Figura emblemática da ditadura militar na Amazônia, o agente da reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o Major Curió, de 87 anos, morreu às 2 horas da madrugada desta quarta-feira 17, num hospital particular em Brasília. Há cinco anos, ele vivia recolhido em sua casa na capital federal. Internado na noite de segunda, sofreu sepse e falência múltipla dos órgãos.
Sebastião Curió será sepultado com farda e boina de Guerra na Selva. Com Maria de Lourdes, que conheceu ainda em Minas e aniversariava neste dia 17, ele teve cinco filhos. Teve ainda um filho com Vera Lúcia.
Filho de uma lavadeira e um barbeiro de São Sebastião do Paraíso, no Sul de Minas, Curió ganhou o apelido no tempo de estudante no colégio militar e lutador de boxe amador em Fortaleza. Era uma referência às rinhas de pássaro da capital cearense. Personalizou como poucos a geração militar do pós-guerra que tinha como paradigma na carreira a atuação dos pracinhas na Itália.
Leia mais:Após se formar na Academia Militar das Agulhas Negras, Curió atuou no interior paulista e paranaense. À frente do batalhão de Francisco Beltrão, pôs sua tropa, em 1957, a favor de posseiros do município de Capitão Leônidas Marques, que travavam uma guerra sangrenta com as forças enviadas pelo governador Moysés Lupion.
Ao ser informado do golpe contra João Goulart, em abril de 1964, seguiu para a cidade natal, onde promoveu um insólito julgamento dos “comunistas” locais. Um primo dele foi condenado à prisão, causando um racha na família. Era tempo de guerra fria e o avanço dos tratores do Brasil Grande na Amazônia.
Curió era agente do Centro de Inteligência do Exército, o antigo CIE, quando passou a atuar contra movimentos armados de oposição ao regime. Em 1972, o general Milton Tavares, chefe do órgão, organizou um plano de infiltração no Bico do Papagaio, região do sul do Pará e norte de Goiás, hoje Tocantins. Buscava informações para uma ofensiva final contra uma guerrilha organizada pelo PCdoB, dissidência do antigo PCB.
As duas primeiras campanhas militares com tropas convencionais, entre abril e setembro de 1972, foram derrotadas pelo grupo de cerca de 100 guerrilheiros – uma parte formada por estudantes universitários e militantes das grandes cidades e outra, por moradores arregimentados.
Operação Sucuri
O CIE entregou a Curió a chefia em campo da Operação Sucuri. O agente fez um mapa com registros dos locais de movimentação do “povo da mata” ou “paulistas”, como os guerrilheiros eram conhecidos pela população ribeirinha e sertaneja. Para isso, infiltrou homens pelo Araguaia que se passavam por barqueiros, donos de bodega, garimpeiros e pequenos agricultores.
A partir das informações coletadas pela Sucuri, os generais Emílio Garrastazu Médici, que ocupava a Presidência, Orlando Geisel, a pasta do Exército, e Milton Tavares, o CIE, puseram em prática a terceira e última campanha contra a guerrilha. Desta vez, os militares enviados ao Araguaia eram apenas homens formados em guerra na selva. Por anos, a cúpula das Forças Armadas disse que os guerrilheiros morreram em combates na terceira e decisiva campanha. Não foi isso que ocorreu.
Em 1982, Médici afirmou que Curió “sabia de muita coisa”. Foi o suficiente para se criar na opinião pública uma expectativa sobre a abertura do arquivo pessoal do agente, que poderia trazer informações sobre execuções de guerrilheiros nas prisões. Até ali, a cúpula das Forças Armadas dizia que fez apenas manobras na região. Depois, insistiu que só havia matado adversários em combates na mata.
Serra Pelada
A ditadura começou a morrer no final dos anos 1970, mas Curió permaneceu na Amazônia. Em 1980, a poucos quilômetros da área dos combates à guerrilha, foi descoberta uma mina de ouro. Serra Pelada atraiu milhares de homens em busca de riqueza. Curió ocupou o garimpo e passou a controlar a vida e o trabalho dos “formigas”. Os garimpeiros tiveram de entregar suas armas ao Exército e só podiam vender o que retiraram de lá num posto da Caixa Econômica Federal instalado no local.
As mulheres foram proibidas de entrar no garimpo. Um grupo delas resolveu criar a Vila do Trinta, no quilômetro 30 da rodovia que ligava Marabá a Carajás. Surgiu o povoado de Curionópolis.
A história do garimpo chegou em 1982 aos cinemas. O filme “Os Trapalhões na Serra Pelada”, Curió foi interpretado Renato Aragão. Para diminuir o poder do agente na região epicentro de conflitos sociais e agrários, o então presidente João Figueiredo determinou que Curió se candidatasse nas eleições daquele ano a deputado federal. Foi eleito e ainda catapultou campanhas de aliados do governo. Nas previsões do general, uma vez em Brasília, o agente perderia força política na massa de garimpeiros.
Em 1984, o deputado Curió, do PDS governista, chefiou o maior levante da história contemporânea da Amazônia. Garimpeiros fizeram barricadas em todos os acessos ao sul do Pará e ao Projeto Carajás para protestar contra o fechamento de Serra Pelada e o controle da Vale na mina.
