Correio de Carajás

Mulheres na mineração paraense: crescimento e persistência da divisão sexual do trabalho

A Amazônia brasileira, em particular o estado do Pará, consolidou-se nas últimas décadas como uma fronteira mineral de relevância global, impulsionada por vastas reservas de minério de ferro, bauxita, cobre e outros recursos estratégicos. Este processo de expansão extrativa, capitaneado por grandes corporações e projetos de infraestrutura de escala planetária, como o complexo de Carajás, tem sido um motor do crescimento econômico regional. Contudo, a narrativa do progresso econômico frequentemente oculta as complexas e contraditórias dinâmicas sociais e de trabalho que se desenrolam em seu cerne. O avanço da fronteira mineral na Amazônia não se dá em um vácuo social; ele reconfigura territórios, relações de poder e, de maneira crucial, o mercado de trabalho, reproduzindo e, por vezes, aprofundando desigualdades históricas.

Neste contexto, a análise da inserção da força de trabalho feminina no setor da mineração emerge como um campo de estudo particularmente revelador. Tradicionalmente concebida como um domínio eminentemente masculino, associado à força física, ao risco e a uma cultura organizacional masculinizada, a indústria extrativa tem apresentado, nas últimas décadas, um aumento quantitativo da participação de mulheres em seus quadros funcionais. Este fenômeno, embora aparentemente positivo e alinhado aos discursos corporativos contemporâneos de diversidade e inclusão, demanda uma análise crítica. É preciso questionar se este crescimento numérico representa uma transformação estrutural nas relações de gênero dentro do setor ou se, ao contrário, ele se manifesta através de novas e mais sutis formas de segregação ocupacional e de perpetuação da divisão sexual do trabalho.

O presente estudo se propõe a investigar essa problemática, analisando a evolução dos vínculos formais de trabalho nas indústrias extrativas do estado do Pará durante o período de 2006 a 2021. Com um foco específico nas dinâmicas de gênero, o objetivo central é compreender como se deu o crescimento da participação feminina, examinando sua distribuição ocupacional, os padrões de remuneração em comparação com os homens e os limites estruturais e simbólicos que condicionam essa inserção. A pesquisa parte da hipótese de que, apesar do aumento expressivo no número de mulheres empregadas e de uma aparente convergência salarial, a lógica fundamental da divisão sexual do trabalho permanece intacta. Argumenta-se que a integração feminina ocorre de maneira seletiva, concentrando-se em funções de apoio, administrativas ou “feminilizadas”, que, embora essenciais para a operação, se mantêm à margem das atividades centrais de produção, historicamente valorizadas e ocupadas por homens.

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Para sustentar esta análise, o estudo se baseia em dados secundários da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), que permitem um mapeamento detalhado do mercado de trabalho formal. Através de uma abordagem descritiva e analítica, serão exploradas as tendências de crescimento do emprego, a evolução da participação feminina, as disparidades salariais e a distribuição de homens e mulheres entre os diferentes grupos ocupacionais definidos pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Ao fazer isso, busca-se oferecer uma contribuição para o debate sobre gênero e trabalho na Amazônia, problematizando a narrativa de modernização e inclusão e revelando as persistentes estruturas de desigualdade que moldam a realidade do trabalho na fronteira mineral paraense.

Marco Teórico: A Divisão Sexual do Trabalho em Território Masculinizado

A análise da inserção feminina na mineração não pode prescindir de um arcabouço teórico que ilumine as estruturas profundas que organizam o mundo do trabalho a partir de clivagens de gênero. O conceito de divisão sexual do trabalho, notavelmente desenvolvido por teóricas como Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007), oferece a lente fundamental para esta investigação. Segundo as autoras, essa divisão não se resume a uma mera distribuição de tarefas diferentes para homens e mulheres, mas se assenta sobre dois princípios cardeais e interligados: o princípio da separação e o princípio da hierarquização.

