Correio de Carajás

Mary Jane, o protagonismo racial feminino e a fuga dos padrões

Mary Jane é um diamante negro lapidado de Marabá. É a prova em carne e melanina de que uma mulher preta, gorda e periférica ilustra a resistência da comunidade feminina

A mulher negra no Brasil é sinônimo de luta e força e isso as adoece, pois cria uma ficção de que ela precisa dar conta de tudo, como se não pudesse fraquejar perante as incertezas e fraquezas

Se antigamente as revistas, ensaios fotográficos e até mesmo matérias de jornal – como essa que você lê agora – eram lotadas de mulheres magras, brancas e padronizadas para representar a classe feminina, esta reportagem lhe fará entender por que a personagem escolhida para representar o Dia Internacional da Mulher nesta matéria vai contra todas essas “regras”, na intenção de trazer uma reviravolta como reflexão através de sua história de vida.

Parafraseando o título da obra de Giovanna Xavier “Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando sua própria história”, Mary Jane Assunção – dos quadrinhos normativos do Homem Aranha diretamente para Wakanda, em Pantera Negra, do universo Marvel – de 42 anos, mora em Marabá desde criança e é o retrato da mulher preta, gorda e periférica. Um combo carregado de estigmas criados pela sociedade há mais de 520 anos devido ao racismo estrutural e ao machismo.

Ângela Davis cita em sua obra “Mulheres, Raça e Classe” que é necessário compreender que classe informa a raça, assim como raça informa a classe e gênero informa a classe”, diz. “Raça é a maneira como a classe é vivida…”. Essa explicação científica sobre como funciona o sistema social em que vivemos, na perspectiva da historiadora e filósofa, esclarece o motivo de Mary ser o rosto ideal para se falar das dores e delícias de ser uma mulher que, mesmo sofrendo diversas opressões na pele, mantém a autoestima e o bom humor.

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Filha caçula dentre sete irmãos, mãe de três filhos e solteira, a marabaense de coração tem seu próprio negócio e trabalha como manicure e nail designer. E, assim como outras mulheres pretas, faz parte de 28% da população brasileira, participando na geração dos 40% do Produto Interno Brasileiro (PIB) gerado pela população negra na totalidade.

Dura na queda, Mary nunca deixou que episódios de gordofobia e racismo abalassem sua autoestima

Dar um “up” na autoestima de suas clientes através dos designs é um ato de resistência, já que, atualmente, a sociedade tende a enxergar mulheres como Mary como alguém designado a servir ou a cuidar dos outros, apagando milhares de possibilidades de brilharem, tais quais diamantes negros no mercado de trabalho. Algo que a manicure faz com maestria.

RESISTÊNCIA

A mulher preta no Brasil é sinônimo de luta, garra e força. No entanto, enquanto a sociedade normaliza essa visão, com a ascensão da comunidade negra nos últimos anos, é preciso compreender que figuras femininas como Mary não precisam dar conta de tudo ou serem vistas como fracas por também possuírem suas limitações, mas serem enxergadas como protagonistas da ressignificação de resistência.

Além disso, a nail designer surpreende com a forma de se impor e levar a vida. Para ela, lugares que não aceitam quem ela é, não a cabem. Sua cor, tamanho e berço nunca foram motivo de vergonha, pelo contrário, de muito orgulho. Formaram a Mary Jane que sabe lidar na classe com situações de racismo e gordofobia: “Uma vez, em outro estado, sentei do lado de uma mulher branca, encostei meu braço no dela e automaticamente ela afastou. Eu, do jeito que sou e fui criada, logo falei que ela não precisava se preocupar, pois não desbotava”.

GORDOFOBIA E RACISMO

Outros momentos marcantes na vida da manicure com relação à pressão estética foram a cobrança de pessoas próximas e até mesmo parentes que chegaram a oferecer o famoso “Herbalife” – shakes e chás vendidos como substitutos de uma refeição normal -, para que ela perdesse peso. Também tentaram induzi-la a alguma atividade física específica para que, dessa forma, emagrecesse e se encaixasse no padrão “aceitável” pela sociedade.

O que essas opressões relatadas por ela têm em comum é que todas vieram de outras mulheres. Motivo pelo qual é importante trazer a personagem de uma figura preta que foge aos padrões para ilustrar a comunidade feminina que, por sinal, ao invés de formar uma rede de apoio, tem decepcionado, reproduzindo comportamentos machistas e racistas.

Adquirindo sua independência financeira e liberdade econômica, a manicure vai contra o sistema de rebaixamento da mulher preta

Citando Ângela Davis novamente, a filósofa explica que o movimento feminista precisa ser antirracista e incluir todas as mulheres das mais diversas esferas: “Nós reconhecemos que ao falarmos sobre uma questão aparentemente pequena, afetamos o todo. E isso faz parte do entendimento de lutar por liberdade e justiça para todos”, levanta.

INDEPENDÊNCIA

O sonho da nail designer era se formar em psicologia, mas por fazer parte de uma família muito humilde, acabou escolhendo sua profissão atual: “Agradeço muito a minha irmã que me deu o empurrão certeiro para que eu começasse a fazer unhas e, posteriormente, me especializasse com cursos no design. Iniciei meu negócio sozinha e do zero”, conta, sem arrependimentos por trilhar um caminho diferente do que havia planejado.

Todos os dias são oportunos para novas chances à Mary Jane, assim como novas unhas a serem feitas

Embora ela não tenha se tornado uma psicóloga, acredita que consegue trazer um pouco da essência da profissão da área da saúde pro seu espaço de trabalho, já que se considera uma pessoa confidente e que, segundo ela, consegue fazer com que suas clientes se sintam confortáveis o suficiente para se abrirem sobre suas vidas pessoais. Isso acaba criando, entre as duas partes, um forte vínculo afetivo. (Thays Araujo)