Curió voltou à cena política em 1990 quando gravou e revelou uma conversa por telefone com o empresário Paulo César Farias, o PC, que detalhava doações para a campanha do então presidente Fernando Collor. Três anos depois, foi acusado pelo homicídio do menor Laércio Xavier da Silva e lesão corporal de Leonardo Xavier, jovens infratores, em uma chácara em Sobradinho, no Distrito Federal. Ele alegou que, ao prestar socorro, não tinha intenção de matar. Foi absolvido em 2009 pelo Tribunal do Júri. Tanto a acusação como a defesa trataram o caso como um julgamento da atuação do agente no Araguaia.
Ao longo do tempo, o arquivo pessoal de Curió sobre o período tornou-se algo próximo a uma lenda. Para muitos era um blefe.
Conheci o agente da reserva em 2000, numa viagem ao Pará. Nesse ano, ele foi eleito pela primeira vez prefeito de Curionópolis, município desmembrado de Marabá. Ao se eleger pelo MDB, o partido da oposição à ditadura, o agente que combateu a guerrilha e chefiou o garimpo não tinha mais o poder que lhe atribuíam de “imperador da Amazônia”. Entretanto, continuava sendo o único representante da repressão ao movimento armado do PCdoB a dava declarações públicas. Era quase um jogo marcado.
Em dezenas de viagens, pedi acesso ao seu arquivo. O então prefeito dizia que não era hora de falar. A princípio, as nossas conversas ocorriam numa praça barulhenta da cidadezinha batizada com seu nome, ao lado de uma caixa de som potente na rua ou perto de uma televisão no volume mais alto. Quando aceitava responder a uma pergunta sobre os dias finais de guerrilheiros como Dinalva Teixeira, a Dina, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, e Antônio Teodoro de Castro, o Raul, pedia uma folha de papel. Escrevia a resposta, mostrava e depois guardava no bolso. Guardou marcas do embate que teve com Lúcia Maria de Souza, a Sônia.
Em 2004, Curió disse ao New York Times que pretendia abrir o seu arquivo pessoal. Mas essa decisão ainda levaria mais cinco anos. Naquele tempo ficou impactado com uma frase dita por Marlon Brando numa cena de Apocalypse Now, filme que mostrei para ele. “É o julgar que nos derrota”, repetiria sempre.
No final da tarde de um domingo de janeiro de 2009, em Brasília, Curió me telefonou e disse que precisava conversar pessoalmente. O encontro foi marcado por ele num lugar inusitado: a pista de acesso ao Palácio da Alvorada – um lugar movimentado, mas difícil de imaginar como cenário de uma conversa reservada. Ele esperava de carro na beira do asfalto. Entre outras coisas, falou de riscos e do monitoramento das Forças Armadas em relação ao seu movimento para a abertura do arquivo.
Em maio daquele ano, Curió finalmente permitiu meu acesso ao local em que guardava os documentos. A manchete “Curió abre arquivo e revela que Exército executou 41 no Araguaia”, na capa do Estadão de 21 de junho de 2009, surpreendeu a caserna, que teve sua longa e enfadonha narrativa de que não houve desrespeito à Convenção de Genebra posta abaixo, e famílias de vítimas da repressão. A história foi contada com detalhes no livro “O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”, publicado pela Companhia das Letras, em 2012. O agente da reserva chegou a relatar que chefiou uma patrulha que executou prisioneiros de guerra. Era um momento raro na história da República em que um militar fazia essa revelação.
O arquivo de Curió foi aberto num período em que militares mantinham a lei do silêncio. A Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2014, adiou um depoimento de Curió para o último dia de trabalho. O agente havia sido internado no Hospital das Forças Armadas. Uma das lacunas das pesquisas no Araguaia é a localização das áreas em que a maioria dos corpos dos guerrilheiros foi inumada pelos militares.
Monitorado até o final
Curió foi um dos homens da repressão temidos fora e dentro das Forças Armadas. O agente da inteligência do Exército também era monitorado pela estrutura militar. Por acaso, presenciei encontros dele com o pessoal da inteligência. Também acompanhei esses encontros em situações combinadas pelo próprio Curió, em sua casa e em dependências de hospitais. Nas apurações para reportagens sobre a guerrilha, ouvi atrás das portas conversas que revelavam, sobretudo, a história de uma instituição com problemas do presente.
Quando, depois, eu perguntava o que ele achava desse monitoramento implacável, Curió minimizava a situação e ironizava o serviço de inteligência, como se participasse de uma eterna partida de xadrez. Se considerava tanto um agente militar quanto um político. O jogo foi até os últimos dias.
Ele demonstrava ter consciência de que o mito do Major Curió ia além das margens do Araguaia, do Itacaiunas e do Tocantins. A personalização do combate à guerrilha e seus erros históricos, na figura de um agente apenas, foi importante para uma instituição do Estado que procurava uma nova imagem no período democrático.
As mesmas Forças Armadas que monitoravam Curió tinham dificuldades para admitir o trabalho dado ao agente de responder sozinho pela repressão no Araguaia. O agente chegou a reconhecer que tirava proveito político da missão. Mas o arquivo que guardou por tanto tempo se constituiu numa pá de cal para narrativas oficiais. A eliminação de adversários da ditadura foi uma política de Estado construída dentro do Palácio do Planalto. Tinha cadeia de comando.
(Fonte: terra.com.br)