O princípio da separação designa a existência de “trabalhos de homem” e “trabalhos de mulher”. Essa distinção é socialmente construída e naturalizada, associando aos homens as tarefas ligadas à produção, à técnica, à força e ao espaço público, enquanto às mulheres são relegadas as atividades relacionadas à reprodução, ao cuidado, à administração do doméstico e a funções de suporte no espaço produtivo. O princípio da hierarquização, por sua vez, atribui um valor social e econômico superior aos trabalhos designados como masculinos em detrimento daqueles considerados femininos. Essa desvalorização não é intrínseca à natureza do trabalho, mas sim ao gênero de quem o executa.

A indústria da mineração representa um exemplo paradigmático de um setor onde esses princípios operam de forma explícita e rigorosa. Historicamente, a mineração foi construída como um reduto da masculinidade, um espaço onde a identidade do trabalhador se forja na capacidade de suportar condições adversas, no domínio da maquinaria pesada e no exercício da força física. Como apontado por Macedo et al. (2012), os espaços produtivos da mineração são carregados de simbolismos masculinos, onde a presença feminina é frequentemente percebida como um “corpo estranho”. Para serem aceitas e legitimadas, as mulheres que adentram este setor muitas vezes necessitam passar por um processo de adaptação a normas e comportamentos masculinizados, negando ou suprimindo características associadas ao feminino, o que, em última análise, reforça a hegemonia do modelo androcêntrico.

Adicionalmente, a análise deve considerar as especificidades do contexto amazônico. A expansão da mineração na região, conforme discute Suzy Koury (2012, 2014), está intrinsecamente ligada a um modelo de desenvolvimento baseado em grandes projetos de extração de commodities para exportação. Este modelo cria economias de enclave, com estruturas produtivas altamente concentradas e especializadas, que geram vínculos empregatícios caracterizados pela instabilidade, alta rotatividade e pela prevalência da terceirização. A precarização do trabalho, portanto, não é um efeito colateral, mas um componente estrutural deste modelo. Neste cenário de fragilidade dos vínculos, as mulheres, que já enfrentam barreiras históricas e culturais, tornam-se ainda mais vulneráveis, sendo frequentemente absorvidas por postos de trabalho periféricos, temporários e com menor proteção social e sindical. A combinação da forte cultura masculina do setor com a lógica predatória do capital extrativo na fronteira amazônica cria, assim, um terreno complexo e desafiador para a construção de uma trajetória profissional sólida e equitativa para as trabalhadoras.

Metodologia da Pesquisa

Para atingir os objetivos propostos, a presente pesquisa adotou uma metodologia de caráter descritivo e analítico, fundamentada na análise de dados secundários quantitativos. A principal fonte de informação utilizada foi a base de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), mantida pelo Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil. A RAIS constitui um censo anual do mercado de trabalho formal, compilando informações detalhadas sobre vínculos empregatícios, remunerações, características demográficas dos trabalhadores e especificidades dos estabelecimentos empregadores. Sua abrangência e granularidade a tornam uma ferramenta indispensável para estudos sobre a estrutura e a dinâmica do emprego no país.

O recorte temporal da análise compreende o período de 2006 a 2021. Esta janela de dezesseis anos foi selecionada por ser representativa de um ciclo de intensa expansão da atividade mineral no Brasil e, particularmente, no Pará, abarcando fases de alta nos preços internacionais de commodities e de consolidação de grandes projetos de investimento no estado. Este intervalo permite, portanto, observar com clareza as transformações de médio e longo prazo na composição da força de trabalho do setor.

As variáveis centrais selecionadas para a análise foram: o número total de vínculos formais nas indústrias extrativas (desagregado por Brasil e Pará); a distribuição dos vínculos por gênero (masculino e feminino); a remuneração média mensal (convertida em múltiplos do salário mínimo vigente em cada ano, para permitir a comparabilidade temporal); e a classificação dos postos de trabalho segundo os grandes grupos da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO 2002).

