Correio de Carajás

Mais de 10 mil pessoas foram vítimas de trabalho análogo à escravidão no Pará em menos de 20 anos

Mais de 10 mil pessoas foram resgatas no Pará após serem encontradas em situação de trabalho análogo à escravidão, entre os anos de 2003 e 2018. A média por ano é de 627 trabalhadores durante 16 anos. Mais de 6 mil trabalhavam na agropecuária, mesmo número de analfabetos ou que não chegaram a completar o 5º ano. A maioria também era preta, parda ou de origem estrangeira.

Os dados são do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, organizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).

Ser semelhante ao período de escravidão legalizada não é manter pessoas acorrentadas, vigiadas ou açoitadas, mas obrigá-las a condições degradantes. A maioria desses resgatados dormiam em barracões de lona no meio do mato, dividiam o chão com os animais, a água para consumo era a mesma destinada ao gado, as jornadas de trabalho exaustivas, se acidentavam ou adoeciam e não tinham atendimento médico. E nessas condições alguns viveram por anos.

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Dos mais de 10 mil resgatados, 1288 foram no município de Ulianópolis, sudeste do Pará. A cidade já foi alvo da Operação Arco de Fogo da Polícia Federal e do Ibama devido aos altos índices de desmatamento, em 2008. Um ano antes, a região atingiu o maior número de resgates dos últimos anos. Foram 1.113 resgatados somente em 2007.

Alguns registros de resgates no Pará

CidadeNº de resgates entre 2003 e 2018
Ulianópolis1.288
São Félix do Xingu817
Marabá646
Pacajá617
Santana do Araguaia368
Itupiranga354
Redenção265
Altamira234
Tomé-Açu172
Água Azul do Norte141
Brejo Grande do Araguaia122
Medicilândia108
Eldorado dos Carajás103

Fonte: MPT

Neste dia 28 de janeiro, o Brasil celebra o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e o G1 Pará conversou com o procurador do Trabalho Roberto Ruy Rutowitcz Netto sobre a realidade das operações de resgate no Pará.

Segundo ele, 80% dos trabalhadores resgatados no território paraense são de outros estados, principalmente do Maranhão e do Piauí. “Eles vem para cá em busca de uma oportunidade, vem de uma situação de completa miséria e acabam sendo aliciados com facilidade. E se você perguntar pra ele se o empregador era um bom empregador ele vai dizer que sim. Mas é que eles acabam pensando que ‘aqui eu estou trabalhando e tenho algo de comer’. O fato de ele ter comida deixa a situação razoável para ele, que não tem a percepção da degradância que vive porque vem de uma situação de extrema miséria”, explica.

Além da condição socioeconômica, o trabalho escravo contemporâneo também se caracteriza pela escolaridade das vítimas. “Quem falava isso era Cristovão Buarque, ‘o trabalho escravo é filho do trabalho infantil’. Se você se pegar o histórico da família da vítima, ele vem de uma família que não tem renda, de um pai que não tem escolaridade, essa herança maldita, digamos assim, vai se perpetuando, passa de geração em geração. Ele não tem com o sair dessa situação, não tem oportunidade, política pública, escola e acaba passando isso pra sua prole”, avalia.

A vivência do procurador em campo já deu a ele experiências difíceis de esquecer. Rutowitcz percebeu que não era fora do comum algumas vítimas serem resgatadas mais de uma vez. A indústria criminosa do trabalho escravo se mantém também pela falta de políticas pós resgate. Para além disso, ela também gera ciclos viciosos fortalecidos pela falta de oportunidade, segundo a análise do jurista.

“Após o resgate, eles tem direito de receber todas as verbas rescisórias. É calculado o valor com 13º FGTS, férias, muitas vezes a gente tenta negociar um dano moral individual ao trabalhador, proporcional ao tempo de exposição. Esse valor é pago no próprio local. Mas ainda tem uma lacuna muito grande de políticas públicas para reinserir essas pessoas, que acabam voltando para mesma situação porque acaba o dinheiro. Aí o ciclo vicioso se repete. Ele não encontra oportunidade, não tem qualificação. Já encontramos trabalhador há quatro, cinco. Eu já peguei trabalhador que tava idoso, doente, com malária, há mais de dois anos vivendo em situação de penúria, um senhor, já tinha perdido parte da visão em razão de acidente de trabalho”, relata.

“Mas ainda tem uma lacuna muito grande de políticas públicas para reinserir essas pessoas, que acabam voltando para mesma situação porque acaba o dinheiro. Aí o ciclo vicioso se repete. Ele não encontra oportunidade, não tem qualificação”, diz o procurador do trabalho, Roberto Ruy Rutowitcz Netto.

Sucateamento das fiscalizações

Operação resgata 18 trabalhadores em situação análoga à escravidão em Uruará, no PA — Foto: Reprodução / GEFM
Operação resgata 18 trabalhadores em situação análoga à escravidão em Uruará, no PA — Foto: Reprodução / GEFM

Uma operação de resgate dura cerca de 15 dias. Participam representantes do Ministério Público do Trabalho, eventualmente alguém da Defensoria da União, auditores fiscais do trabalho (ligados aos extinto Ministério do Trabalho, que agora faz parte do Ministério da Economia), além de agentes de segurança da Polícia Federal ou da Polícia Rodoviária Federal. Atualmente existem apenas quatro grupos móveis para realizar operações em todo o Brasil.

