A exuberância e importância do Rio Tocantins não se restringe ao caminho pelo qual suas águas serpenteiam no canal principal. Esse curso d’água possui uma larga planície de inundação, que corre paralelamente há alguns metros da veia principal. É o chamado Paleocanal do Rio Tocantins.
Atualmente, a comunidade científica da região de Carajás se mobiliza em prol da criação de duas Unidades de Conservação de Uso Sustentável, chamadas de Área de Proteção Ambiental (APA) do Paleocanal do Rio Tocantins e a APA Bico do Papagaio. O que falta agora, para que o projeto saia do papel e se torne realidade, é o apoio político e também da sociedade.
“A ideia é uma proposta de criação de duas APAs que são de uso sustentável. Elas são compatíveis com a agricultura familiar”, explica Pablo Santos, geólogo da Fundação Casa da Cultura de Marabá (FCCM) e um dos responsáveis pelos projetos ao lado da ex-presidente da Fundação Casa da Cultura, Vanda Américo.
Leia mais:Em se tratando das duas propostas, o município de Marabá tem uma relação simbiótica com ambos os territórios.
No total, 304 lagos estão localizados nas regiões, que somadas, possuem expressivos 128.461,82 hectares – o que corresponde à área total do município de São João do Araguaia.
Mais especificamente, a APA Paleocanal do Rio Tocantins abrange regiões dos municípios de Marabá, Itupiranga e Nova Ipixuna, onde se concentram 56 lagos em uma área de 31.736,9 hectares. Nesses locais também existem cinco Projetos de Assentamento (PA), que são unidades agrícolas instaladas pelo Incra em um imóvel rural.
A APA Bico do Papagaio é três vezes maior, com 96.724,92 hectares e sua ocupação se estende pelos estados do Pará, Tocantins e Maranhão. Ela inclui os municípios de Bom Jesus do Tocantins, São João do Araguaia, Marabá, Esperantina, São Sebastião do Tocantins, Buriti do Tocantins, São Pedro da Água Branca e Vila Nova dos Martírios. Essa região ostenta 248 lagos e reúne 22 PAs.
Criar as áreas de preservação em regiões antropizadas não é um problema, contudo, pode ser desafiador uma vez que, por conta disso, as APAs devem ser unidades de uso sustentável. Não há intenção de retirar desses territórios as pessoas que já moram neles.
Além de tudo isso, o Paleocanal do Rio Tocantins possui uma imensurável importância geológica, biológica e arqueológica que ainda precisa ser catalogada.
HISTÓRICO
De acordo com a comunidade científica, a maioria dos rios de grande ou médio porte está ligada a áreas alagáveis que, conectadas ao canal principal, formam os rios-planícies de inundação. São esses os lagos que coexistem paralelos ao curso do rio, como o Paleocanal do Rio Tocantins.
Há meio século, em 1974, o projeto Radar da Amazônia (Radam) sugeriu pela primeira vez a criação das duas unidades de reserva biológica, conceituadas naquele momento como “Área de Proteção ao Ecossistema para Preservação da Flora e Fauna”.
A proposta inicial versava sobre a fundação da “Reserva Biológica do Tocantins-Araguaia”. Atualmente, parte da área proposta naquela época está inserida na APA Bico do Papagaio.
Já na segunda unidade, então chamada de “Reserva Biológica do Rio Tocantins”, hoje em dia está localizado 50% do polígono da APA do Paleocanal do Rio Tocantins. Local que recebeu esse nome em 1984, batizado pelo geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber.
Nesse mesmo ano, a recém-criada Fundação Casa da Cultura de Marabá (FCCM) assumiu os estudos nas regiões dos lagos de Marabá e foi a instituição responsável por receber a visita de Ab’Saber.
Anos depois, ele publicou um artigo onde recomendou a preservação do Paleocanal do Tocantins.
Em 1988, o Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP) avaliou esta zona e entendeu que, graças a sua intensa antropização, seria inviável a criação das reservas apontadas pelo Radam. O IDESP, então, orientou a implementação de APAs.
Os registros históricos de todo o estudo dessa área, ao longo dos últimos 40 anos, atualmente estão sob os cuidados da FCCM, que os assumiu em 1984. Desde então, a fundação já catalogou 55 espécies de plantas aquáticas, 30 espécies de palmeiras, 42 lagos plotados, 27 sítios arqueológicos e 72 espécies de orquídeas.
Além disso, foram identificados pelo menos cinco ecossistemas: campina, campinarana, terra firme, lacustre e floresta de várzea. Comunidades que abrigam uma imensidão de animais de diversas espécies, sendo computadas em torno de 281, só de vertebrados.