O procedimento analítico envolveu a extração e o tratamento dos dados para a construção de séries históricas e indicadores. Foram calculadas taxas de crescimento, proporções de participação feminina no total de vínculos, a razão entre as remunerações médias de mulheres e homens, e a evolução da distribuição percentual de homens e mulheres nos diferentes grupos ocupacionais. A análise comparativa entre a realidade do Pará e a média nacional permitiu contextualizar as tendências locais, enquanto a desagregação por ocupação foi crucial para testar a hipótese sobre a persistência da segregação no mercado de trabalho. A interpretação dos dados quantitativos foi realizada em constante diálogo com o referencial teórico sobre a divisão sexual do trabalho e os estudos sobre as particularidades do desenvolvimento na Amazônia, buscando transcender a mera descrição dos números para oferecer uma análise qualitativa e crítica dos fenômenos observados.

 

Análise de Resultados e Discussão

A análise dos dados da RAIS para o período de 2006 a 2021 revela um cenário complexo e multifacetado, marcado por um crescimento quantitativo notável que coexiste com a manutenção de desigualdades estruturais profundas. A discussão dos resultados será organizada em torno de quatro eixos principais: a expansão e concentração do emprego no Pará, a dinâmica da participação feminina, o paradoxo da remuneração e a segregação ocupacional.

Entre os anos de 2006 e 2021, o número de vínculos nas indústrias extrativas no estado do Pará apresentou um crescimento expressivo, passando de 7.861 para 25.062 vínculos formais. No mesmo período, os vínculos totais no Brasil também cresceram, de 183.188 para 243.993. Esse avanço demonstra a consolidação do Pará como uma das principais regiões mineradoras do país. A participação proporcional do estado em relação ao total nacional mais do que triplicou nesse intervalo, indo de 1 para 3,18, como se vê no gráfico 01, o que evidencia um processo de concentração regional da atividade extrativa, especialmente impulsionada pelos grandes projetos de mineração situados no Sudeste paraense, como o complexo de Carajás, operado pela Vale S.A.

Gráfico 01: Crescimento dos vínculos totais no Pará e Brasil em relação – 2006 a 2021, 2006 = 1.

Contudo, esse crescimento quantitativo não se traduz automaticamente em melhoria das condições de trabalho ou em inclusão social efetiva. Conforme discutido no artigo “Meio ambiente e condições de trabalho na Amazônia Oriental”, o avanço da mineração no Pará está fortemente associado à intensificação da terceirização, à precarização das relações laborais e ao aumento da vulnerabilidade jurídica dos trabalhadores. Muitos dos postos gerados são instáveis, com ausência de direitos básicos, jornadas exaustivas e registros frequentes de acidentes de trabalho, sobretudo entre terceirizados. Assim, o crescimento dos vínculos reflete uma expansão concentrada, voltada ao aumento da produção e do lucro, mas sustentada por um modelo de exploração que reproduz desigualdades históricas e fragiliza a estrutura de proteção ao trabalho.

Entre 2006 e 2021, o número de mulheres empregadas nas indústrias extrativas no estado do Pará aumentou significativamente, passando de 1.006 para 4.474. O gráfico 2 evidencia que, em termos proporcionais, a participação feminina no setor extrativo paraense cresceu de 12,8% para 17,9%, superando a média nacional, que passou de 9,7% para 13,8% no mesmo período. Esses números indicam um avanço relevante na presença das mulheres nesse setor historicamente masculinizado, o que pode ser refletido pelos esforços de inclusão e políticas corporativas que buscam ampliar a diversidade no mercado de trabalho. No entanto, esse crescimento quantitativo deve ser analisado com cautela, pois a maior presença feminina não significa, necessariamente, uma transformação estrutural das condições de trabalho ou das relações de poder na mineração.

Gráfico 02: Participação dos vínculos femininos em relação ao total, PA e BR – 2006 a 2021.

Temos que levar em consideração que o aumento da participação feminina na mineração no Pará pode ser explicado, em parte, pelas características da própria localidade do estado. Em regiões remotas e de intensa atividade extrativa, como o Sudeste Paraense, a escassez de mão de obra especializada leva as empresas a recrutar trabalhadoras locais, muitas vezes sem exigir experiência prévia, o que amplia as oportunidades para as mulheres. Essa dinâmica está relacionada tanto à interiorização das operações mineradoras quanto à necessidade de preencher vagas em setores de apoio e serviços que circundam a atividade principal, contribuindo para a presença crescente de mulheres nesse setor historicamente masculinizado.

