Correio de Carajás

Mulheres desafiam o machismo e ampliam presença nos cursos de engenharia da Unifesspa

Na universidade, o recorte de gênero ainda é gritante nos cursos de engenharia, mas, aos poucos, estudantes e professoras têm transformado esse cenário com coragem, sororidade e coletividade

Marina, Maria, Rafaela e Fernanda: vozes femininas que desafiam os estereótipos nos cursos de engenharia/ Fotos: Jeferson Lima

Na sala de aula, no laboratório ou em grupos de estudo, elas estão lá: poucas, mas firmes. No Dia Internacional das Mulheres na Engenharia, 23 de junho, segunda-feira, o CORREIO conversou com mulheres e meninas que, entre cálculos, projetos e pesquisas, enfrentam o desafio de ocupar um território que, historicamente, não foi desenhado para elas.

Na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), o recorte de gênero ainda é gritante nos cursos de engenharia, mas, aos poucos, estudantes e professoras têm transformado esse cenário com coragem, sororidade e coletividade.

Marina Weyl Costa, professora doutora do curso de Engenharia Mecânica, é uma das que constroem essas pontes diariamente. Doutora em engenharia mecânica, ela atua nas áreas de sustentabilidade e ciclo de vida, mas também dedica seu trabalho a algo que não costuma estar nos manuais técnicos: a inclusão, permanência e ascensão de mulheres nas engenharias.

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Mas a presença feminina na engenharia ainda carrega um peso invisível. “Toda turma tem uma menina brilhante, e parabéns pra ela, mas o problema é que a gente não tem o direito à mediocridade”, provoca Marina. Em tom de quem reivindica seu direito de existir em todos os espaços, ela destaca que o mundo é cheio de homens medíocres que se formam e trabalham, sem que ninguém questione ou exija mais do que eles querem – ou podem – entregar.

Entretanto, recai sobre as mulheres a obrigação de serem excepcionais o tempo inteiro. “Eu milito para as meninas terem o direito de serem um pouquinho mais medíocres”, reflete Marina.

Esse fardo coletivo torna cada passo mais cansativo, e é justamente aí que a rede entre mulheres se torna vital. A professora doutora Rafaela Silveira, também da Unifesspa, lembra da própria graduação: “Éramos sete mulheres e 33 homens. E a gente se uniu. Não contra os homens, mas para se fortalecer. Nós sete nos formamos, e apenas 11 homens pegaram o diploma”.

Professora de Engenharia Civil, Rafaela trabalha com geotecnia ambiental, social e questões de gênero na universidade

“E se falarem que eu sou burra por ser mulher?”

A escolha de cursos de engenharia, para muitas mulheres, nasce misturada com o medo de não ser boa o suficiente, de ser julgada, de estar sozinha. “Eu tinha muito medo por ser uma área que tem muito homem. Eu pensava ‘e se eu for muito burra e o pessoal fala que é porque eu sou mulher?’”, lembra Rafaela. Antes de ingressar na graduação, ela foi aluna do curso de eletromecânica no IFPA e lá encontrou nos professores o impulso para seguir adiante. “Eles me ajudaram a não ter medo de fazer Engenharia por ser mulher”, complementa.

Ainda que aperte o peito, para muitas meninas, esse receio, porém, não paralisa. Ele vira combustível.  É o caso de Maria dos Santos Carvalho de Sousa, caloura do curso de Engenharia de Materiais. Ela também foi aluna do IFPA, em Marabá, no curso de eletromecânica. Em janeiro de 2024, Maria foi entrevistada por este CORREIO e falou sobre uma curiosa e engenhosa armadilha para pegar mosquitos.

Caloura de Engenharia de Materiais, Maria representa a nova geração de mulheres nas engenharias

Agora, mais de um ano depois, a jovem compartilha que começou a se sentir pertencente ao curso de Engenharia quando foi procurada por quatro professores diferentes, todos oferecendo orientação e oportunidades de bolsa. “Fiquei tipo: nossa! Eu tive a opção de escolher qual que eu queria”, diz, com brilho nos olhos.

Já Fernanda Rodrigues, do quinto período de Engenharia Mecânica, afirma: “Eu nunca reprovei nenhuma matéria e na minha turma praticamente todo mundo reprovou. Então isso me mostra que eu pertenço a esse lugar”.

Estudante do quinto período de Engenharia Mecânica, Fernanda é exemplo de protagonismo feminino na graduação

O que antes era medo, virou força. Cada conquista dessas mulheres é uma resposta direta a uma estrutura que por muito tempo inibiu a presença feminina em cursos da área de STEM (sigla em inglês que significa Science, Technology, Engineering and Mathematics, ou Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, em português).

Marina, Rafaela, Maria, Fernanda e tantas outras, não estão pedindo espaço, mas o ocupando. Elas deixam um recado claro: mulher na engenharia não é exceção, é potência. E vai continuar sendo.

“Primeiro a gente acolhe a vítima, depois educa o agressor”

Em cursos onde a presença ainda é majoritariamente masculina, mulheres que escolhem a engenharia precisam, antes de tudo, resistir. Confrontar o machismo institucional, às micro agressões diárias, o julgamento velado (ou explícito) que testa sua competência a cada erro. Na universidade, elas enfrentam mais que cálculos e projetos: lidam com estruturas que insistem em duvidar da presença feminina ali. Mas é justamente nesse ambiente hostil que muitas se tornam ponte para outras, criando espaços de apoio, denúncia e permanência.

