamos vender. Aqui está a nossa raiz”, finaliza.
“Eu não posso demonizar o progresso”, diz Zequinha
José de Jesus Marques de Sousa, o Mestre Zequinha, é outro que nasceu e cresceu no Bairro Francisco Coelho. Ele conta que viveu sua infância da melhor forma como toda criança daquela época, empinando papagaio, rodando pião e tomando banho de rio.
Questionado sobre a crescente procura pela compra de imóveis no bairro, ele afirma que isso é resultado do progresso e que certamente aconteceria, mais cedo ou mais tarde.
“Não posso demonizar o progresso. Foi muito bom para Marabá. Mas, quem tem amor mesmo e quer manter a essência não vende. Claro que, quem acha que a vida vai melhorar se vender, se for pra um lugar melhor, que venda, eu apoio. Mas, eu mesmo não penso em vender minha casa, e acredito que a maioria dos moradores daqui não vai vender”, afirma.
Zequinha enfatiza que, caso apareçam novos moradores, as futuras gerações não irão nem saber contar a história do bairro.
“É importante conversar com os mais novos sobre as raízes e tradições do bairro, senão daqui a pouco ninguém vai saber por que do nome Cabelo Seco. “Não tem dinheiro que pague a minha casa. Ganhei do meu pai e da minha mãe”.
A rezadeira do bairro jura que não sai e não vende sua casa
Aos 75 anos, Josefa Marques mora até hoje na casa em que nasceu no Bairro Cabelo Seco. Filha de mãe lavadeira, a caçula dos irmãos ganhou a casa de herança e afirma que não existe dinheiro nenhum que a faça vender o imóvel.
“Muitos aparecem perguntando se não quero vender, dizem que vão dar um bom dinheiro. Botam muito dinheiro na gente para querer comprar nosso pedaço de terra. Mas, não tem dinheiro que pague a minha casa. Ganhei do meu pai e da minha mãe. Vender aqui, nem pensar”, garante dona Zefinha, como é conhecida a rezadeira do bairro.
Com muitos netos e bisnetos, ela disse que já reuniu a família e avisou que não quer que eles vendam a casa quando ela falecer. Com um terreno enorme, ela pede que cada um construa sua casa por lá, mas que não venda.
“Já avisei: ‘não vendam a minha casa, senão vocês vão ver o que vou fazer lá do túmulo. Vou levantar de lá e puxar a orelha de vocês’”, ameaça entre gargalhadas, mas também de forma firme.
Sobre o aumento do movimento de turistas e visitantes na redondeza, Zefinha diz que adora. Revela que sonhou com uma orla bonita da forma como está agora, mas que tudo isso deve ser desfrutado primeiro por quem nasceu e mora lá, depois pelos visitantes.
“Quero até começar a mexer na minha casinha também, pra deixar mais arrumada. A gente mora num paraíso”, fala, enquanto olha para o Rio Tocantins, de frente para sua residência.
“Só pensaram na economia e não na ecologia”, diz Dan Baron
Dan Baron, idealizador do projeto Rios de Encontro, no Bairro Cabelo Seco, vive e convive na comunidade há mais de uma década. Por lá fincou suas raízes (mesmo que estrangeiras) e fez do local seu lar. Além disso, é um colaborador, estudioso que valoriza as raízes do bairro e luta para manter crianças e jovens mais apegados a ela.
Envolvido em projetos sociais e culturais com os moradores, Dan Baron se ausentou no período da pandemia da covid-19. Mas, está de volta com novos projetos.
Procurado pelo CORREIO para avaliar as mudanças estruturais do bairro, ele relembra da escola que ficava localizada na Pracinha do Cabelo Seco. “Lá, mães e professores comemoravam as festas tradicionais culturais, ensaiávamos para os espetáculos da AfroMundi. A comunidade fala até hoje que transformamos a escolinha em um centro cultural. Derrubaram tudo para fazer um estacionamento. Mas, lógico só pensaram na economia e não na ecologia. Essa decisão simboliza muito todas essas mudanças”, assinala ele, fazendo uma reflexão sobre o assunto.
O certo é que o Bairro Francisco Coelho, o popular Cabelo Seco, tem passado por transformações estruturais e sociais, com a comunidade se adaptando a uma nova realidade. Resta saber se as raízes continuarão fincadas onde tudo começou.
Do cabelo pixaim ao paraíso do encontro dos dois rios
O bairro “Cabelo Seco” é considerado marco inicial da cidade de Marabá e localiza-se na confluência dos rios Tocantins e Itacaiunas. Era por meio desses dois rios, que se realizava nos primeiros anos do século XX, a entrada de pessoas e a compra e venda de mercadorias.
Seu nome oficial é uma homenagem ao fundador da cidade de Marabá, Francisco Coelho, porém, é mais conhecido por “Cabelo Seco” por se referir, dentre outras explicações populares, ao fenótipo das primeiras moradoras, fazendo menção ao cabelo “pixaim” das mulheres, marcada pela descendência africana.
A presença da população negra no bairro do Cabelo Seco se fez também nas diversas manifestações culturais que foram construídas socialmente ao longo da história do Município de Marabá, como a dança do Boi Bumbá, Quadrilha Junina, a Festa do Divino, Festa de Santos Reis, São Lázaro e o Cordão de Pássaro. Além de uma forte presença das religiões de matriz africana, como o Terecô.
Nos últimos anos, todavia, tem-se observado uma diminuição dessas manifestações dentro do bairro. Com tantas histórias ao longo da história, tem sido utilizado como campo de pesquisa por diferentes áreas do conhecimento no Pará.
O bairro tradicionalmente é território de lavadeiras, parteiras, rezadeiras e pescadores. Que seja de orgulho dos seus moradores, também!
(Ana Mangas)