Conforme apontado nos textos “Relações de Gênero e Subjetividade na Mineração” e “A divisão sexual do trabalho na mineração”, a mineração continua sendo marcada por uma lógica fortemente masculina, que limita a atuação das mulheres a funções específicas, geralmente administrativas, de apoio ou consideradas “leves”. A inserção feminina ainda enfrenta barreiras culturais e institucionais, com exigências de comportamentos masculinizados para que as mulheres sejam minimamente aceitas e reconhecidas no ambiente de trabalho. Além disso, a concentração feminina em áreas de menor visibilidade ou prestígio reforça a sua invisibilidade dentro da estrutura produtiva e perpetua a divisão sexual do trabalho. Assim, mesmo com o aumento percentual de vínculos femininos, persiste a necessidade de transformar não apenas os números, mas também os valores e práticas organizacionais que sustentam a desigualdade de gênero no setor extrativo.

O gráfico 03 apresenta os dados que mostram a trajetória da participação do estado do Pará no total de vínculos empregatícios nas indústrias extrativas do Brasil entre os anos de 2006 e 2021. Os dados mostram um crescimento significativo no número absoluto de vínculos e na participação relativa. No ano de 2006, o Pará registrou aproximadamente 7,9 mil vínculos totais no setor, o que representava 4% do total do país. Já em 2021, esse número chegou a cerca de 25mil vínculos, atingindo 9,8% de participação no setor extrativo brasileiro. No mesmo período, o número de vínculos femininos no Pará foi de 1mil para cerca de 4,5mil, com a participação das mulheres dentro do estado crescendo de 12,8% para 17,9%. Essa perspectiva reflete uma expansão do setor no estado, acompanhada por um leve aumento na inserção das mulheres.

 

Gráfico 03: Participação dos vínculos paraenses em relação ao Brasil, no total e sexo feminino – 2006 a 2021.

O gráfico analisado evidencia claramente a trajetória de crescimento da participação do Pará no setor extrativo nacional por meio de duas curvas: uma representa a participação total do estado em relação ao Brasil (%T_PA/T_BR) e a outra, a participação feminina (%F_PA/F_BR). Ambas apresentam uma tendência de crescimento constante ao longo dos anos. Um ponto de destaque ocorre em 2009, quando o avanço da participação feminina supera, pela primeira vez, a taxa de crescimento geral. Já em 2021, as mulheres passaram a representar 13,8% dos vínculos formais no setor extrativo nacional, um salto significativo em comparação aos 9,7% registrados em 2006. Esses dados mostram uma evolução importante na presença feminina em um setor historicamente masculino e desigual. O Pará, por sua vez, acompanha essa tendência, refletindo o crescimento do setor mineral no estado.

Apesar desse crescimento numérico, os dados não podem ser interpretados apenas pela ótica da quantidade. É essencial considerar como se organiza a estrutura produtiva do setor mineral na Amazônia, marcada por alta rotatividade e pouca fixação da força de trabalho. Trata-se de uma economia voltada à extração de produtos primários para exportação, o que, como destaca Suzy Koury (2014), contribui para a fragilidade dos vínculos empregatícios, geralmente curtos e instáveis. Nesse contexto, o aumento dos vínculos totais e femininos não necessariamente indica uma melhoria nas condições de trabalho ou na permanência das pessoas empregadas, podendo apenas refletir um maior volume de contratações temporárias, algo já característico de um setor com baixa capacidade de retenção de mão de obra.

A crescente presença feminina no setor não deve ser confundida com uma inserção plena no mercado de trabalho. A instabilidade e a rotatividade afetam ainda mais as mulheres, que enfrentam barreiras simbólicas, estruturais e históricas que dificultam sua permanência em posições estáveis. Muitas vezes, essas mulheres são direcionadas a cargos de apoio, com menor remuneração e pouca segurança, o que revela que a expansão numérica da participação feminina pode, paradoxalmente, esconder formas mais sutis de precarização.