Para além do estudo ambiental, a FCCM, politicamente, fez diversas tentativas de criar algum mecanismo de proteção para essa região. A própria Lei Orgânica do Município indicou o Paleocanal do Rio Tocantins como área de importância para conservação, mas até 2015, data do último relatório da fundação sobre o assunto, nenhuma providência na esfera municipal havia, de fato, sido tomada para preservação da região.
PALEOCANAIS EM NÚMEROS
128.461,82 hectares de área
304 lagos catalogados
72 espécies de orquídeas
55 espécies de plantas aquáticas
50 anos de estudos
30 espécies de palmeiras
27 sítios arqueológicos
Técnicos elaboram novo projeto e ICMBio aprova
“A importância é maior do que a gente imagina. Os lagos do paleocanal são base para a cadeia alimentar, para a reprodução de peixes, botos e muita coisa que a gente não vê mais hoje em dia”, exemplifica Pablo Santos.
Aliadas no momento atual do projeto, a Fundação Casa da Cultura e a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) foram as responsáveis pelos passos significativos que foram dados para sua concretização nos últimos anos.
As instituições foram norteadas pela proposta que existe desde 1974, momento em que o projeto Radam esteve na região e selecionou uma parte das áreas, indicando onde deveriam ser criadas as duas reservas biológicas.
“A partir daí os grupos de pesquisa aqui da região, particularmente a FCCM que estava à frente, começaram a fazer os estudos. Então, com o último relatório da Fundação, em 2015, foi proposta novamente a criação das unidades de conservação”, contextualiza o geólogo.
Foi este o documento que serviu de base para que a FCCM se unisse à Unifesspa, reunindo um grupo de pesquisadores de ambas as instituições. Com isso, foi possível aprofundar o estudo do território a partir de imagens capturadas por satélite, o que possibilitou a percepção de que a área proposta pela FCCM, apesar de boa, era pequena.
“Havia muitos mais lagos (do que o mapeado a princípio), então. a gente conseguiu expandir a área do projeto e escrevê-lo de fato”, relembra Pablo.
Diante de todas as informações coletadas foi possível redigir um documento consistente, referenciando a geologia, fauna e flora da região do Paleocanal do Rio Tocantins e do Bico do Papagaio.
Com o projeto em mãos, os pesquisadores participaram do Congresso de Gestão do Conhecimento e da Sociobiodiversidade das Áreas Protegidas de Carajás (CGBio), em novembro do ano passado. em Parauapebas. “Durante a plenária do evento, Vanda Américo, a presidente da FCCM, pediu a palavra e propôs o projeto ao ICMBio”, relembra Pablo.
Quem estava presente no congresso era Mauro Pires, presidente do ICMBio. Ele recebeu a proposta e pediu para que a equipe do instituto desse um parecer sobre o assunto. Pouco depois o projeto foi protocolado e o ICMBio emitiu uma nota técnica favorável à construção das duas APAs.
Gerenciamento e sustentabilidade dos territórios com a comunidade
“A partir do momento que se cria uma unidade de conservação, ela é gerenciada de duas formas: via conselho deliberativo e o conselho consultivo”, explica Pablo Santos.
As áreas são protegidas por lei e se enquadram como unidades de uso sustentável, como é o caso das APAs Paleocanal do Rio Tocantins e do Bico do Papagaio. Com a criação das unidades em breve, o gerenciamento do território será feito em conjunto, através dos conselhos formados por órgãos ambientais e pela sociedade.
Moradores locais, instituições de pesquisa, ensino e de meio ambiente, além de universidades, da Secretaria de Agricultura e de Meio Ambiente, a própria FCCM, associações de moradores e de pescadores, devem possuir integrantes dentro dos conselhos.
Vanda Américo diz que, dessa forma, haverá um ordenamento e um regramento, principalmente voltados para a conservação do meio ambiente. Por exemplo, os moradores daquelas regiões ainda poderão fazer roça, mas acompanhados por um técnico que irá orientar e dar o suporte para tal prática.
“A criação das APAs é para fomentar uma unidade de uso sustentável porque já existe muita gente ocupando essas áreas. Não é retirá-las, é gerir o território com essas pessoas dentro”, pondera Vanda Américo.
PRESERVAÇÃO
O CORREIO conversou com Keid Nolan Silva Sousa, biólogo e professor titular da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Ele tem doutorado em biologia de água doce e pesca interior e por isso aprofundou a discussão sobre a importância de preservar a biodiversidade do Paleocanal do Rio Tocantins.
“São locais onde acontecem a alimentação e reprodução de animais, então, é um patrimônio ambiental que se for perdido, nós corremos o risco de perder essa fonte de alimento, impactando as populações que moram nas margens e também para nós, que residimos nas cidades”, adverte.
