“Marabá tem dois sois para cada um” é uma expressão repetida pelos cinco núcleos da cidade, conhecida pelo forte calor mesmo no mês de novembro, quando o inverno amazônico está ensaiando desaguar no solo em breve. A chuva, que é tão esperada para aplacar o calor sufocante, também foi escassa no início do ano, e nem mesmo a enchente quase anual foi registrada. Esses são alguns sinais – e alertas – de que o clima global está mudando e afetando o marabaense.
No Dia do Meio Ambiente, em 5 de junho, um relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) indicou que a temperatura média global próxima à superfície deve ser entre 1,1°C mais alta entre 2024 e 2028, quando comparada com o período de 1850 a 1900, era pré-industrial. Nesse intervalo de tempo, as atividades humanas têm impulsionado as mudanças climáticas, principalmente graças à queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás.
Para além de aumentar a temperatura do planeta, as mudanças climáticas incluem secas intensas, escassez de água, inundações, tempestades catastróficas e até incêndios severos. Na tentativa de minimizar as consequências do efeito estufa (gases acumulados em torno do planeta e que agem como um invólucro, retendo o calor do sol e aumentando as temperaturas), o mundo passou a discutir e adotar o mercado do crédito de carbono.
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MERCADO DE CRÉDITO DE CARBONO
“Esse é um mercado um pouco diferente, gera uma certa confusão porque não é para gerar lucro, é para gerar compensação”, explica Evaldo Gomes, professor de Ciências Econômicas e Agronomia na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).
Procurado pela reportagem do Correio de Carajás para esquadrinhar o tema, Evaldo é didático ao explicar que uma tonelada de gases de efeito estufa emitidos equivale a um crédito de carbono. A empresa interessada em compensar os gases que produz, vai realizar a compra desse crédito. Neste comércio, o “fornecedor” é aquele que deixa de produzir aquela determinada quantidade de gases, ou seja, ele gera um “saldo positivo” para vender para quem gerou um “saldo negativo”.
Em um exemplo, a nível global, uma empresa irá pagar para que países pobres, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos promovam investimentos na redução dos impactos no meio ambiente, da produção industrial e agrícola. “É pagar para eles (países fornecedores) como compensação pelo tempo em que esses países ricos (compradores), que mais se industrializaram, produziram gases do efeito estufa”, desvenda o professor.
Com esse mercado, quanto mais um país ou organização se dedicar a reduzir a emissão de poluentes, mais créditos irá gerar. Assim, poderá utilizar esses créditos como moeda de comercialização com outros países que não conseguiram alcançar suas metas de redução.
No Brasil, as receitas dessa negociação podem gerar 100 bilhões de dólares até 2023, conforme aponta um estudo da representação brasileira da Câmara de Comércio Internacional (ICC Brasil). Até 2050 esse montante pode chegar a 300 bilhões de dólares. Essa transação ocorre por meio de dois tipos de mercado: o regulamentado e o voluntário.
REGULAMENTAÇÃO
“É um mercado que não depende só de forças de oferta e demanda. Como é um mercado de compensação, em que você precisa pagar por aquilo que você já poluiu, ele precisa de legislação, de convenções internacionais”, elabora Evaldo.
Para isso, existem dois principais tipos de mercado de carbono: o regulamentado e o voluntário.
O primeiro foi estabelecido por acordos internacionais e é padronizado por leis nacionais, como o decreto nº 5.882/2006 no Brasil. Existe um limite de emissões por empresas, que podem comprar ou vender créditos para cumprir suas metas. Esse mercado é obrigatório para quem opera sob ele.
Já o segundo abrange indivíduos e empresas que compram créditos para compensação, mesmo sem obrigação legal. É um mercado opcional e funciona para aqueles que querem contribuir com a redução de CO2.