Os dados revelam que, embora haja uma ampliação quantitativa dos vínculos femininos, isso não significa que o setor esteja se tornando mais justo ou inclusivo. Ao contrário, o que se observa é a continuidade de uma estrutura que reproduz desigualdades e limita a construção de um mercado de trabalho verdadeiramente durável e acolhedor para as mulheres, especialmente em regiões como a Amazônia, onde o capital extrativo avança, mas os direitos trabalhistas seguem frágeis e desiguais.

Entre 2006 e 2021, as remunerações médias de homens e mulheres nas indústrias extrativas brasileiras passaram por mudanças expressivas, como se observa no gráfico 04. No início desse período, a diferença era marcante: enquanto os homens recebiam, em média, 6,4 salários-mínimos, as mulheres alcançavam apenas 4,5, o que representava cerca de 61% da remuneração masculina. Essa disparidade não se explicava apenas pela ocupação de funções distintas, mas também refletia a desvalorização histórica do trabalho feminino, mesmo quando exercido em condições semelhantes às dos homens.

 

Gráfico 04: Remuneração média, em salários-mínimos, por gênero, no Pará – 2006 a 2019.

 

Ao longo dos anos, essa distância foi se reduzindo, e a trajetória salarial das mulheres passou a acompanhar, e em alguns momentos até a superar, a dos homens. Em 2009, pela primeira vez, as médias salariais se igualaram. A partir de 2020, a remuneração média das mulheres passou a ser superior à dos homens, atingindo, em 2021, uma proporção de 118%. Apesar de ser um dado positivo à primeira vista, é preciso interpretá-lo com cautela. Como destacam Hirata e Kergoat (2007), o simples ingresso das mulheres em setores tradicionalmente masculinos não elimina os mecanismos de hierarquia e separação que estruturam a divisão sexual do trabalho. Muitas vezes, as mulheres ainda são vistas como “corpos estranhos” nesses ambientes e, para serem aceitas, acabam tendo que se adaptar a comportamentos e normas organizacionais construídos a partir de uma lógica masculina, um processo que acaba por masculinizar o feminino.

Esse fenômeno, descrito por Macedo et al. (2012), sugere que os avanços salariais das mulheres na mineração não significam necessariamente um reconhecimento pleno de suas capacidades. Em muitos casos, os maiores salários estão associados à presença feminina em áreas administrativas ou técnicas específicas, que oferecem remunerações mais altas, mas concentram uma quantidade menor de trabalhadoras. Com isso, a média salarial sobe, mas as desigualdades estruturais, como a dificuldade de acesso a cargos operacionais ou de liderança, permanecem intactas.

Além disso, como observam Coelho et al. (2021), a trajetória das mulheres na mineração ainda é marcada por obstáculos significativos. As barreiras para entrar, permanecer e crescer profissionalmente nesse setor são reais. Mesmo quando conseguem superar as primeiras etapas, muitas vezes enfrentam ambientes de trabalho que exigem força física, disponibilidade total e tolerância a condições insalubres, exigências que continuam associadas a uma ideia masculina de trabalhador.

No caso da Amazônia, e especialmente na região de Carajás, como aponta Koury (2014), a situação se agrava. A lógica da mineração nessa área está centrada na exportação e em grandes projetos, que criam vínculos de trabalho temporários e altamente terceirizados. Isso dificulta a inserção das mulheres em condições estáveis e com direitos assegurados. Ainda que os dados utilizados no estudo se refiram apenas a trabalhadores formais, é importante lembrar que muitas mulheres seguem enfrentando vínculos frágeis, informalidade ou ocupações periféricas, com pouca visibilidade e proteção.

Dessa forma, mesmo diante de uma tendência de equiparação — ou até de superação — dos salários femininos em determinados momentos, essa melhora convive com estruturas persistentes de desigualdade. O mercado de trabalho segue sendo organizado por lógicas de gênero que limitam, redirecionam e, muitas vezes, invisibilizam a contribuição das mulheres, sobretudo na mineração.