Para o biólogo, medidas como a criação das APAs são uma oportunidade de preservação do patrimônio de biodiversidade da região, principalmente por incluir o Paleocanal do Rio Tocantins, que é algo único, um espaço que não existe em outros territórios.
“Essa é uma área muito antiga, por onde o rio passava e que deixou lagos. Há uma grande importância para a manutenção dos peixes, das tartarugas, para a vida aquática no geral”, destaca.
Em simbiose com o meio ambiente há a presença humana nesta região. A população que mora nesse entorno, com a implantação da APA, tem a oportunidade de obter benefícios e criar uma relação mais sustentável com a natureza.
As possibilidades são diversas e Keid pauta o sucesso da implantação do projeto no diálogo que pode – e deve – ser criado entre todos que, de alguma forma, estão ligados a essas áreas.
Sejam os pesquisadores que lutam pela sua preservação, seja pelas pessoas que habitam e sobrevivem desses locais.
Sequestro de carbono pode ajudar a diminuir os impactos
O geólogo Pablo Santos explica que, além dos impactos ligados à biodiversidade na região do Paleocanal do Rio Tocantins, a conservação dessa área também é capaz de auxiliar nos problemas climáticos, a partir do sequestro de carbono.
Essa prática possui o objetivo de retirar o gás carbônico – também conhecido como dióxido de carbono (CO2) – preso na atmosfera devido a queima de combustíveis fósseis e desmatamento, para transformá-lo em oxigênio. O CO2 é vital para a vida humana, mas em excesso pode ser prejudicial, contribuindo para o aquecimento global.
Pablo observa que há estudos que comprovam que as planícies alagadas em área preservada são mais eficientes na captura do carbono do que a floresta na Amazônia. Mas para que esse benefício seja possível, a região do paleocanal precisa ser preservada. O que não é tão simples.
Apesar de ainda existirem lagos conservados paralelos à extensão dos rios, a degradação ambiental tem avançado sobre eles, principalmente com o uso de defensivos agrícolas em seus entornos. Essa prática resulta na diminuição dos peixes que se reproduzem nesses locais, o que consequentemente leva a queda do pescado disponível, além das implicações para outras espécies da fauna e da flora.
A prática gera impactos negativos para esse ecossistema, pois ele serve como pilar para a cadeia alimentar e reprodução de peixes e mamíferos, incluindo o tucunaré (que é símbolo de Marabá), e os botos.
Nos quatro meses do ano em que acontece a piracema, o rio e o lago ficam conectados, com isso, os animais acabam concluindo sua reprodução nas águas do paleocanal. Já com as secas, o nível de água diminui e rio e lago se separam. No ano seguinte, volta a encher e o ciclo se repete.
E é graças a essas variações que a região abriga uma ampla diversidade de espécies aquáticas, contribuindo para a riqueza biológica da localidade. Mas a explícita importância do paleocanal não é suficiente para barrar a sua degradação.
As imagens coletadas por satélite pelos pesquisadores durante o mapeamento da área identificaram que muitos lagos secaram e outros passaram por um processo de erosão das margens.
“Tem muitos que já se fecharam e hoje são de áreas de areia e outros servem de bebedouros para gado”, detalha o geólogo. O assoreamento se torna, então, um problema para os pequenos criadores de animais, pois em algumas regiões os lagos têm sido fonte de sobrevida nos pastos.
Esse fato também gera preocupação nos pesquisadores. Segundo os estudos, há vegetação preservada no entorno dos lagos, em áreas que ainda se mantêm alagadas, porém, em algumas regiões, existe cerca de apenas 1m de Área de Preservação Permanente (APP).
Nesse caso, para APPs, a lei florestal 12.651/2012 determina que áreas situadas ao entorno do curso d’água, possuem função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, bem como facilita o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. A largura mínima da faixa a ser preservada pode variar de 30m a 500m, dependendo da extensão do fluxo de água.
Nesse sentido, Pablo salienta um ponto sobre a expansão em direção às margens, realizada pelos residentes das comunidades que vivem nas imediações das APPs, um movimento que vai de encontro ao determinado por lei e pode causar mais prejuízos para o meio ambiente dessas localidades.
“A degradação está acarretando problemas para esse ecossistema. Nessas regiões, toda fonte pesqueira vem desses lagos e muita gente sobrevive disso”, reflete.