A regulamentação é importante para evitar que territórios, principalmente de povos tradicionais, sofram assédio, como explica Evaldo. “Isso porque grupos empresariais que têm muito dinheiro podem constranger, em termos legais e de contratos, determinados povos indígenas e populações tradicionais, a assinarem contratos que podem ter as cláusulas alteradas posteriormente”.
REGULAMENTAÇÃO BRASILEIRA
No Brasil, o projeto de lei nº 182/2024 foi aprovado pela Câmara dos Deputados e agora segue para sanção presidencial. O documento prevê a regulamentação do mercado de carbono a partir da criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que visa regular as atividades, fontes e instalações em território nacional que emitam ou possam emitir gases de efeito estufa, atribuindo responsabilidades a operadores, sejam pessoas físicas ou jurídicas.
A exploração de territórios é uma preocupação presente no texto do projeto de lei e também pontuada por Edvaldo. Ao ser questionado pela reportagem sobre as movimentações do mercado na região sudeste do Pará, ele narra que existem empresas de fora tentando estabelecer contratos com populações tradicionais. “Nós ouvimos algumas mensagens preocupantes, de que alguns territórios indígenas estão sendo procurados – porque são os territórios que mais têm floresta em pé aqui na região – para assinar contratos de longo prazo, de 20 anos ou mais”, revela.
A advertência nesse caso acontece porque este tipo de negociação pode até mesmo permitir que determinada empresa faça negociações com terceiras, para a comercialização do crédito de carbono a partir desse território.
Este é mais um fator que determina a relevância da regulamentação nacional do mercado. No projeto de lei, o SBCE assegura o direito de povos indígenas e comunidades tradicionais à comercialização de certificados de redução ou remoção verificada de emissões (CRVE) gerados em seus territórios, mediante consulta livre, prévia e informada.
É importante destacar que o texto também isenta dessas obrigações, a produção primária agropecuária, seus bens, benfeitorias e infraestrutura associados não se enquadram como atividades, fontes ou instalações reguladas pelo SBCE. As emissões indiretas, resultantes da produção de insumos ou matérias-primas da agropecuária, também não serão consideradas.
A proposta estipula ambos os tipos de mercado e prevê que as empresas que mais poluem deverão seguir uma meta de emissão e terão a oportunidade de utilizar os títulos representativos de emissão ou remoção de gases do efeito estufa. A intenção é que o mercado regulado seja implantado de forma gradativa ao longo de seis anos.
IMPACTOS
Com o mercado do crédito de carbono, dois impactos merecem destaque: o financeiro e o ambiental. “Sempre que há a possibilidade de investimento, você está organizando a sociedade para que ela fique melhor no futuro”, afirma Evaldo. Contudo, reflexivo, ele pondera que nem todo investimento é bom, tendo em vista que alguns podem gerar mais poluição ou desigualdade social. Apesar disso, neste caso, há a intenção de oportunizar algo que vai gerar sustentabilidade, equidade, inclusão e proteção às comunidades. “Pelo menos essa é a intenção”.
Quando se fala em benefício, o ambiente se sobressai. “Você incentiva empresas do país a reduzir a emissão de gás carbônico ou de outros gases do efeito estufa”, afirma. Esta é também uma alternativa do governo para incentivar as empresas a poluírem menos. Se este coloca parâmetros adequados para medir se há redução da poluição, há um ganho em termos de qualidade da produção de mercadorias no Brasil, porque se reduz os danos ao meio ambiente ocasionados pela produção de mercadorias.
“Então, por isso é importantíssimo avançar e inovar em termos de matriz tecnológica, pensando em processos de redução dos efeitos da crise climática aqui, especificamente na nossa região da Amazônia, que existe uma faixa de desmatamento mais avançada”, complementa o professor.
NA AMAZÔNIA
Dados do Google Trends revelam que nos últimos sete dias (entre 18 e 25 de novembro), o Estado do Pará foi o que mais pesquisou o termo “crédito de carbono” na plataforma. O interesse aumentou desde que o governador Helder Barbalho anunciou a assinatura de um acordo para compra e venda de créditos de carbono gerados a partir das reduções no desmatamento no Estado.