Na sequência da análise das remunerações, a evolução das ocupações por gênero entre 2011 e 2021 oferece novos elementos a respeito das transformações e permanências nas desigualdades no setor da mineração. A tabela 01 apresentada evidencia variações na distribuição de vínculos formais entre homens e mulheres em diferentes grupos ocupacionais, tanto na expansão da presença feminina em determinadas funções quanto a sua persistente sub-representação em áreas de perfil mais técnico-operacional.

 

 

Em algumas ocupações, observa-se um crescimento mais intenso da presença feminina ao longo da década. É o caso de cargos ligados à administração e apoio à gestão, como o grupo de gerentes de áreas de apoio, onde o número de mulheres aumentou significativamente no período, assim como em funções administrativas de base, como escriturárias, auxiliares e assistentes. Entre 2011 e 2021, o número de mulheres nessas posições cresceu quase 13 vezes, passando de 19 para 239. Isso significa que, ao final do período, elas representavam 88% de todas as pessoas ocupadas nesse grupo. Já para outra ocupação (funções administrativas de base), o número de mulheres passou de 256 para 355 no período, crescimento de 1,4 vezes.  É algo interessante de notar porque houve uma certa ampliação do espaço feminino em ocupações formais, justamente em áreas consideradas compatíveis com os atributos tradicionalmente associados ao gênero feminino, como organização, cuidado e comunicação.

Contudo, essa inserção segue um padrão que já foi descrito na literatura como expressão da divisão sexual do trabalho. A distinção entre funções “adequadas” a homens e mulheres continua operando de forma estrutural, condicionando o tipo de ocupação que elas conseguem acessar e sua permanência no setor. A presença expressiva das mulheres em funções de apoio administrativo, ao lado da sua baixa participação em cargos ligados diretamente à produção de bens e serviços industriais, mostra como os princípios de separação e hierarquia, apontados por Hirata e Kergoat (2007), seguem orientando a lógica de distribuição dos postos de trabalho.

Isso é ainda mais perceptível quando se observam ocupações tipicamente masculinizadas, como trabalhadores da produção industrial, a presença feminina, embora crescente, ainda é bastante reduzida. Em 2021, havia 1.444 mulheres nessa função, contra mais de 8.000 homens. Ainda que o número de mulheres tenha triplicado no período, elas continuam representando uma minoria numérica e simbólica.

Esse movimento também está alinhado ao que Macedo et al. (2012) descrevem como um processo de adaptação feminina aos espaços produtivos masculinizados, nos quais a legitimação do trabalho da mulher depende, muitas vezes, da sua adequação a padrões organizacionais construídos sob uma ótica androcêntrica. Assim, ainda que os números mostrem avanço em termos de participação, esse avanço ocorre de forma desigual e seletiva, concentrando as mulheres em funções socialmente reconhecidas como “femininas”.

Isso significa que, as mulheres, mesmo quando entram em setores tradicionalmente masculinos, são frequentemente canalizadas para funções de apoio, administrativas ou de menor visibilidade técnica. Ao mesmo tempo, enfrentam resistências explícitas e implícitas ao ocupar espaços que rompem com o que historicamente se espera delas no mundo do trabalho. Logo, é certo afirmar que a separação entre “trabalho de homem” e “trabalho de mulher” continua sendo reproduzida nas estruturas de contratação, nos ambientes de trabalho e até na própria cultura organizacional das mineradoras.

Considerações Finais

A análise da evolução dos vínculos formais na indústria extrativa do Pará entre 2006 e 2021 revela uma narrativa de paradoxos. Por um lado, os dados quantitativos apontam para uma história de sucesso: o setor cresceu, gerou milhares de empregos e a participação feminina aumentou a um ritmo superior ao da masculina, culminando em uma situação em que a remuneração média das mulheres superou a dos homens. Esta é a face visível e frequentemente celebrada do processo, alinhada aos discursos de modernização, desenvolvimento e inclusão.