Região tem grande relevância arqueológica
Dados da Fundação Casa da Cultura de Marabá contabilizam, até o momento, 27 sítios arqueológicos no Paleocanal do Rio Tocantins e Bico do Papagaio. Sobre isso, de acordo com a FCCM, graças a um licenciamento ambiental, poucas pesquisas foram realizadas na região, circunstância que torna o potencial arqueológico da área subestimado.
Por isso, a criação das APAs do Paleocanal do Rio Tocantins e Bico do Papagaio é incluída como uma das maneiras de solucionar esse problema. Além disso, também é discutida a necessidade de se obter mais informações arqueológicas na região a partir de estudos de prospecção e salvamento arqueológico, e da implantação de instrumentos legais de proteção.
Nos sítios, até o momento, já foram descobertos fragmentos – classificados como históricos – de paredes e diversos tipos de bordas, descritos pela FCCM como: “Estilos de decoração de borda e paredes em fragmentos de cerâmica dos sítios do Projeto ALPA”. Pedaços de louças domésticas também foram encontrados.
Já entre os classificados como “pré-colonial”, estão vasilhas de cerâmica, bordas e paredes pintadas.
De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), sítios arqueológicos são os locais onde se encontram vestígios positivos de ocupação humana. Através deles é possível identificar conhecimentos e tecnologias que indicam anos de adaptação humana ao ambiente, além da produção de saberes tradicionais brasileiros.
Os sítios arqueológicos localizados nas regiões do Paleocanal do Rio Tocantins e do Bico do Papagaio são entendidos como um patrimônio dessa região e ajudam a contar sua história.
É necessário apoio político para criação das 2 APAs
“Atualmente, o documento de criação dessas duas Áreas de Proteção Ambiental está em Brasília, junto com mais de 200 projetos, à espera de um decreto para criação de unidades de conservação (que serão criadas via decreto federal)”, explica Pablo Santos.
O geólogo sinaliza a necessidade de apoio político para a movimentação do processo. O amparo da sociedade também é relevante, uma vez que sem o seu interesse público, o projeto não sai.
Para além disso, os pesquisadores também organizaram um evento, onde convidaram seus pares e outras instituições. A ideia era apresentar o projeto e instigá-los a abraçar a causa. Com isso, foi possível conquistar o apoio do Ministério Público do Estado para fortalecer a luta pela criação das APAs.
“Agora nós estamos programando para levar o projeto até as comunidades”, revela.
Para esse fim, o grupo entrou em contato com a Federação de Trabalhadores Rurais do Estado, buscando uma reunião com lideranças rurais e de pequenos produtores, associações de pescadores, Movimento Sem Terra (MST), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras instituições voltadas para o campo, que é principalmente a área de atuação do projeto.
“Nós estamos encaminhando reuniões com esse pessoal, para tentarmos ganhar apoio popular. Porque eles são os maiores interessados”.
APRESENTAÇÃO À COMUNIDADE
A forte parceria entre os servidores da Fundação Casa da Cultura de Marabá e os professores da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) tem rendido bons frutos.
Graças a essa colaboração, um evento de mobilização foi realizado no auditório do campus local da Universidade Estadual do Pará (UEPA), no dia 22 de março deste ano. Na oportunidade, foi apresentado à comunidade científica o projeto de criação das duas Unidades de Conservação, as APAs do Paleocanal do Rio Tocantins e do Bico do Papagaio.
Naquele momento, foi descrito aos presentes que o programa pretende conservar lagos e vegetação existentes no entorno das duas regiões, além de preservar esses ambientes que são ricos em biodiversidade. Há, ainda, o foco na valorização histórica e crescimento econômico desses territórios.
O contexto histórico do projeto foi apresentado, assim como seu avanço mais recente, o apoio e incentivo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Na oportunidade, o Correio de Carajás conversou com André Macedo, analista ambiental e chefe do Núcleo de Gestão Integrada do ICMBio Carajás.
“Não há um prazo definido, apesar de haver uma manifestação favorável, ainda é muito importante a participação da população para que esse processo seja priorizado”, ponderou ele sobre a previsão de criação efetiva dessas duas unidades de conservação.
Atualmente, o ICMBio realiza gestão de seis áreas de conservação na região de Carajás, sendo três unidades presentes no município de Marabá: a Floresta Nacional do Tapirapé – Aquiri; a Floresta Nacional do Itacaiunas e a Reserva Tapirapé.
Por serem regiões antropizadas, a proposta prevê o uso da terra, onde a rede de proteção daquela área vai atuar de forma conjunta com as famílias, que poderão desenvolver trabalhos agroecológicos.
A orientação é que o uso da terra deve ser feito de maneira regrada, para evitar a degradação dos ambientes naturais.
Luciana Araújo, Ulisses Pompeu, Milla Andrade e Mirella Carvalho (estagiária)