Correio de Carajás

Marabá: Psicólogo analisa abandono de bebê sob o olhar social e não apenas jurídico

Caso de recém-nascido deixado na rua traz à tona questões de desigualdade de gênero, sobrecarga das mães solo e abandono paterno, reforçando a necessidade de políticas públicas eficazes para prevenir que crianças e famílias cheguem a situações extremas

O caso do abandono do bebê chocou Marabá e rendeu comentários acalorados nas redes sociais
Por: Luciana Araújo
✏️ Atualizado em 13/08/2025 15h39

No mês instituído como o período de mobilização nacional pelos direitos das crianças de 0 a 6 anos (1ª infância), o município de Marabá presenciou um episódio triste e marcante: o abandono de um bebê recém-nascido na Rua Rio Grande do Sul, Núcleo Cidade Nova.

O caso aconteceu na tarde de terça-feira (12) e rapidamente teve grande repercussão nas redes sociais. Revoltados com o crime cometido contra uma criança tão pequena e indefesa, internautas não pouparam comentários acalorados tecendo críticas e condenando a genitora.

Contudo, ainda que o abandono de incapaz seja um crime previsto no artigo 133 do Código Penal Brasileiro, é preciso olhar com cuidado para as circunstâncias que precedem a decisão extrema da mãe e o contexto social em que ela está inserida.

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Ainda na tarde de terça, em entrevista ao Correio de Carajás, o policial militar capitão Rodrigues explicou que no momento da prisão, a genitora, de 27 anos, revelou que é mãe de dois filhos e que o genitor do bebê abandonado recusou assumi-lo. Ao parir o filho e diante deste cenário de desamparo, a mulher, prevendo um futuro em que não conseguiria criar mais uma criança, decidiu deixá-lo na rua. Algumas horas depois ela foi localizada e, sem oferecer resistência, foi presa.

A reportagem do Correio esteve na Delegacia Especializada no Atendimento à Criança e ao Adolescente (Deaca) no momento em que a genitora era apresentada à autoridade policial e seu abalo e fragilidade emocional eram evidentes.

Por isso, para analisar o caso de um ponto de vista profissional, mas diferente do jurídico, o Correio de Carajás conversou com Ayrk Zamiske, psicólogo social e especialista em Neuropsicologia Clínica.

Ayrk Zamiske: “O caso perpassa pelo abandono parental pela figura paterna, que é naturalizado, infelizmente, no Brasil”

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, provérbio africano

“Antes de tudo é preciso lembrar que no Brasil, a proteção à criança é um dever não só da família, mas também da sociedade e do poder público. Então, se a gente tem um bebê nessa situação, é porque todos esses agentes falharam anteriormente”, evidencia o psicólogo.

Nesse sentido, a falha no sistema passa também pela naturalização e romantização da maternidade solo. No Brasil – e no mundo – o papel de cuidado é depositado nos ombros da população feminina.

Segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, as mulheres gastaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens com afazeres domésticos ou cuidados com pessoas. São 21,3 horas por semana no caso delas, e somente 11,7 no caso deles.

Ou seja, é dada a elas a maior parcela de responsabilidade na criação dos filhos de um casal, e também o cuidado com o companheiro e até de familiares idosos. Esse ecossistema dá a mulher uma sobrecarga mental que prejudica seu bem-estar emocional. Esse impacto foi estudado pelo Laboratório Think Olga em um relatório divulgado em 2023.

Este pode ser o caso da genitora marabaense que abandonou o recém-nascido. Ayrk analisa que o cuidado com uma criança na primeira infância exige uma demanda alta, causando consequências financeiras e afetivas para a família.

“Isso também perpassa pelo abandono parental pela figura paterna, o que também é naturalizado, infelizmente, no Brasil”, explica o psicólogo. Antes mesmo de ser deixado pela mãe, o bebê já havia sido largado pelo pai.

Dados de 2024, do Portal da Transparência, da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), revelam que mais de 91 mil crianças foram registradas sem o nome do pai no Brasil. Uma outra pesquisa, desta vez do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE) e divulgada em 2022, indica que 15% dos lares brasileiros são chefiados por mães solo. Esta mesma pesquisa estima que o país possui mais de 11 milhões de mães monoparentais.

“Tudo isso impacta e gera violências não só para criança, mas para todas as pessoas dessa família, incluindo a mãe. Por isso, é muito importante refletirmos sobre o papel das políticas públicas, passando pelo acompanhamento da gestação, incluindo a rede de proteção e o convívio familiar e comunitário. Entender onde que o processo falhou para que a genitora chegasse a esse extremo”, evidencia Ayrk.

Para além da esfera jurídica e moral deste episódio, é preciso refletir sobre as falhas sistêmicas que levaram essa mãe à decisão extrema. O caso do bebê reforça que a responsabilidade pela primeira infância é coletiva e de que a ausência de apoio social, financeiro e afetivo, assim como o abandono paterno, pode ter consequências devastadoras para a criança.

Essa ocorrência reflete um apelo silencioso para que a sociedade e o poder público olhem com mais atenção para a sobrecarga e a saúde mental das mães solo e construam uma rede de apoio mais eficaz e humanizada. Também levanta questionamentos sobre o processo de entrega voluntária para adoção.

Entrega Voluntária: O que diz o artigo 19-A do ECA

“É importante lembrar que no Brasil, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mães podem entregar seus filhos para adoção, sem nenhum constrangimento”, reforça Ayrk.

Em outras palavras, a lei brasileira assegura que a mãe que decide entregar seu filho para adoção, seja antes ou logo após o nascimento, tem o direito de ser acolhida e orientada pela Justiça da Infância e da Juventude.

Esse processo, previsto no artigo 19-A do ECA, determina que a gestante ou mãe seja ouvida por profissionais. Essa equipe, composta por assistentes sociais e psicólogos, elabora um relatório para a autoridade judiciária, levando em conta o estado emocional e os impactos do período gestacional e pós-parto.

Com base nesse relatório, o juiz pode encaminhar a mulher, com o consentimento dela, para a rede pública de saúde e assistência social, onde receberá atendimento especializado. O objetivo é oferecer o suporte necessário para que a decisão seja tomada de forma consciente e segura, garantindo a proteção tanto da mãe quanto da criança.

“Mas antes disso, é muito importante que sejam esgotadas todas as possibilidades dessa criança permanecer na sua família de origem, que é um direito dela. As condições financeiras e sociais dessa mãe devem ser cuidadosamente avaliadas e acompanhadas. É fundamental que se construa uma rede de apoio ampla, de modo que mais mulheres, especialmente, não cheguem a situações extremas como a deste caso”, finaliza o psicólogo.