Hoje, Rafaela integra um colegiado onde há mais mulheres do que homens. O reflexo dessa ocupação atinge principalmente as alunas, que olham para as professoras e reconhecem que também podem chegar lá. Além de engenheira civil com doutorado em recursos hídricos e saneamento ambiental, ela também pesquisa geotecnia social e questões de gênero. Sua atuação se estende para além da pesquisa: “Tanto dentro quanto fora dos muros da universidade, eu estou em alerta. Eu tô em prol das mulheres. É cansativo, mas é a minha escolha”.

Nesse cenário, o enfrentamento ao machismo exige estratégias firmes. O acolhimento da vítima é prioridade e deve ser a primeira atitude tomada. Mas também é necessário educar o agressor, porque esse também é o papel da universidade.

Para a professora Marina, as alunas de engenharia hoje estão mais conscientes sobre os desafios do machismo. “Quando eu era estudante, eu vivia desconfortos que só anos depois entendi que eram posturas machistas. Não sabia nomear”, lembra. Ela também observa mudanças entre os homens.

“Tenho achado que os meninos estão mais educados, mais gentis entre si, mais abertos a sentimentos”. Marina considera que as novas gerações de estudantes vêm transformando a convivência em sala de aula, e que o próprio ambiente da Unifesspa, com docentes mais jovens e uma relação mais próxima com os alunos, contribui para essa mudança.

Para Rafaela, o compromisso com o enfrentamento ao machismo não termina na sala de aula. “Eu estou em alerta. Estou em prol das mulheres”, afirma com a voz firme de quem escolheu não silenciar. O desgaste físico e emocional, segundo ela, faz parte da escolha de estar atenta, de intervir, de sustentar o embate.

“Às vezes o comentário parece pequeno, mas a gente aprende a identificar. E é preciso reagir. Não dá pra deixar passar”. Essa vigilância, compartilhada por outras mulheres dentro e fora da universidade. Para elas, não se trata de uma militância ocasional, mas de um compromisso diário com a mudança.

HARPIAS DA UNIFESSPA

O projeto de pesquisa e extensão Harpias nasceu do sonho da professora Marina de criar um espaço de acolhimento e fortalecimento para mulheres nas engenharias. A inspiração veio ainda no doutorado, durante a pandemia, quando o apoio de um grupo de colegas mulheres foi essencial para que ela seguisse até a defesa da tese. Assim que assumiu o cargo de docente na Unifesspa, ela tirou o projeto do papel com o objetivo de apoiar o ingresso, a permanência e a ascensão de mulheres na área.

“A engenharia pode ser solitária. Por isso, a integração é fundamental”, medita.

Com início formal em 2022 e atividades mais frequentes a partir de 2023, o Harpias promove encontros semanais com alunas de graduação e, mais recentemente, passou a incluir estudantes do ensino médio graças à aprovação de um projeto nacional financiado pelo CNPq. As jovens participam de oficinas, reforço em matemática e rodas de conversa sobre gênero e raça. Atividades como plantio de árvores e oficinas de defesa pessoal já fizeram parte da programação. “A ideia é formar redes, criar vínculos, construir pertencimento e ampliar horizontes”, explica a professora.

Além da formação, o grupo também se articula em eventos de grande impacto. No dia 24 de junho, será realizado o 2º Dia Internacional da Mulher na Engenharia da Unifesspa, uma programação gratuita e aberta ao público, que integra o projeto “Conversa entre Meninas Engenheiras”. A agenda vai das 8h às 18h, com mesas temáticas, rodas de conversa, palestra sobre assédio e relatos de mulheres no mercado de trabalho. A parte da tarde inclui ainda a apresentação de pesquisas desenvolvidas pelas integrantes do Harpias e um bingo de integração para encerrar o dia com leveza e conexão.

Durante o evento, também serão distribuídos kits para os participantes. As alunas receberão ecobags personalizadas com caneta e adesivo; os rapazes, caneta e adesivo. A escolha, segundo Marina, foi uma questão de viabilidade financeira.

“Como tudo é mais caro para mulheres, optamos por concentrar os brindes nelas”. Em cada detalhe — dos kits aos conteúdos — o Harpias reafirma sua missão: fazer da engenharia um território mais justo, inclusivo e solidário para todas que desejam ocupar esse espaço.

Todas têm o direito de estar ali

As estudantes e professoras ouvidas nesta reportagem concordam: é preciso formação obrigatória para os docentes em gênero, canais seguros para denúncia, apoio financeiro e emocional, e valorização institucional dos coletivos de mulheres. “É injusto exigir que as mulheres dediquem seu tempo livre para resolver os problemas dos quais são vítimas”, critica Marina.

Mas há avanços. A sala de aula está mudando. As alunas estão mais conscientes e os alunos, em muitos casos, mais abertos. A masculinidade, dizem as professoras, também está em transformação. Ainda que lentamente, os muros da engenharia começam a se abrir para novas histórias, olhares e trajetórias.

E é nessa travessia que surgem mulheres como Marina, Rafaela, Maria e Fernanda. Vozes femininas que não apenas desafiam os estereótipos, mas que insistem que todas têm o direito de estar ali. Mesmo quando erram. Mesmo quando duvidam. Porque, como bem lembrou Marina: “Seguir adiante era um jeito de garantir que todas as mulheres sejam capazes”.

(Luciana Araújo)