O próximo passo para a concretização da ação é a aprovação do Sistema Jurisdicional de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, Manejo Sustentável e Aumento do Estoque de Carbono (REDD+), o que pressupõe, dentre outros compromissos, a realização da consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais.
“É importante esse contexto em que o governo do estado anuncia a possível contratação de crédito de carbono. Ele está sinalizando que é possível que a gente tenha projetos de compensação, produção e até sociais financiados a partir dessa compensação”, opina Evaldo.
Quando se fala em Amazônia, a discussão sobre esse mercado passa pela preocupação acerca do cálculo que mensura o quanto uma região está emitindo considerando o quanto de floresta existe para absorver essa produção. Ou seja, quanto maior o desmatamento, menor é a compensação.
Em uma região dominada pelo agronegócio, refém do desmatamento e de queimadas para criação de pasto para gado, a entrada no mercado de carbono está condicionada à mudança estrutural. “Para isso acontecer é necessário pensar que o agronegócio precisa reestruturar seus custos e substituir a renovação de pastagem a partir da queimada por outros modelos. Também, reconhecer que o desmatamento desenfreado pode prejudicar em termos de negócio, porque é um recurso que poderia entrar para financiar uma nova matriz tecnológica do agronegócio e que pode, muitas vezes, ser barrado por conta dessas limitações ambientais que a matriz atual provoca”, elabora o professor.
Em um momento em que os olhos do mundo se voltam para o Pará – e Belém –, que será sede da COP 30 em novembro de 2025, existe uma dificuldade em trazer o debate sobre as mudanças climáticas para o interior do Estado.
“O que nós podemos aprender sobre os processos relacionados a isso? Quais são as soluções às quais nós podemos chegar? Nós temos condições de nos organizarmos e tentar financiamento, inclusive, de outras fontes. O crédito de carbono é só uma fonte dentro de uma série de fontes que o governo federal tem acessado, que o governo estadual tem acessado”, medita Evaldo.
Ele cita o Fundo Amazônia, iniciativa em que associações, cooperativas e empresas que queiram se vincular a uma agenda de sustentabilidade, de redução dos danos ambientais, conseguem linhas de financiamento mais rápidas, com juros mais baixos.
Para ele, este é um momento em que quem está no interior deve perceber que não é só a capital que vai receber a COP 30, mas o Estado. Como exemplo, Evaldo analisa a atuação dos poderes públicos municipais, colocando que é necessário que essas gestões tomem a frente e se apropriem dos processos relacionados ao debate das mudanças climáticas. “Se não, chega em novembro do ano que vem e vamos continuar muito distantes das discussões e, talvez, a gente não consiga trazer muitos benefícios para a nossa região”, adverte.
PAPEL DA UNIVERSIDADE
Agências de fomento de nível federal e estadual têm incentivado pesquisadores, professores, alunos e técnicos da Unifesspa a entrarem em projetos de articulação em rede com as universidades para discutir os impactos da crise climática no sudeste do Pará, explica Evaldo. “Nós temos pesquisadores vinculados às ciências da saúde, biológicas, sociais, humanas e às engenharias, que estão trabalhando em conjunto. Isso é importante porque apresenta a perspectiva de que as soluções precisam ser dadas por várias áreas do conhecimento, junto com a sociedade”, argumenta.
Há um consenso dentro da instituição sobre a necessidade de promover cenários de debates sobre a crise e mudança climática e como isso impacta os territórios do interior do Estado. A ideia é seguir com o debate até a véspera e após a COP 30. “Para que a gente coloque esses elementos para a sociedade aqui da região, de que nós precisamos discutir a crise climática dentro da universidade”, reitera.
É preciso, ainda, que a academia caminhe junto com a sociedade, para que as saídas sejam pensadas conjuntamente. “A universidade permanece sempre de portas abertas para tentar encontrar essas soluções”, finaliza.
(Luciana Araújo)