Contudo, uma análise crítica e aprofundada, que desagrega os dados por ocupação e os interpreta à luz de um referencial teórico sobre gênero e trabalho, revela uma realidade subjacente muito mais complexa e menos otimista. O crescimento expressivo da participação feminina não se traduziu em uma superação da divisão sexual do trabalho. Ao contrário, a inserção das mulheres no setor mineral paraense ocorreu de maneira seletiva e segregada, reforçando a distinção entre “trabalho de homem” e “trabalho de mulher”. As mulheres permanecem amplamente ausentes das funções centrais da produção mineral, sendo concentradas em áreas administrativas e de apoio. As barreiras simbólicas, institucionais e culturais que definem a mineração como um espaço masculino continuam operantes, perpetuando uma lógica de trabalho baseada em papéis de gênero rigidamente demarcados. A aparente vantagem salarial feminina, longe de ser um sinal de empoderamento generalizado, emerge como um provável reflexo de uma inserção elitizada de um pequeno grupo, que distorce a média e oculta a segregação estrutural.

As evidências aqui apresentadas sugerem que as políticas de inclusão de gênero no setor extrativo, quando focadas apenas em metas quantitativas de contratação, correm o risco de apenas modernizar a aparência da desigualdade, sem alterar sua essência. Aumentar o número de mulheres nos quadros de uma empresa é um passo inicial, mas insuficiente se não for acompanhado por mudanças organizacionais e culturais profundas que questionem os valores androcêntricos, promovam a ascensão feminina em todas as áreas, combatam o assédio e criem um ambiente de trabalho verdadeiramente inclusivo.

Deste modo, este estudo conclui que, apesar dos avanços numéricos, a estrutura de gênero do setor extrativo no Pará permanece fortemente desigual. É fundamental, portanto, problematizar o discurso da “diversidade” como panaceia e avançar na proposição de caminhos mais efetivos para a transformação das relações de trabalho. Futuras pesquisas, possivelmente de natureza qualitativa e etnográfica, serão essenciais para compreender as experiências vividas, as estratégias de resistência e as percepções das mulheres que atuam neste setor, dando voz às protagonistas deste complexo processo e aprofundando o entendimento sobre os desafios para a construção de um mercado de trabalho mais justo e equitativo nas regiões mineradoras da Amazônia.

 

OBSERVAÇÃO

O texto original você encontra aqui – https://lacam.unifesspa.edu.br/textos-de-discussao/190-mulheres-na-minera%C3%A7%C3%A3o-paraense-din%C3%A2micas-de-crescimento-formal-e-a-persist%C3%AAncia-da-divis%C3%A3o-sexual-do-trabalho-2006%E2%80%932021.html

 

AUTORES:

 

Ângela Santos

Graduanda em Economia pela Unifesspa e pesquisadora do Laboratório de Contas Regionais da Amazônia (Lacam).

 

Victória Labes

Graduanda em Economia pela Unifesspa e pesquisadora do Laboratório de Contas Regionais da Amazônia (Lacam).

 

Kaeno Santos

Graduando em Economia pela Unifesspa e pesquisador do Laboratório de Contas Regionais da Amazônia (Lacam).

Referências

BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Brasília, DF: MTE, [2006–2021]. Disponível em: https://bi.mte.gov.br/bgcaged/. Acesso em: 10 jun. 2025.

COELHO, Bianca Lemos; SILVA, Kyara Mariana Corgosinho; BOMFIM, Rainer. A divisão sexual do trabalho na mineração no quadrilátero ferrífero de Minas Gerais: apontamentos e questões introdutórias que (des)inviabilizam (novas) sujeitas que são exploradas na mineração. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 20, n. 39, p. 5–22, jul./dez. 2021.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Tradução de Fátima Murad. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595–609, set./dez. 2007.

KOURY, Suzy Cavalcante. Meio ambiente e condições de trabalho na Amazônia Oriental: uma análise sobre as relações de trabalho na mineração. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, Belém, v. 45, n. 89, p. 227–262, 2012.

MACEDO, Fernanda Maria Felicio et al. Relações de gênero e subjetividade na mineração: um estudo a partir da fenomenologia social. Revista de Administração Contemporânea – RAC, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 217–236, mar./abr. 2012.