“Já chegamos a ter oito grupos, hoje os quatro operam com muito sacrifício. O Ministério do Trabalho vem sendo sucateado, principalmente com a extinção dele, que passou a fazer parte da pasta de Economia. Ele ficou ainda mais enfraquecido. Não há reposição de auditores fiscais há muito tempo, praticamente todos estão se aposentando, não há uma renovação do quadro. Além disso, o trabalho escravo é uma tarefa penosa. Já não temos o quantitativo suficiente, ainda é difícil captar auditores voluntários que queiram participar dessas operações, porque oferece risco de vida”, revela o procurador do trabalho.

No Pará, as dificuldades tem outra proporção, com as superintendências sucateadas e operando no limite, cuidar de um estado de dimensão continental é impossível. “Aqui a maior incidência é do trabalho escravo rural; já no eixo sul-sudeste os casos são urbanos, principalmente em confecções. Aqui é nas fazendas, no campo, na áreas ligadas ao desmatamento ilegal, ligado ao gado, do roço para fazer as pastagem. As estradas são péssimas, terras griladas, tem que pegar ramais, em época de chuva tudo é ainda mais difícil”, esclarece.

Em 2019, segundo a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, foram fiscalizados 267 estabelecimentos, que somaram um total de 1.054 trabalhadores em condições análogas à escravidão. No Pará, foram apenas 66 casos registrados no último ano, mas o número baixo não reflete a melhora nesse índice e sim a redução de inspeções dos grupos móveis.

Escravidão contemporânea

Trabalhador em regime análogo a escravidão encontrado durante operação de resgate — Foto: Divulgação/MPT
Trabalhador em regime análogo a escravidão encontrado durante operação de resgate — Foto: Divulgação/MPT

O trabalho escravo contemporâneo é crime de acordo com o art. 149 do Código Penal, alterado pela Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003. Antes disso, para considerar trabalho escravo, a legislação exigia que o empregador transformasse a vítima em pessoa totalmente submissa à sua vontade.

De acordo com a professora dra. Valena Jacob, pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA), o crime passou a ser caracterizado independentemente da privação de liberdade. Para configurá-lo não era mais necessário estar na mesma condição em que indígenas e negros passaram, na época da escravidão legalizada no Brasil.

Ela, que faz parte do Grupo de Pesquisa Nacional sobre Trabalho Escravo Contemporâneo e questões correlatas, lamenta no entanto que a mudança ainda não seja suficiente para convencer parte dos juristas. “Infelizmente, o estereótipo da escravidão legalizada no Brasil, ainda tem influenciado um considerável seguimento jurisprudencial a entender que só há o crime de redução a condição análoga à de escravo se houver também uma espécie de “cárcere privado””.

Ainda assim, para a pesquisadora ficou mais fácil tipificar o crime, que passou a ter como objetivo principal, a proteção da dignidade do ser humano.

Características do trabalho escravo contemporâneo:

  • Submeter o trabalhador a trabalhos forçados
  • Jornadas exaustivas
  • Condições degradantes de trabalho
  • Restrição de locomoção, por qualquer meio, em razão de dívida contraída com empregador ou preposto
  • Cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho
  • Manter vigilância ostensiva no local de trabalho com a finalidade de impedir fugas e vigiar a execução do trabalho
  • Apoderamento de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho

O antigo Ministério do Trabalho costumava disponibilizar na internet a “lista suja”, que relacionava os nomes de todos os empregadores que foram autuados por trabalho análogo à escravidão. No entanto, de acordo com o MPT, a relação não está mais disponível na página online da Secretaria Especial da Previdência e Trabalho, vinculada ao Ministério da Economia.

Interpretação que dificulta enfrentamento

O trabalho análogo ao de escravo viola o direito ao trabalho digno e atinge a capacidade da vítima de realizar escolhas, fazendo com que o trabalhador deixe de ter domínio sobre si mesmo. Para Valena Jacob, é por esse motivo que, mesmo sem ter sua liberdade cerceada, por meio da coação física, a vítima ainda permanece cativa.

A pesquisadora defende que o trabalho escravo atual é diferente em vários pontos da escravidão existente no período colonial e isso não significa que há maior ou menor crueldade nas ações.

“A escravidão antiga era permitida pelo ordenamento jurídico da época; o custo de aquisição de mão de; obra era alto, razão pela qual a riqueza de uma pessoa podia ser medida pela quantidade de escravos que ela detinha; a relação existente era de longa duração e, ainda, os lucros gerados eram baixos, uma vez que os escravagistas tinham que arcar com todos os custos para a manutenção dos seus escravos. Já o trabalho análogo ao de escravo é proibido pela legislação; o custo da aquisição da mão de obra é muito baixo; a relação é de curta duração e os lucros são altos, visto que os “escravos” de hoje são homens livres, que, na grande maioria das vezes, não recebem seus salários e demais direitos trabalhistas”, compara.

Comparando as situações, as diferenças são claras, embora provoquem resultados semelhantes. Para Valena, a confusão na interpretação sugere a busca de características que, dificilmente, será encontrada.

“É justamente a imagem do “escravo negro” que tem influenciado o poder judiciário e dificultado o enfrentamento da questão na atualidade, uma vez que situações de trabalho escravo que não correspondem a essa imagem são muitas das vezes descartadas por juízes, deixando de ser punidas como práticas de trabalho escravo contemporâneo”, conclui.

(Fonte:G1)